A “síndrome do país sério”
17/04/2007
- Opinión
Essa síndrome se expressa mais ou menos assim nos comentaristas do bloco conservador: “ah, se este fosse um país sério...”, “ah, se estivéssemos num país decente...”, então Lula não estaria onde está ou a popularidade dele não estaria tão alta.
Dada a derrota da direita nas eleições presidenciais de 2006, dada ainda a derrota também da fragorosa campanha na mídia para impedir a reeleição de Lula, e dada a alta taxa de popularidade que o presidente mantém hoje, uma síndrome tomou conta dos comentaristas do bloco conservador, que descobriram que não são a “pedra no lago”, mas estão mais para os “tempestuosos em copo d\'água”.
É a “Síndrome do país sério”. Também poderia ser descrita como a “Síndrome da anestesia”.
Ela se expressa mais ou menos assim: “ah, se este fosse um país sério...”, “ah, se estivéssemos num país decente...”, então Lula não estaria onde está ou a popularidade dele estaria lá embaixo ou haveria clamores massivos pela sua deposição. “É que a população está anestesiada”, prossegue o discurso da síndrome. “Anestesiada” pelo quê? Pelas políticas “populistas”, ora. Só a população? “Não”, continua a síndrome da síndrome: “também as ongues, os movimentos sociais”, “anestesiados” pelas verbas oficiais que geram dependência de favores.
Quando se lêem essas coisas, tem-se a impressão de que a batalha que está sendo travada com ongues e partes de movimentos camponeses, em torno do projeto de transposição do Rio São Francisco, o abril vermelho do MST, as lutas em torno das hidrelétricas do Madeira e do Xingu, tudo isso não passa de uma enorme cortina de fumaça para enganar tolos, que na verdade todas essas e outras forças sociais estão só dando a impressão de discordarem de projetos do governo, para no fundo aplaudi-lo e engordar-lhe os índices de popularidade.
Outros “formadores de opinião” vão mais longe. Apontam que vivemos num país de povo “macunaímico”, ou seja “sem nenhum caráter”, o que mostra pelo menos uma leitura pobre ou redutora do famoso personagem de Mário de Andrade, atribuindo-lhe vezo moralista completamente estranho ao universo do prócer do Modernismo. Por isso não seríamos um “país sério”, valendo-se todos estes “formadores” de uma versão também empobrecida da famosa frase atribuída ao General De Gaulle, cuja autoria nunca foi confirmada: “Le Brésil n\'est pas un pays sérieux”. A versão é empobrecida porque ela é assumida como verdadeira e universal, deslocada do contexto em que ela surgiu, aquele da chamada “guerra da lagosta”, em 1962, quando do desafio envolvendo pesqueiros franceses, o governo francês, e o governo brasileiro, que impedira que os barcos gauleses pescassem o crustáceo livremente em águas nacionais, particularmente no Nordeste, onde este aracnídeo (ou seria escorpião?) do oceano proliferava. Ou seja, a frase surgiu num momento em que a diplomacia e mesmo as corvetas da Marinha brasileira desafiavam uma potência européia, e seja lá quem a produziu, se o General ou não, ela manifestava simplesmente o desprezo eurocêntrico pela nação crioula, no caso “o país do carnaval” que ousava desafiar uma “matriz da civilização”.
Em suma o que esta “Síndrome do país sério” manifesta é o explícito e profundo horror que este tipo de raciocínio e sentimento manifesta pelo país e, é claro, o seu povo, seja ele então considerado “o povão” assustador que preferiu o aeroLula ao candidato que não decolou, ou “o povinho” que não consegue se por de pé diante dos povos excelsos do hemisfério norte.
Deve-se reconhecer, em primeiro lugar, que esse tipo de visão se baseia numa visão completamente equivocada sobre aquelas bandas do norte, onde, se há exemplos de organização, também há de exclusão, como demonstraram as manifestações do ano passado na colenda França, país onde supostamente teria se originado a famosa frase que ora batiza a Síndrome.
Em segundo lugar este horror lembra aquele que Sérgio Buarque de Hollanda apontava em relação aos reformadores positivistas do Estado brasileiro, quando da construção da República Oligárquica, que era o de abrirem a janela e não darem com o Sena nem o Reno nem o Tâmisa, mas com bananeiras, o semi-árido e o sertão a perder de vista, sem falar nas nascentes favelas do Rio de Janeiro. A diferença substancial entre aqueles positivistas enragés e os atuais “formadores de opinião” é que eles tinham um projeto de país, equivocado e em alguns vezes até racista, apoiado no suposto branqueamento da nação, mas em todo o caso projeto – desconstruído em seus aspectos conservadores exatamente pela consciência do macunaímico personagem e pelos estudos antropológicos do também conservador Gilberto Freyre. Quanto aos atuais “formadores de opinião” engolfados pela Síndrome, o seu projeto é o próprio horror ao país, pois o que constroem é a visão de que se o país não é sério, porque o povo é pusilânime e “macunaímico”, neste sentido equivocado em relação ao de Mário, e política deveria ser coisa séria, então a conclusão aparentemente lógica deste na verdade sofisma é a de que há uma antinomia intransponível entre os dois reinos, o da política e o do “povão/povinho”. Em suma, o que subjaz a todo esse discurso do desencanto conservador é a matriz de que soberania nacional/popular é um ideal torpe num país “como o nosso”. Daí o tom de desencanto, que encontra correlato na falta de perspectiva política das oposições institucionais, que concentram sua energia em formar não uma, mas duas CPIs da crise nos aeroportos, batizada de “apagão aéreo”, tamanha é a sua disputa interna por palanques televisivos, e que, em termos de projeto para o país, nada têm mostrado. A não ser a adesão entreguista ao ideário neoliberal, que, por exemplo, procura agora desregulamentar de vez a fiscalização sobre o mundo das relações empresa/trabalhador através da sub-reptícia emenda 3, vetada pelo Presidente cuja pessoa física aqueles “formadores” ao mesmo tempo odeiam e desprezam.
Em suma, é o país imaginado pelos tais “formadores” que não é para ser levado a sério, a não ser no sentido de ameaça à soberania do país sério, a do povão que assustou, com sua presença, o mundinho dos grandes privilégios de classe que organizam a tradicional política e a tradicional grande mídia brasileira.
- Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior
Fonte: Agencia Carta Maior
http://agenciacartamaior.uol.com.br
Dada a derrota da direita nas eleições presidenciais de 2006, dada ainda a derrota também da fragorosa campanha na mídia para impedir a reeleição de Lula, e dada a alta taxa de popularidade que o presidente mantém hoje, uma síndrome tomou conta dos comentaristas do bloco conservador, que descobriram que não são a “pedra no lago”, mas estão mais para os “tempestuosos em copo d\'água”.
É a “Síndrome do país sério”. Também poderia ser descrita como a “Síndrome da anestesia”.
Ela se expressa mais ou menos assim: “ah, se este fosse um país sério...”, “ah, se estivéssemos num país decente...”, então Lula não estaria onde está ou a popularidade dele estaria lá embaixo ou haveria clamores massivos pela sua deposição. “É que a população está anestesiada”, prossegue o discurso da síndrome. “Anestesiada” pelo quê? Pelas políticas “populistas”, ora. Só a população? “Não”, continua a síndrome da síndrome: “também as ongues, os movimentos sociais”, “anestesiados” pelas verbas oficiais que geram dependência de favores.
Quando se lêem essas coisas, tem-se a impressão de que a batalha que está sendo travada com ongues e partes de movimentos camponeses, em torno do projeto de transposição do Rio São Francisco, o abril vermelho do MST, as lutas em torno das hidrelétricas do Madeira e do Xingu, tudo isso não passa de uma enorme cortina de fumaça para enganar tolos, que na verdade todas essas e outras forças sociais estão só dando a impressão de discordarem de projetos do governo, para no fundo aplaudi-lo e engordar-lhe os índices de popularidade.
Outros “formadores de opinião” vão mais longe. Apontam que vivemos num país de povo “macunaímico”, ou seja “sem nenhum caráter”, o que mostra pelo menos uma leitura pobre ou redutora do famoso personagem de Mário de Andrade, atribuindo-lhe vezo moralista completamente estranho ao universo do prócer do Modernismo. Por isso não seríamos um “país sério”, valendo-se todos estes “formadores” de uma versão também empobrecida da famosa frase atribuída ao General De Gaulle, cuja autoria nunca foi confirmada: “Le Brésil n\'est pas un pays sérieux”. A versão é empobrecida porque ela é assumida como verdadeira e universal, deslocada do contexto em que ela surgiu, aquele da chamada “guerra da lagosta”, em 1962, quando do desafio envolvendo pesqueiros franceses, o governo francês, e o governo brasileiro, que impedira que os barcos gauleses pescassem o crustáceo livremente em águas nacionais, particularmente no Nordeste, onde este aracnídeo (ou seria escorpião?) do oceano proliferava. Ou seja, a frase surgiu num momento em que a diplomacia e mesmo as corvetas da Marinha brasileira desafiavam uma potência européia, e seja lá quem a produziu, se o General ou não, ela manifestava simplesmente o desprezo eurocêntrico pela nação crioula, no caso “o país do carnaval” que ousava desafiar uma “matriz da civilização”.
Em suma o que esta “Síndrome do país sério” manifesta é o explícito e profundo horror que este tipo de raciocínio e sentimento manifesta pelo país e, é claro, o seu povo, seja ele então considerado “o povão” assustador que preferiu o aeroLula ao candidato que não decolou, ou “o povinho” que não consegue se por de pé diante dos povos excelsos do hemisfério norte.
Deve-se reconhecer, em primeiro lugar, que esse tipo de visão se baseia numa visão completamente equivocada sobre aquelas bandas do norte, onde, se há exemplos de organização, também há de exclusão, como demonstraram as manifestações do ano passado na colenda França, país onde supostamente teria se originado a famosa frase que ora batiza a Síndrome.
Em segundo lugar este horror lembra aquele que Sérgio Buarque de Hollanda apontava em relação aos reformadores positivistas do Estado brasileiro, quando da construção da República Oligárquica, que era o de abrirem a janela e não darem com o Sena nem o Reno nem o Tâmisa, mas com bananeiras, o semi-árido e o sertão a perder de vista, sem falar nas nascentes favelas do Rio de Janeiro. A diferença substancial entre aqueles positivistas enragés e os atuais “formadores de opinião” é que eles tinham um projeto de país, equivocado e em alguns vezes até racista, apoiado no suposto branqueamento da nação, mas em todo o caso projeto – desconstruído em seus aspectos conservadores exatamente pela consciência do macunaímico personagem e pelos estudos antropológicos do também conservador Gilberto Freyre. Quanto aos atuais “formadores de opinião” engolfados pela Síndrome, o seu projeto é o próprio horror ao país, pois o que constroem é a visão de que se o país não é sério, porque o povo é pusilânime e “macunaímico”, neste sentido equivocado em relação ao de Mário, e política deveria ser coisa séria, então a conclusão aparentemente lógica deste na verdade sofisma é a de que há uma antinomia intransponível entre os dois reinos, o da política e o do “povão/povinho”. Em suma, o que subjaz a todo esse discurso do desencanto conservador é a matriz de que soberania nacional/popular é um ideal torpe num país “como o nosso”. Daí o tom de desencanto, que encontra correlato na falta de perspectiva política das oposições institucionais, que concentram sua energia em formar não uma, mas duas CPIs da crise nos aeroportos, batizada de “apagão aéreo”, tamanha é a sua disputa interna por palanques televisivos, e que, em termos de projeto para o país, nada têm mostrado. A não ser a adesão entreguista ao ideário neoliberal, que, por exemplo, procura agora desregulamentar de vez a fiscalização sobre o mundo das relações empresa/trabalhador através da sub-reptícia emenda 3, vetada pelo Presidente cuja pessoa física aqueles “formadores” ao mesmo tempo odeiam e desprezam.
Em suma, é o país imaginado pelos tais “formadores” que não é para ser levado a sério, a não ser no sentido de ameaça à soberania do país sério, a do povão que assustou, com sua presença, o mundinho dos grandes privilégios de classe que organizam a tradicional política e a tradicional grande mídia brasileira.
- Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior
Fonte: Agencia Carta Maior
http://agenciacartamaior.uol.com.br
https://www.alainet.org/en/node/120721
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