I. A divisão no sindicalismo dos EUA
14/08/2005
- Opinión
Nos Estados Unidos, pátria da desregulamentação trabalhista e da besta-fera imperialista, os trabalhadores estão diante de um novo e traumático impasse. A outrora poderosa central sindical do país, resultante da fusão da AFL (American Federation of Labor) e da CIO (Congress of Industrial Organizations) em 1955, sofreu um profundo racha no seu congresso do final de julho. Seis dos 56 sindicatos nacionais afiliados à central decidiram abandonar a entidade. O baque mais duro se deu com as saídas da União Internacional dos Empregados em Serviços (Seiu), que tem 1,8 milhão de sindicalizados, e da Irmandade Internacional dos Condutores (Teamsters), com 1,4 milhão de membros. Outras três entidades do setor de serviços e a legendária Federação dos Trabalhadores na Agricultura também boicotaram o congresso da AFL-CIO.
De imediato, a desfiliação do Seiu e dos Teamsters privará a central de um terço dos seus 13 milhões de sócios e de aproximadamente US$ 30 milhões em contribuições – um sexto do orçamento anual da AFL-CIO. A redução da receita aprofundará ainda mais a crise financeira da entidade que já demitiu 100 dos seus 400 funcionários. O golpe mais violento, porém, se dá na sua representatividade e força política. A central, que nos anos 70 possuía quase 35% de sindicalizados, hoje representa apenas 8% dos empregados do setor privado e 12% do total da força de trabalho (incluindo o setor público). Vítima da truculência dos governos neoliberais, do desmonte trabalhista e da reestruturação produtiva, ela até hoje não conseguiu repor suas forças nas bases e perdeu influência na sua pragmática ação lobista na política nacional.
Os reais motivos do racha e seus desdobramentos ainda são nebulosos. O setor dissidente acusa a direção liderada por John Swweney, 71 anos e reeleito pela quarta vez para a presidência da central, de imprimir uma marca burocrática à entidade. “Os trabalhadores precisam de organizações novas, modernas e cheias de dinamismo e até o momento o movimento sindical não foi capaz de mudar”, explica Andrew Stern, um ex-protegido de Sweeney e seu sucessor no comando da Seiu, o maior sindicato dos EUA. Jimmy Hoffa, presidente do Teamsters e filho de um sinistro personagem da história sindical daquele país, acusa ainda a central de priorizar as relações com o Partido Democrata, que aplica a mesma política dos republicanos de Bush. Os rebeldes agora estão organizados na “Coalizão Mudar para Vencer” (CTWC, em inglês).
Já para o presidente reeleito da AFL-CIO, os dissidentes fazem o jogo dos “empresários renegados e dos políticos insensíveis” ao dividirem o sindicalismo num momento tão adverso à luta dos trabalhadores. O racha também debilita a principal base de sustentação do Partido Democrata e facilita a consolidação da maioria Republicana. Nas eleições presidenciais de novembro de 2004, a central mobilizou cerca de 225 mil militantes na campanha e, junto com suas afiliadas, doou quase US$ 100 milhões ao democrata John Kerry, derrotado por George Bush. Ela acusa os dois últimos governos republicanos de serem os maiores inimigos da história do sindicalismo. Devido à política anti-sindical de Bush, apenas um em cada 12 dos trabalhadores do setor privado se sindicalizou no último período; há meio século, era um em cada três.
Como argumenta Jacques Coubard, em artigo no diário comunista francês L’Humanite, a atual fratura tem como de pano de fundo o vertiginoso enfraquecimento do sindicalismo local nas últimas décadas. “Áreas inteiras da indústria e dos serviços foram transferidas para outros países em nome da sacro-santa lei do mercado. A rotatividade, já acentuada, agravou-se em prejuízo da renda dos assalariados. Tudo isto, após vinte anos, contribuiu para quebrar as solidariedades tradicionais, num país onde vigora uma forte cultura individualista. Um sentimento de impotência se estabeleceu na falta de alternativas confiáveis. Enquanto ambas as tendências afirmam o seu desejo de atuarem em conjunto, a polêmica se inflama e já surgem rivalidades pela conquista de novos aderentes. De imediato, não se vê como o racha possa ser superado”.
Recuo histórico
O recente racha na AFL-CIO macula ainda mais a história do sindicalismo estadunidense, que sempre foi marcada por lamentáveis episódios – cisões, vínculos com o banditismo da Máfia, aquisição de vultuosos negócios empresariais e apoio às investidas imperialistas dos EUA (leia nos próximos artigos). Na última fase, porém, houve um certo esforço de arejamento da central. O congresso da AFL-CIO, em outubro de 1995, criou fortes expectativas numa guinada progressista na entidade. “Ele marcou a maior reviravolta já ocorrida no movimento sindical americano. A sua nova direção promete investir na ampliação da base organizada, na articulação dos sindicatos a nível internacional e no enfrentamento com o empresariado”, comemorou, na ocasião, David Moberg, especialista no estudo do sindicalismo ianque.
John Sweeney, então com 61 anos, encabeçou uma chapa de oposição e, para espanto de todos, derrotou o candidato bancado pelo notório anticomunista Lane Kirkland, que presidia a AFL-CIO desde 1979 – até aquela data a esclerosada central só tivera cinco presidentes em mais de um século de vida. Pela primeira vez na história, uma líder dos imigrantes hispânicos, Linda Chávez-Thompson, ingressou na executiva da central (a segunda mulher no comando da entidade). A surpreendente vitória refletiu o acelerado processo de degradação do trabalho nos EUA, com a adoção dos contratos precários, a redução dos gastos públicos com assistência (Medicard, para deficientes, e Medicare, para idosos) e a corrosão de salários. A maioria negra e imigrante, brutalmente explorada e sempre discriminada pela central, teve peso neste resultado.
Algumas mudanças, apesar de tímidas, passaram a se manifestar na direção da AFL-CIO. Ela intensificou a pressão contra as corporações empresariais e seus tratados de “livre-comércio”, centrando as críticas no Nafta, e articulou-se com os novos movimentos sociais dos EUA. Nas históricas manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC), na cidade de Seattle, em novembro-dezembro de 1999, ela se fez presente. Esta nova postura foi saudada pelo Le Monde Diplomatique, principal veículo do movimento altermundista. No artigo intitulado “Outra chance para a esquerda americana”, Barbara Epstein concluiu: “Após um prolongado declínio, a esquerda poderá – se a aliança entre sindicatos, juventude radicalizada e entidades de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos for consolidada – afirmar sua existência”.
Os ajustes da linha política da AFL-CIO, porém, não conseguiram estancar a sangria do sindicalismo. O terrorismo de Estado do governo George Bush também fez suas vítimas internamente, com o aumento da miséria social e da precarização do trabalho. Até a conservadora revista The Economist constatou a que “a desigualdade de renda está atingindo níveis nunca vistos desde o final do século XIX”. Diante da brutal ofensiva do capital, o sindicalismo ingressou em grave crise estrutural. O próprio John Sweenwy preferiu adotar uma conduta conciliadora, afastando-se dos movimentos sociais, taxado-os de “radicais”, e apostou todas as suas fichas numa saída institucional, na campanha derrotada de John Kerry. O profundo racha da AFL-CIO pode indicar que a sangria do movimento sindical dos EUA ainda vai durar algum tempo.
- Altamiro Borges é jornalista, membro do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro “Encruzilhadas do sindicalismo” (Editora Anita Garibaldi, junho de 2005).
https://www.alainet.org/en/node/112716
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