Cobertura da Venezuela nos leva de volta à era das mentiras sobre a América Latina
A mídia corporativa continua a vender a linha Trump-campeão-humanitário, mesmo depois de ter sido revelado que um avião dos EUA foi pego contrabandeando armas para a Venezuela
- Opinión
Eu estava sentado no meu apartamento em Caracas, na Venezuela, lendo a versão online da revista Time (19/05/2016), na qual havia uma reportagem sobre como mesmo algo tão básico quanto uma aspirina não poderia ser encontrado em lugar algum na Venezuela: “Medicamentos básicos como a aspirina não podem ser encontrados em lugar algum”.
Eu caminhei de meu apartamento à farmácia mais próxima, a quatro quadras de distância, onde eu encontrei um monte de aspirina, assim como acetaminofeno (Tylenol genérico) e ibuprofeno (Advil genérico), em uma farmácia bem abastecida e com funcionários bem instruídos que fariam inveja a qualquer drogaria dos EUA.
Alguns dias depois da história da Time, a CNBC (22/06/2016) publicou que não havia acetaminofeno em lugar algum, que “coisas básicas como Tylenol não estão sequer disponíveis”. Isso deve ter pego a Pfizer Corporation de surpresa, já que era a sua subsidiária, Pfizer Venezuela SA, que produzia o acetaminofeno que eu comprei. (Nem o escritor da Time Ian Bremer nem o comentarista da CNBC Richard Washington estavam na Venezuela, e nenhuma evidência foi apresentada de que qualquer um deles já estivera lá).
Eu comprei o três produtos, xarope para tosse e mais outros medicamentos, porque duvidava de que qualquer pessoa nos Estados Unidos acreditaria em mim se eu não pudesse apresentar os medicamentos em suas embalagens.
Farmácia venezuelana à época em que a Time (19/05/2016) estava dizendo aos leitores, “Medicamentos básicos como a aspirina não podem ser encontrados em lugar algum” na Venezuela.
Inquebrantável soar de mentiras
De fato, eu pessoalmente não seria capaz de acreditar em ninguém que fizesse tais declarações sem que pudesse mostrar a prova delas, de tão intensa que tem sido a disseminação de mentiras. Quando a Orquestra da Juventude Venezuelana deu um concerto em Nova York no começo de 2016, antes de eu me mudar para Caracas, eu fui lá pensando, “nossa, eu espero que os membros da orquestra estejam todos bem vestidos e bem alimentados”. Sim, é claro que eles estavam todos bem vestidos e bem alimentados!
Quando eu mencionei isso em uma palestra na Universidade de Vermont, um estudante me disse que ele teve a mesma sensação quando estava acompanhando o campeonato Pan Americano de futebol. Ele se perguntou se os jogadores venezuelanos teriam condições de jogar, por estarem tão enfraquecidos pela falta de comida. Na verdade, ele disse, o time venezuelano jogou muito bem, e foi muito mais longe na competição do que o esperado, já que a Venezuela é historicamente um país do baseball, ao contrário dos vizinhos obcecados por futebol Brasil e Colômbia.
Por mais difícil que seja para os leitores da mídia estadunidense acreditarem, a Venezuela é um país onde as pessoas fazem esportes, vão ao trabalho, vão a aulas, vão à praia, vão a restaurantes e assistem a concertos. Eles publicam e leem jornais de todas os espectros políticos, de direita, de centro-direita, de centro, de centro-esquerda e de esquerda. Eles produzem e assistem programas de televisão, em canais de TV que também são de todos os espectros políticos.
A CNN foi recentemente ridicularizada (Redacted Tonight, 01/02/2019) quando fez uma reportagem da Venezuela, “na utopia socialista que agora deixa praticamente todo estômago vazio”, seguida imediatamente de um corte para um protesto da oposição direitista em que todo mundo parecia muito bem alimentado.
Mas isso é certamente porque a maior parte dos oposicionistas protestando são da classe média alta, um telespectador pode pensar. Os proletários nas manifestações devem estar sofrendo de fome severa.
Não se consultarmos as fotos do massivo protesto governista em 2 de Fevereiro, em que as pessoas aparentavam estar muito bem. Isso apesar da extrema pressão econômica da administração Trump, reminescente da estratégia “faça a economia gritar” usada pelo governo Nixon contra o governo democraticamente eleito do presidente Salvador Allende no Chile, assim como contra muitos outros governos eleitos democraticamente.
Manifestações Rivais
Aquela manifestação mostrou apoio considerável ao governo do presidente Nicolás Maduro e rejeição generalizada à escolha de Donald Trump para presidente da Venezuela, Juan Guaidó. Guaidó, que se autoproclamou presidente do país e foi reconhecido minutos depois por Trump, ainda que uma enquete de opinião pública mostrasse que 81 por cento dos venezuelanos nunca havia ouvido falar dele, vem da facção de extrema direita da política venezuelana.
Últimas Notícias no Twitter (01/02/2019): “Capriles: Os Partidos Não Estavam Apoiando a Autoproclamação de Guaidó”
A manifestação pró-Maduro sugeriu, não surpreendentemente, que Guaidó falhou em ganhar apoio popular fora das classes ricas e de classe média alta. Mas Guaidó nem sequer ganhou apoio de muitos deles. No dia anterior às marchas rivais de 2 de fevereiro, Henrique Caprilles, o líder de uma ala menos extrema da direita, deu uma entrevista à AFP que apareceu em Últimas Noticias (01/02/2019), o jornal mais amplamente lido. Nela, Caprilles disse que a maior parte da oposição não apoiou a autoproclamação de Guaidó a presidente. Isso pode explicar a participação extremamente fraca na manifestação de Guaidó, ocorrida num dos distritos mais ricos de Caracas, e obviamente ofuscada pela manifestação pró-governo, que ocorreu numa das principais avenidas.
O New York Times não mostrou nenhuma foto da manifestação pró-governo, se limitando a alegar por “especialistas” não nomeados (02/02/2019) que a manifestação governista fora menor do que a oposicionista.
Os leitores podem olhar para as fotos das demonstrações rivais e julgar por si mesmos. Os dois grupos fizeram o seu melhor para atrair o seu público fiel, sabendo o quanto depende de uma demonstração de apoio popular. O jornal estridentemente direitista da oposição El Nacional (03/02/2019) continha uma foto do protesto de direita:
Se essa foi a melhor foto que eles puderam encontrar, foi marcadamente inexpressiva comparada às fotos dos jornais de esquerda CCS (02/02/2019)….
…e Correo del Orinoco (03/02/2019), que estava um pouco feliz demais por publicar do evento pró-governo:
Improvavelmente humanitários
Uma gigantesca manifestação anti-governo deveria tornar possível um golpe de Estado, uma manobra que a CIA usou repetidamente – no Irã em 1953, na Guatemala em 1954, no Brasil em 1964 e muitos mais, direto a Honduras em 2009 e à Ucrânia em 2015. A participação na manifestação de Trump foi decepcionante, e o golpe de Estado nunca ocorreu. O resultado é que Trump expressou um interesse súbito em levar comida e remédio aos venezuelanos (FAIR.org 09/02/2019).
Trump, que deixou milhares morrerem em Porto Rico e pôs crianças pequenas em jaulas na fronteira mexicana, parece ser um campeão improvável da ajuda humanitária aos latino-americanos, mas a mídia corporativa fingiu acreditar de cara limpa nisso.
A maior parte suprimiu relatos de que a Cruz Vermelha e a ONU estão fornecendo ajuda à Venezuela em cooperação com o governo venezuelano, e protestaram contra o “auxílio” que é obviamente um estratagema militar e político.
A mídia corporativa continua a vender a linha Trump-campeão-humanitário, mesmo depois de ter sido revelado que um avião dos Estados Unidos foi pego contrabandeando armas para a Venezuela, e mesmo depois de Trump ter nomeado o criminoso do escândalo Irã/Contra, Elliott Abrams, para dirigir as operações venezuelanas. Abrams esteve à frente da Secretaria de Direitos Humanos do Departamento de Estado durante os anos 80, quando armas para os terroristas apoiados pelos Estados Unidos foram embarcadas em aviões estadunidenses sob o disfarce de auxílio “humanitário”.
A CBC (15/02/2019) ao menos teve a honestidade de reconhecer que engolira uma mentira do secretário Mike Pompeo de que o governo havia bloqueado uma ponte entre a Colômbia e a Venezuela para interromper carregamentos de auxílio. A ponte recentemente construída ainda não havia sido ainda aberta: nunca havia sido liberada, aparentemente por conta das relações hostis entre os dois países, mas a não-abertura precede longamente os supostos envios de comida e remédio do governo estadunidense.
A absurdidade do auxílio de 20 milhões de dólares em comida e remédios para um país de 30 milhões de pessoas, quando as autoridades dos EUA roubaram U$30 bilhões em rendimentos do petróleo, e pegam 30 milhões de dólares diariamente, não precisa ser comentada.
“Estado falido”
A campanha de desinformação e mentiras abertas sobre a Venezuela começou em 2016, pelo Financial Times. Ironicamente, ela escolheu o aniversário de 14 anos do golpe de Estado fracassado contra o presidente Hugo Chávez – 11 de abril de 2016 – para afirmar que a Venezuela estava em “caos” e “guerra civil”, e que a Venezuela era um “Estado falido”. Como foi com as reportagens da Time e da CNBC, o repórter do Financial Times não estava na Venezuela, e não há evidência de que ele jamais tenha estado.
Eu perguntei a amigos de direita na Venezuela se eles concordavam com as alegações da Financial Times. “Bem, não, é claro que não”, disse um, afirmando o óbvio. “Não há caos e não há guerra civil. Mas a Venezuela é um Estado falido, já que não é capaz de suprir todas as demandas médicas da população”. Por esse padrão, todos os países da América Latina são Estados falidos, e obviamente os Estados Unidos também.
Financial Times (11/4/2016) reportou que em 2016 a Venezuela era um “Estado falido”, “caos puro” e “algo semelhante a uma guerra civil acontecendo.”
O New York Times veiculou histórias (15/05/2016, 01/10/2016) afirmando que condições em hospitais venezuelanos são horrendas. As reportagens enfureceram colombianos em Nova York que observaram que um paciente pode morrer na entrada de um hospital público colombiano se ele não tiver seguro. Na Venezuela, no entanto, os pacientes são tratados de graça.
Um colombiano residente em Nova York disse que a sua mãe havia retornado recentemente a Bogotá depois de muitos anos nos Estados Unidos, e não tivera tempo de obter seguro médico. Ela ficou doente, e foi a um hospital público. O hospital a deixou na sala de espera por horas, depois a mandou a um segundo hospital. O segundo hospital fez o mesmo, deixando-a esperando por quatro horas e depois mandando-lhe a um terceiro hospital. O terceiro hospital estava se preparando para mandar-lhe a um quarto hospital quando ela protestou dizendo que estava sangrando internamente e se sentindo muito fraca.
“Eu sinto muito, señora, se você não tem seguro médico, nenhum hospital público nesse país vai olhar para você”, disse a mulher à mesa. “Sua única esperança é ir a um hospital privado, mas esteja preparada para pagar uma grande quantia de dinheiro adiantada”. Por sorte, ela tinha um amigo rico que a levou para um hospital privado, e pagou uma grande quantia de dinheiro adiantada.
Tais condições na Colômbia e em outros Estados neoliberais não são mencionadas na mídia corporativa dos Estados Unidos, que tem tratado o governo colombiano, um regime direitista com esquadrões da morte, como um aliado dos EUA (Extra!, 09/02).
Bom, ok, mas são os relatos das condições dos hospitais venezuelanos verdadeiros ou grosseiramente exagerados? “Eles são muitos melhores do que eram 10 anos atrás”, disse um amigo que trabalha num hospital de Caracas. De fato, ele disse que há 10 anos o hospital onde ele trabalha não existia, e novos hospitais estão sendo abertos agora. Um foi inaugurado recentemente na cidade de El Furrial, outro foi aberto em El Vigia, como reportado pelo jornal centrista Últimas Notícias (03/03/2017, 27/04/2018). O governo também expandiu outros, como um centro para tratamento de queimaduras em Caracas e três blocos cirúrgicos no hospital em Villa Cura.
Enquanto isso, o governo está inaugurando uma nova ferrovia de alta velocidade, O Sonho de Hugo Chávez, em março (Correo del Orinoco, 06/02/19). Desde que a mídia dos EUA nunca permitiu reportar nenhuma das conquistas desde que Chávez tomou posse em 1999, mas somente alegações, exageros, ou como observado, falhas completamente inventadas, os leitores têm de consultar uma história alternativa. Aqui há uma oferecida por um venezuelano no Youtube (31/03/2011): “Por Culpa de Chávez”. Exibindo novos hospitais, linhas de trânsito, moradias, fábricas e muito mais construído pelo chavismo, o vídeo pode ajudar a entender porque o governo de Maduro continua a ter o apoio de tanta gente.
Guerra econômica
Isso não é para minimizar os problemas da Venezuela. O país foi atingido, como outros países produtores de petróleo e como nos anos 80 e 90, pelos colapsos dos preços do petróleo. Isso não foi o suficiente para derrubar o governo, então agora a administração Trump criou uma crise artificial ao usar guerra comercial extrema para privar o país de câmbio internacional necessário para importar os bens de primeira necessidade. As medidas de Trump parecem desenhadas para impedir qualquer recuperação econômica.
Como em qualquer país em guerra (e o governo Trump pôs a Venezuela debaixo de condições de tempo de guerra, e está ameaçando com uma invasão imediata), houve desabastecimentos, e produtos que podem ser encontrados principalmente no mercado negro. Isso não deve surpreender ninguém: Durante a Segunda Guerra Mundial nos EUA, uma cornucópia de país não seriamente ameaçado por invasão, houve um racionamento rigoroso de produtos como açúcar, café e borracha.
O governo venezuelano fez com que comida, remédio e fármacos estivessem disponíveis a preços extremamente baixos, mas a maior parte da mercadoria foi levada ao mercado negro, ou cruzou a fronteira em direção à Colômbia, privando venezuelanos de suprimentos e arruinando produtores colombianos. O governo recentemente abandonou alguns dos preços fortemente subsidiados, o que resultou em preços mais altos. Ao longo das últimas semanas, os preços têm descido na medida em que os suprimentos ficaram na Venezuela, especialmente porque o governo obteve maior controle sobre a fronteira com a Colômbia para prevenir o contrabando.
Nunca houve uma discussão séria a respeito de nada disso na mídia corporativa dos EUA, muito menos qualquer discussão acerca da campanha de mentiras ou acerca da guerra da administração de Trump. Não tem havido comparação com as condições das décadas de 80 e 90, nas quais o governo neoliberal venezuelano impôs as receitas econômicas do FMI, resultando em uma revolta popular; o sangrento Caracazo de 1989, quando a repressão indiscriminada do Estado tirou as vidas de centenas (de acordo com o governo da época) ou milhares (de acordo com críticos do então governo), e a lei marcial tirou a vida de muitos outros.
Esforços pela oposição direitista para provocar um levante semelhante, um outro Caracazo que poderia justificar uma “intervenção humanitária” estrangeira falharam repetidamente. Então a administração dos EUA e a mídia corporativa simplesmente recorreram às mentiras mais extremas sobre a América Latina desde as guerras da administração Reagan nos anos de 1980.
- Mark Cook | FAIR
Tradução de Gustavo Santos Kafruni para a Revista Opera. Estudante de Direito da UFRGS, colaborador do Jornal A Pátria e nacionalista.
fevereiro 28, 2019
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