Neoliberalismo é religião. E da pior espécie, a messiânica
- Análisis
Em matéria de movimentos religiosos há dois movimentos tectônicos, isto é, profundos, que de vez em quando afloram: o profético e o messiânico.
O movimento profético, em geral, é mais progressista: olha para o futuro. Os profetas bíblicos não praticavam as artes da adivinhação. Mais corretamente, praticavam a advertência e a previsão. Pode-se resumir muito de seus escritos (a eles atribuídos) a uma fórmula mais ou menos assim: “olhem para o mal que estão fazendo; e se assim continuarem, vejam no que vai dar”. São reformadores sociais, Isaías à frente, que condena aquele que não ouve o pranto e a queixa do órfão ou da viúva, símbolos do abandono.
Já o movimento messiânico olha para o futuro mirando um espelho retrovisor. Quer reinstalar um paraíso perdido e, ao não conseguir seu intento, atribui a falha à falta de fé suficiente por parte dos praticantes, vendo no fracasso o sinal de que novas tentativas são necessárias para trazer de volta o reino de Deus. Os poderes da restauração se concentram num enviado que, de fracasso em fracasso, vai se reencarnando em novas versões que protagonizam estas novas tentativas.
O neoliberalismo e seus crentes agem desta segunda forma. Só que neste mundo laico da política moderna, a tradicional figura do messias é substituída ou pelo menos acompanhada pelos sacerdotes – economistas – que repetem à exaustão as fórmulas fracassadas. E fazem seus crentes carentes acreditarem que estão no rumo certo, graças à fé que têm em suas fórmulas cabalísticas.
O neoliberalismo faz água e pega fogo (milagre!) no mundo inteiro. Afogou e incendiou o Chile, o Equador, o Haiti, está incendiando o Líbano, devastou grande parte da África, mergulhou o México e a Argentina em crise após crise e vai imbecilizando os Estados Unidos do Alaska ao Rio Grande (Bravo, para os mexicanos), além de ter fraturado a Europa, levado o Reino Unido ao impasse do Brexit e a este “buraco sem fundo” chamado Boris Johnson.
Mas nada disto demove os sacerdotes da fé neoliberal em seus mantras e suas mandingas que só produzem desgraças. Permanecem eles surdos – confirmando o anátema de Isaías – aos queixumes do povo que vão torturando com suas austeridades que não levam a lugar nenhum, somente ao arrocho das vidas dos cidadãos e cidadãs comuns, abrindo a ferro e fogo suas mentes para os algoritmos da enganação.
Há assim um traço profundo de união entre neoliberalismo e este neo-pentecostalismo que grassa no Brasil e nos Estados Unidos, além de alhures, estas religiões do sucesso barato e imediato das rezas repetidas à exaustão mental dos que nelas crêem. Ninguém reproduz melhor esta imagem do que a trindade que tomou conta do espaço federal brasileiro: Messias – Guedes – Moro, com sua corte de apóstolos que reúne desde o maçônico Mourão ao prestidigitador da destruição do meio ambiente, o ministro Salles, e a milagreira Damares, a menina da goiabeira ardente. E muitos e muitas outras.
Nunca um governo foi tão inepto, nunca um governo produziu tão pouco – ou tão nada – em matéria de medidas efetivas e eficazes para combater a crise que vivemos. Nem na República Velha, nem na Ditadura de 64, nem mesmo nas Capitanias Hereditárias.
Apontem-me algo de bom que este governo tenha produzido nestes dez meses de desastres e perversidade contínuas que eu fecharei este blogue para sempre.
Messianicamente o governo vive numa bolha passadista, requentando imagens da Guerra Fria para alimentar a fé de seus correligionários mais empedernidos; ou fica repetindo a reza da Reforma da Previdência, enquanto estende uma cortina de fumaça (o termo é adequado) sobre o que acontece no vizinho Chile e na vizinha Argentina.
Ao mesmo tempo, assopra as velas de réquiem, pensando que são brasas, da finada Operação Lava-Jato que, como um zumbi, vai continuar a nos aterrorizar com suas assombrações por muito tempo, mas já é letra-morta.
Atenção: como costuma acontecer com os movimentos messiânicos, eles só se consumam e se consomem pelo desastre catastrófico a que levam. Teremos, depois, de reerguer o país das cinzas. Literalmente.
23/10/2019
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