Seis Tiros
21/03/2005
- Opinión
Os seis tiros que atingiram a irmã Dorothy Stang têm calibre maior do que podemos imaginar. Eles têm origem em diversos elementos da nossa história e da conjuntura atual, relacionados à estrutura fundiária brasileira, ao uso e ocupação da terra e ao controle de recursos naturais.
A iniciativa do governo em reforçar a segurança na região de Anapú, assim como as medidas administrativas que restabelecem áreas de proteção ambiental e destinam terra para comunidades locais, têm um importante significado. Porém, é necessário combater outras causas da violência e da desigualdade social no campo.
Dos 4 milhões de imóveis rurais do País, 70 mil detêm 43% do total das terras registradas no cadastro do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Estes imóveis somam 200 milhões de hectares, em relação a um total de 420 milhões. Na região amazônica, por exemplo, uma só propriedade possui área superior ao estado de Sergipe.
Esta grande distorção fundiária ilustra a importância de estabelecermos legislação sobre o limite da propriedade no Brasil, como é o caso em muitos países.
Portanto, pode-se dizer que o primeiro tiro contra a irmã Dorothy teve sua origem na não-realização da reforma agrária. No governo FHC, 70% dos assentamentos foram criados na Amazônia. No governo Lula, esta cifra caiu para 51%. Entretanto, este alto índice de assentamentos na região não foi motivado por um verdadeiro compromisso com a reforma agrária. Ao contrário, o motivo tem sido o baixo preço das terras. Porém, estes assentamentos se encontram em condições muito precárias em relação a infraestrutura básica, como acesso a estradas, água e energia.
As difíceis condições de sobrevivência nestes projetos representam o principal motivo de abandono das áreas, estimulando a grilagem e o desmatamento. O fracasso da política de colonização da Amazônia, nos anos 60 e 70, bem como as dificuldades dos atuais projetos de reforma agrária na região já deveriam ter indicado a importância de mudanças neste modelo. Como a irmã Dorothy defendia, o governo deve garantir condições para a criação de projetos coletivos de assentamento, que permitam o manejo não destrutivo dos recursos naturais. As terras destinadas à reforma agrária devem ser inalienáveis, isto é, devem continuar pertencendo ao Estado.
O combate à grilagem e a aceleração da reforma agrária podem ser estimulados através de medidas administrativas como a inversão do ônus da prova nos processos de desapropriação. Ou seja, quem deveria ter que provar a legalidade do registro dos imóveis, sua produtividade e localização são os supostos proprietários e não o governo. Esta regra serve para todos os brasileiros que declaram imposto de renda. Serve também para qualquer pessoa que seja abordada pela Polícia Rodoviária e que tenha que apresentar os documentos de seu veículo. Seria ridículo imaginar que o policial é quem deveria procurar os documentos do motorista.
O segundo tiro representa o poder dos grileiros e madeireiros. A grilagem de terra no Brasil é um sinal da ausência do Estado na defesa de seu território. Ou seja, só ocorre o “grilo” das terras públicas porque há omissão (e, em alguns casos, complacência) de diferentes setores do Executivo, Legislativo e Judiciário. Segundo dados do Incra, dos 600 milhões de hectares cultiváveis no Brasil, 250 milhões são áreas presumivelmente devolutas, a sua maior parte ocupada por “grileiros”.
A prática de venda irregular de lotes é comum nos estados da Amazônia legal, como é o caso do Amapá, onde a empresa estadunidense de celulose, International Paper, conseguiu a adquirir 6.000 hectares. Esse mecanismo de aquisição ilegal ocorreu através da regularização de terras públicas ocupadas por posseiros, com a conivência do Incra e dos cartórios locais.
O terceiro tiro pode ser representado pela lentidão do governo na homologação de terras indígenas e na regulamentação de áreas quilombolas. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), somente 6,66% das terras indígenas demarcadas foram homologadas até 2004. Este é o caso de Raposa Terra do Sol, que está pronta para receber homologação desde 1998. Em relação à regularização das mais de 2000 áreas quilombolas, dados do antropólogo Alfredo Wagner demonstram que, somente 71 foram tituladas desde 1988. Se os processos seguirem no ritmo atual, sua regularização irá demorar mais 500 anos.
A expansão do agronegócio, através de uma política agrícola voltada para a exportação, poderia ser comparada ao quarto tiro. Algumas das principais conseqüências desta política são a degradação do meio ambiente, a concentração de renda e o desemprego no campo. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA), a soja gera somente um emprego para cada 200 hectares, devido ao seu alto grau de mecanização.
Este modelo tem sido relacionado ainda com sérias denúncias de trabalho escravo e violência contra trabalhadores rurais. De 1995 a outubro de 2004, o Grupo Móvel registrou a libertação de 13.119 trabalhadores escravizados, sendo 78% deles encontrados nos estados da Amazônia legal. De 1985 a 2003 a Comissão Pastoral da Terra registrou 429 casos de assassinatos de trabalhadores rurais na região Norte, o que representa mais de 50% das mortes em todo o País.
O governo tem priorizado uma política agrícola que favorece principalmente grandes empresas. Em 2000, mais de 75% do comércio mundial de grãos era controlado por cinco transnacionais. Hoje, somente três empresas (Cargill, Bungi e Dreyfus) dominam este mercado, e têm grande interesse na Amazônia. A Cargill, por exemplo, insistiu na construção de um porto graneleiro em Santarém.
A armazenagem de grãos requer ainda um alto consumo de energia, o que nos leva ao quinto tiro, ou seja, os grandes projetos na Amazônia. No Brasil, existem aproximadamente 2.000 barragens. A Eletrobrás prevê a construção de mais 494 grandes barragens até 2015, sendo que 64% do potencial hidroelétrico brasileiro estão na Amazônia. Alguns dos maiores projetos previstos na região são o de Belo Monte, no Rio Xingu (Pará) e as barragens de Santo Antonio e Jirau, no Rio Madeira (Rondônia). O faturamento das empresas geradoras e distribuidoras de energia no Brasil em 2003 foi de $48 bilhões de reais. A maior parte destes recursos foi enviada ao exterior, como remessa de lucros.
Por fim, o sexto tiro representa a disputa pelo controle de recursos naturais na Amazônia. A luta da irmã Dorothy na defesa da biodiversidade gerou forte oposição, com conseqüências dramáticas para ela e para as comunidades com as quais ela trabalhava. Esta é uma disputa histórica, que já resultou na apropriação indevida de conhecimento tradicional através da biopirataria e na destruição de milhares de hectares de floresta. Mas, principalmente, resultou na morte de centenas de pessoas que defendiam justiça econômica, social e ambiental.
* Marcelo Resende é membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos. Foi presidente do Instituto de Terras de Minas Gerais (1999-2002) e presidente do Instituto de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) em 2003.
* Maria Luisa Mendonça é jornalista e membro da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
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