O unilateralismo exasperado dos EUA
02/09/2014
- Opinión
Giuseppe Vacca, para os amigos simplesmente Beppe, é historiador da mais pura escola gramsciana italiana. Com obstinação, ele se define filho espiritual não só de Antonio Gramsci, mas também de Palmiro Togliatti, histórico chefe político-intelectual do Partido Comunista Italiano nos anos do segundo conflito mundial e da Guerra Fria. Destacado organizador cultural e desde sempre empenhado na política militante, Vacca dedicou sua vida aos estudos da História e, em particular, à pesquisa e preservação da memória gramsciana. Guardião dedicado do arquivo histórico do PCI e do acervo manuscrito do pensador sardo, desde 1999, ele é presidente da Fundação Instituto Gramsci. Com ele conversamos sobre a situação política internacional e sua problemática evolução em direção a uma nova ordem mais equilibrada e pacífica.
CartaCapital: Os conflitos internacionais mais antigos e os recentemente abertos nos fazem constatar a grave involução do sistema internacional contemporâneo, incapaz de garantir aos cidadãos deste mundo uma convivência pacífica e digna. Não só as forças democráticas demonstram toda a sua impotência, mas a política, no sentido mais amplo, marca seus limites de modo inédito e preocupante. Qual é a sua avaliação dessa conjuntura?
Giuseppe Vacca: Todas as crises da atualidade, eclodidas mais recentemente ou mais antigas, desde a da Ucrânia até o conflito israelo-palestino, inserem-se em um quadro bastante definido. Podemos dizer que, no fim dos anos 80, esgotou-se um grande sistema estabilizador das tensões internacionais, ou seja, acabou o bipolarismo. Mas, já nos anos 1950, Togliatti afirmava que a nova situação mundial, que ele definia como “policêntrica”, não podia mais ser governada pelo sistema bipolar. Este só acabou definitivamente, após longa crise, com a queda do Muro de Berlim. Lamentavelmente, o fim da Guerra Fria foi acompanhado por uma narração absolutamente inadequada, como se tivesse produzido automaticamente um novo sistema mundial com vencedores e vencidos. As coisas não eram bem assim. O bipolarismo era um sistema de regulamentação fundamentado em bases consensuais: com reconhecimento seja da supremacia dos Estados Unidos, seja do peso político da União Soviética, que se posicionava de bom grado como segunda potência, mas em condição de exercer grande influência. A interpretação errada dos acontecimentos históricos daquela fase determinou uma cegueira política em relação a como substituir a velha ordem internacional por uma nova ordem. A resposta política catastrófica foi o exasperado unilateralismo que caracterizou todas as recentes administrações norte-americanas, com exclusão de Barack Obama. Como os fatos demonstram claramente, em um mundo complexo, onde o bipolarismo já não era suficiente para garantir o equilíbrio, muito menos o unilateralismo podia funcionar.
CC: O autêntico golpe baixo da administração mais unilateralista, a do Bush Jr., foi a Guerra do Iraque. Qual é a sua interpretação daquela decisão?
GV: Além dos argumentos da propaganda oficial – a “exportação da democracia”, por exemplo, foi pura retórica na qual nem o inventor acreditava –, eu acho que a iniciativa norte-americana respondia a um preciso desenho estratégico. Não obstante a inadequada arquitetura europeia que saía de Maastricht (cidade holandesa onde se assinou o tratado de fundação da União Europeia, em 1992), o processo de integração foi acompanhado por algumas pretensões de projeção mediterrânea, lançadas na Conferência de Lisboa (1995). Várias tentativas europeias de caráter político-econômico reabriram a questão inédita da hegemonia na região. A resposta da direita norte-americana foi reafirmar a própria hegemonia manu militari e, ao mesmo tempo, usá-la para abrir um conflito de civilizações, envenenando os poços da convivência com e no mundo islâmico. Consequência direta da invasão do Iraque foi o fim de qualquer aspiração europeia de influência no Mediterrâneo e a exacerbação de todas as tensões preexistentes. Ao mesmo tempo, a guerra determinou alianças que dividiram a Europa, com Tony Blair e Silvio Berlusconi ao lado do George Bush. Em suma, o Iraque representou um golpe também para o processo europeu de integração, porque o restringiu ainda mais no âmbito econômico-comercial, dentro do qual a Alemanha recuperou o papel de grande potência.
CC: O senhor excluiu Obama da lista dos presidentes unilateralistas, mas a nova política exterior norte-americana, definida por alguns estrategistas com o slogan “lead behind” (dirigir por trás das linhas), demonstra falta de liderança no consenso mundial e impotência na ação. Isso se acrescenta à complexidade do quadro que o senhor descreveu. Como sair do impasse para criar estabilidade com justiça?
GV: Obama herdou uma situação de extraordinária e dramática dificuldade: está enfrentando um processo que aponta para a necessidade de redimensionar e redefinir a função internacional dos EUA, sem ter interlocutores válidos e com extrema dificuldade para escolhê-los. A classe dirigente europeia demonstra-se inadequada à grande política. A Rússia, na falta de algum tipo de reconhecimento, trata de reconquistar o espaço perdido com uma política neonacionalista. A China e outras potências se viram como podem nas assimetrias mundiais.
A tentativa mais interessante que Obama está desenvolvendo é a de criar as bases de uma estratégia de regulamentação da economia mundial de tipo concertado e pluralístico. Refiro-me ao estabelecimento das duas mesas de negociação dos tratados de livre-comércio nos eixos do Pacífico e do Atlântico. Se um dia se chegar a definir duas amplas áreas globais de comércio e de investimento regulamentado e equilibrado, além dos benefícios intrínsecos que isso aportará à paz e ao equilíbrio mundial, será finalmente possível enfrentar a questão principal herdada do fim da Guerra Fria, do ponto de vista econômico: o dualismo entre o dólar e o euro.
CC: A tese gramsciana do contraste entre o cosmopolitismo da economia e o nacionalismo da política também pode ser útil como interpretação da atual conjuntura internacional?
GV: É importante lembrar que Gramsci aplicou essa interpretação à crise entre 1929 e 1932, mas propondo inscrever aquele quadriênio em um período histórico muito mais longo, que se caracterizou pela manifestação daquela contradição e pela abulia das classes dirigentes para resolvê-la da única forma possível, ou seja, adequando as formas e os espaços da regulamentação política a uma economia sempre mais mundializada. Aquela contradição que Gramsci apontava resulta ainda uma interpretação valiosa nos dias de hoje e, eu diria, muito mais explosiva, em um período histórico em que a globalização da economia é muito mais extensa, e as classes dirigentes inclinadas ao nacionalismo, ainda mais numerosas. Alguns processos de regionalização das políticas se verificaram nas últimas décadas, mas não se desenvolveram com a intensidade que teria sido necessária para contribuir para uma nova ordem mundial. Por outro lado, o número maior de atores da economia mundial de hoje, em relação ao período da crise de 1929/1932, torna ainda mais imprevisível a duração da crise, que eu definiria mais exatamente como um conflito econômico mundial. Agora, outro aspecto da análise gramsciana resulta interessantíssimo para a conjuntura atual: a ênfase que ele atribui à estabilidade monetária internacional como solução das crises da economia mundial.
CC: Esta é a razão pela qual o senhor está entre os que defendem uma nova Bretton Woods. O senhor poderia articular esse pensamento?
GV: Obviamente, uma nova moeda ou uma cesta de moedas de reserva negociadas em nível mundial não poderia coincidir com nenhuma moeda nacional hoje existente. Daí a necessidade de pensar em um novo Bancor, como J. M. Keynes definiu a moeda supranacional por ele idealizada nos anos 1940. Podemos observar que as economias norte-atlânticas, no seu conjunto, representam o maior agregado de recursos e a parte mais integrada do globo, que poderia ser posta à disposição de uma nova ordem mundial. Mas isso não poderá acontecer sem superar previamente o antagonismo entre o dólar e o euro, que talvez seja a verdadeira causa das crises paralelas, norte-americana e europeia, da última década. O Ocidente constitui o maior patrimônio de riqueza, ciência e cultura do mundo. Portanto, tem o dever de investir esses recursos para promover as interdependências e a coesão global.
CC: Nesse quadro, os limites das esquerdas e do socialismo europeu parecem graves. O que aconteceu com eles nesses últimos 25 anos de subalternidade?
GV: A bem da verdade, trata-se de uma história menor, ou seja, acabado o bipolarismo, as social-democracias assumiram uma dimensão e um papel predominantemente nacionais, que é a verdadeira marca do nascimento delas. Favoreceram políticas de reestruturação econômica e financeira dos próprios Estados e transformações defensivas das políticas de bem-estar social. Não foram capazes de reinventar sua identidade. Não se trata de uma grande história, e por isso não podemos esperar grandes coisas dela. Esse fracasso foi a razão pela qual, na Itália, foi criado o Partido Democrático. No nosso país, a devolução do patrimônio político do antigo PCI ao leito socialista teria sido anacrônica. Por motivos históricos precisos, não se pôde realizar uma esquerda unificada dentro da tradição social-democrata, como no resto da Europa. Quando explodiu a tradição de referência, a do comunismo internacional, surgiu na Itália justamente a tentativa, eivada de erros e limites, de se criar um novo sujeito que tivesse a finalidade política de construir outra tradição, além do comunismo que não existia mais e da social-democracia encolhida nas fronteiras nacionais.
CC: Em relação aos conflitos locais e as dificuldades norte-americanas, o papel da Europa como potência político-militar poderia contribuir para o equilíbrio global?
GV: A maneira de resolver a questão do responsável pela política exterior europeia, mesmo com os tempos vagarosos próprios da Europa, indicará uma resposta em um sentido ou em outro. Porque aquela que parece uma disputa entre egoísmos nacionais ou pessoas representa, na verdade, um importante pacote estratégico. Significa, em outros termos, estabelecer se e em que medida deve retomar fôlego uma política externa europeia voltada para o Mediterrâneo. Esse é o desafio. Desse ponto de vista, é importante que a Itália reivindique esse papel, para o qual está destinada como nenhum outro país nessa região. Em relação à questão militar, concluo afirmando que, para ser potência, é claro, depois da moeda vem a espada
CC: Podemos afirmar que a esquerda contemporânea ou é internacionalista ou não existe?
GV: Pela primeira vez em décadas, a esquerda hoje pode efetivamente sê-lo. Poderíamos até dizer que, hoje, qualquer entidade tem de ser internacionalista ou não ser nada. Essa é outra cara da chamada globalização.
CC: Pode-se nutrir alguma confiança na renovação dessas forças e na possibilidade de recuperação de uma dimensão internacional da ação política?
GV: Seguramente, já se deram passos encorajadores nessa direção. O que aconteceu nas recentes eleições europeias, por exemplo, pode se revelar de valor histórico, em perspectiva. Pela primeira vez, desde 1979, voltaram a se realizar eleições políticas do Parlamento Europeu. Os cidadãos puderam influenciar as políticas continentais. Na tentativa de criar nessa conjuntura uma supranacionalidade dos partidos, é correto admitir que o socialismo europeu teve um papel fundamental.
CC: A crise dos partidos tradicionais é particularmente evidente na Europa, mas parece ser um um fato mundial. De que outra maneira é possível recuperar as funções de intermediação política, formação do consenso e organização que pertenciam às antigas tradições?
GV: A crise dos partidos, nesses termos, pertence ao passado. Essas forças assumiram tais caraterísticas durante a Revolução Industrial, que viu também o surgimento dos sindicatos, do movimento cooperativo, do mutualismo etc. Com a transformação estrutural das sociedades contemporâneas, podemos constatar que a crise dos partidos como organizações faz parte da crise da velha forma de soberania do Estado Nacional moderno. O ciclo dos partidos como sujeitos hegemônicos na construção do consenso, atuando dentro da dimensão estatal da política, acabou. Uma nova fase teve início com a revolução neoconservadora americana, como é mais correto definir a época do consenso neoliberal, através da presença, na arena mundial, de outro tipo de partido sempre mais globalizado. Essa tipologia coincide com a concepção gramsciana, que não era baseada na ideia de partido como organização, mas como intelectual coletivo. Uma entidade nova capaz de construir grandes processos e movimentos com os mais diferentes recursos, em torno de um programa onde se estabeleça o tipo de sociedade, cultura e economia a ser coerentemente perseguido. Esse foi e continua sendo o paradigma da revolução neoconservadora, que inaugurou, de fato, formas novas de partidos. Desde então, os processos de internacionalização da política tiveram cada vez mais um caráter relativamente coeso e homogêneo no fomento de novas mentalidades, organizações, formas econômicas ou sociais, que foram originadas por novos centros de estímulo, ou seja, os partidos da nova era. Para exemplificar, com relação ao Velho Continente, o grande discrímen encontra-se hoje entre as forças a favor da União Europeia e aquelas contrárias a ela, os chamados eurofóbicos, ou eurocéticos. Estamos no começo de uma fase secular do Príncipe moderno e a luta pela hegemonia já está ocorrendo em novos campos. Talvez para aqueles que não são mais jovens possa surgir a saudade dos velhos partidos que estavam perto de casa e eram controláveis, mas, assim como aqueles tempos, também aqueles partidos acabaram definitivamente.
CC: Existe o perigo de que o sistema político perca o controle e o que hoje o senhor define como conflito econômico mundial possa degenerar de modo irreparável?
GV: Já aconteceu duas vezes no século passado, e explodiram a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. A guerra nunca pode ser excluída. Poderia sempre acontecer e seria difícil prevê-la. Nos dias de hoje existe uma sofisticação tecnológica que era inimaginável na Segunda Guerra Mundial e provocaria consequências catastróficas. Por isso, se considerarmos a guerra como uma não solução dos conflitos, a única saída será a cooperação.
*Publicada originalmente na edição 813 de CartaCapital, com o título "E veio o unilateralismo exasperado"
03/09/2014
https://www.alainet.org/en/node/102987
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