Camponeses: mais além da convivência com o capital

23/01/2015
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1.    A PERSISTÊNCIA CAMPONESA
 
Numa formação econômica e social complexa como a brasileira os camponeses (o campesinato[1]), na sua imensa diversidade, convivem contemporaneamente com as empresas capitalistas de maneira estruturalmente conflitiva devido à exploração econômica a que estão por elas submetidos. Em algumas circunstâncias, como nos contratos de produção e ou nos processos de integração, como por vezes esse processo é referido para dar conta das parcerias no processo de produção entre camponeses e empresas capitalistas, essa exploração se dá de maneira consentida devida a algumas vantagens conjunturais que os camponeses podem usufruir nessas condições de relações econômicas desiguais.
 
A premissa que adoto nestas reflexões é a de que a convivência dos camponeses com o capital, numa sociedade de classes e com elevada desigualdade social, se concretiza pela subalternidade camponesa às diversas frações do capital[2]. Portanto, é uma convivência que pressupõe, como condição historicamente inexorável na sociedade capitalista, que os camponeses aceitem como normal a transferência parcial da renda e da riqueza por eles obtidas para as empresas capitalistas rurais e ou urbanas com que se relacionam direta ou indiretamente..
 
Por diversos motivos e fatores, aliados a muito desalento, os camponeses continuam garantindo a sua precária reprodução social ainda que estejam, na sua maioria, cientes da subalternidade ao capital a que estão historicamente submetidos. Os camponeses são, antes de tudo, persistentes, ainda que o limite dessa persistência tenha sido rebaixado devido aos apoios incontestáveis dos governos às grandes empresas capitalistas no campo e da cidade no âmbito político de afirmação do agronegócio.
 
É minha sugestão que essa convivência subalterna dos camponeses perante as diversas frações do capital é uma das dimensões que caracteriza negativamente a reprodução social camponesa na formação econômica e social brasileira. Sem dúvida alguma, diversas frações do campesinato rejeitam política e ideologicamente essa subalternidade, numa busca constante de construção do que denomino ‘a autonomia camponesa perante o capital’[3]. Esta é uma concepção (e construção social e política) bastante complexa e difícil que talvez pudesse se enquadrar, como o fez Octavio Ianni em 1985, no âmbito da idéia de ‘utopia camponesa’.
 
“(...) Eu vou tentar sintetizar a minha ideia neste trabalho: é fazer uma proposta sobre o que poderia ser a utopia camponesa. Isto é, em lugar de pensar o camponês como classe, em lugar de pensar o camponês por suas reivindicações econômicas, em lugar de pensar se o camponês tem ou não viabilidade histórica, eu quero propor para o nosso debate, para trocar ideias, que o que há nas lutas camponesas que permitiria chegarmos à ideia de uma utopia camponesa e de como essa utopia têm a ver com a História, têm a ver com a sociedade nacional. E, então, o elemento utópico que em lugar de ser uma constatação, através da qual nós vamos descartar o campesinato como uma categoria histórica, o elemento utópico, a meu ver, pode ser uma dimensão através da qual é possível resgatar o campesinato enquanto história.”[4]
 
A dúvida e a proposta de Ianni, conforme minha leitura do texto anterior, podem ter sido baseadas na hipótese de que os camponeses seriam, na prática social da expansão capitalista no campo, reduzidos à uma insignificante parcela de produtores rurais, quem sabe como reminiscências de uma maneira de produzir e viver que não mais seria compatível com o desenvolvimento contemporâneo das forças produtivas capitalistas no campo. Entretanto, ainda que as empresas capitalistas tenham se expandido fortemente (revolução verde burguesa das décadas de 1970 a 1990), provocando a concentração e centralização da apropriação privada das terras agricultáveis e dos recursos naturais do país, e eliminando pela pressão concorrencial econômica parcelas do campesinato, seria temeroso e impertinente se afirmar que no Brasil os camponeses e sua produção rural deixaram (ou deixarão) de ser relevantes para a economia rural brasileira.
 
Ainda assim, apesar da importância atual da produção camponesa de alimentos para a sociedade brasileira, algumas questões de fundo incomodam e requerem considerações sobre a sua pertinência histórica. Duas indagações/afirmações possíveis (que se complementam) seriam:
 
·         O camponês, ao obter renda familiar crescente, se nega como camponês;
·         Osucesso camponês é a sua própria negação.
 
Essas questões me permitem sugerir que um ‘paradoxo camponês’ se instala na prática social camponesa, o qual nos estimula a realizar reflexões sobre a reprodução social camponesa nas sociedades capitalistas contemporâneas. Talvez a principal dúvida que então se instaura é aquela que supõem que o camponês ao obter crescente renda familiar e ter sucesso financeiro tenderia a se transformar consciente ou não num pequeno produtor rural burguês, condição de produção onde o trabalho direto familiar seria substituído gradativa e constantemente pelo trabalho assalariado de terceiros. Tanto a adoção da relação social de assalariamento como o acesso mais assíduo às comodidades e valores da vida urbana poderiam induzir os camponeses a abandonar a prática do trabalho direto familiar camponesa e a deslocarem sua residência familiar para a área urbana.
 
É nesse sentido que as duas afirmações anteriores poderiam ser sintetizadas  numa só: o sucesso camponês, nas condições objetivas e subjetivas da expansão capitalista no campo, tenderia para a sua própria negação.
 
Ora, qual seria então a pratica social camponesa que lhe permitiria alcançar a ‘utopia camponesa’ capaz de resgatar o camponês, não enquanto história, conforme sugestão de Ianni, mas da sua própria história nas sociedades capitalistas?
 
A idéia de Ianni da utopia camponesa estimula a reflexão crítica sobre esse ‘paradoxo camponês’. Numa sociedade onde é hegemônica a concepção de mundo dominante e, como consequência, seus valores éticos tudo levaria a crer que a possibilidade da reprodução social camponesa seria limitada e estaria sempre regida pela contradição entre a melhoria constante da obtenção de renda e de riqueza pelos camponeses e a sua identidade (suposta) com o trabalho familiar direto, este minimizado nas suas penosidades e adversidades pela incorporação de ‘modernidades camponeses’, estas advindas de uma possibilidade não utópica de se construir ou sistematizar um universo próprio (não único) de um saber camponês que seja capaz de exercitar uma contra-hegemonia ao saber dominante capitalista.
 
A idéia de uma contra-hegemonia camponesa está impregnada da possibilidade-potencialidade dos camponeses elaborarem uma proposta para ser estudada e debatida por toda a sociedade de outra concepção do modo de produção no campo distinta do modo de produção capitalista. Proposição essa concebida de tal maneira que a socialização camponesa não seria regida unicamente pelo produtivismo e pela coletivização, ainda que estas dimensões fossem contempladas.
 
2.    O PARADOXO CAMPONÊS
 
A partir das suposições anteriores, quiçá pairando numa dimensão de uma utopia do possível, seria oportuno e necessário se elaborar algumas diretrizes para uma proposta de reflexão-ação sobre uma práxis camponesa, na qual elementos ainda muito simples possam ser articulados na construção de um referencial para a transformação da ordem existente no campo (e na cidade), ordem social essa no sentido de afirmar um novo camponês, então socializado, que consiga melhorar suas condições de vida e de trabalho sem negar a sua condição camponesa (trabalho familiar direto e não assalariamento de terceiros) e sem induzi-lo a se transformar num produtor rural pequeno burguês.
 
Buscando ampliar a reflexão sobre o que aqui denomino de paradoxo camponês tive a oportunidade de dialogar, via e-mail, com o companheiro e professor Francisco de Assis Costa, da UFPA, Belém, PA. No decorrer dessa correspondência, Costa comentou que
 
 “(...) O paradoxo camponês, "seu sucesso é sua negação", é real e severo. Ele, o paradoxo, se verifica em dois momentos. Num momento, digamos, imediato, em que a família que protagoniza o presente altera sua condição, acessando "urbanidades" e, desse modo, se tornando, ela mesma "pequeno burguesa"; desse momento e suas possibilidades emerge outro "momento", de real transmutação: a elevação da eficiência (produtividade?), que foi base para o sucesso camponês, permite que a família transforme seus membros em membros plenos da ‘urbis’.
 
Uma questão fundamental na relação entre camponeses e capitalismo, tem sido, em minha opinião, uma tensa e contraditória negociação das condições dessa passagem: nessa transumância, serão os que vem do campo ‘lumpen’, proletários ou homens de ofício - professores, engenheiros, médicos? 
 
Quanto aos que ficam, os camponeses "pequenos burgueses", parte sairá pela morte (o fato desta ser precedida por aposentadoria digna, ou não, é também objeto de embate político a determinar as condições efetivas), parte manterá a produção (de vários itens da reprodução social, cuja composição também resultará de combates em várias frentes) no campo por mais uma geração, de um modo que, em minha opinião, ainda manterá por muito tempo especificidades que precisam ser compreendidas e consideradas.[5]
 
É minha propensão inferir, com relação à expressão camponeses ‘pequenos burgueses’ do Autor citado, que ele se refere àqueles camponeses que obtiveram melhoria substancial nos padrões de qualidade de vida e de trabalho (acumulação ou poupança crescente camponesa) sem incorrer na exploração do trabalho assalariado, sendo esta condição para mim necessária para a conceituação de camponês contemporâneo.
 
Para que os camponeses possam alcançar a ‘utopia camponesa’ numa sociedade capitalista, garantindo a sua reprodução social e realizando uma acumulação camponesa, é indispensável que consigam concretizar o que denomino de resistência social camponesa aos avanços do capital, a qual exige, antes de tudo, a construção econômica, política, ideológica, cultural e técnica da autonomia relativa dos camponeses perante o próprio capital. Isso porque os camponeses ao exercitarem por longo tempo apenas a resistência social estarão construindo uma armadilha histórica para eles mesmos. No tempo, a resistência social tende a reproduzir os interesses dominantes, pois, os subalternos resistem a partir de iniciativas dos dominantes que determinam quais respostas defensivas serão toleradas. Ora, se os camponeses desejam afirmar a sua especificidade torna-se necessário que desencadeiem ofensivas contra a lógica capitalista, argumentando a favor de outra racionalidade, a racionalidade camponesa.
 
Isso significa afirmar, sobretudo, que os camponeses possuem uma especificidade, uma lógica própria, um modo de fazer agricultura diferente e contrário ao modo capitalista de produção. Nesse sentido, a conciliação e ou a convivência entre esses modos de fazer agricultura tendem a ampliar a destruição do campesinato.
 
3.    SUBALTERNIDADE CAMPONESA E A CONVIVÊNCIA COM O CAPITAL
 
“(...) o devir do camponês é histórico, comporta muitas bifurcações, e a forma como se dá afeta, por vezes de modo contundente, a sociedade de que faz parte...” (Costa, op. cit.)
 
Para que os camponeses possam usufruir da renda e da riqueza que porventura obtenham na sua prática produtiva e ou, mesmo, com ajuda da venda ocasional de força de trabalho[6] de membros da família camponesa, é indispensável que eles lutem contra a sua subalternidade ao capital. Para tal os camponeses necessitam, enquanto classe social organizada, criar ou implementar, ainda que num quadro de correlação de forças políticas desfavoráveis, iniciativas que lhes proporcionem não apenas canais próprios ou adaptados de comercialização como diversas outras possibilidades efetivas de retenção da renda agrícola gerada no seu processo produtivo.
 
Essa situação de subalternidade camponesa ao capital se agrava mais ainda devido ao quadro institucional --- seja o público seja o da sociedade civil organizada, que tem sido historicamente orgânico aos interesses de classe das classes dominantes, excetuando-se alguns setores e instituições de centro-esquerda da sociedade que, mesmo convivendo com dúvidas, são favoráveis aos camponeses e às suas lutas sociais.
 
Porém, se os camponeses desejam romper com a sua subalternidade ao capital um dos primeiros passos político-ideológicos seria o de romper com a atual dependência das políticas públicas que camufladas por medidas ocasionais de defesa das suas necessidades imediatas os ajustam aos interesses das classes dominantes, mantendo-os cativos e subalternos ao capital.
 
Como tenho acentuado em diversas oportunidades as relações dos camponeses com os governos não deveriam ser de estímulo à dependência crônica dos camponeses perante as políticas públicas, tal como se constata na atualidade. Isso ocorre devido a dois fatores básicos: por um lado, a pobreza da maior parte dos camponeses brasileiros que os tornam dependentes da ajuda governamental continuada; por outro lado, as políticas públicas têm sido concebidas como armadilhas cruéis para com os camponeses, pois, ao lado de oferecerem, por exemplo, crédito subsidiado, a política creditícia não os liberta da subalternidade ao capital. Induz, isso sim, a maior parcela dos camponeses a se tornarem novos servos, agora não como o foram os servos da gleba do período das sesmarias e dos latifúndios tradicionais, mas sim servos do capital financeiro.
 
 A convivência dos camponeses com o capital, praticada das mais distintas maneiras, sempre será uma relação de subalternidade dos camponeses ao capital, seja ele bancário, industrial, agrícola ou comercial.
 
O objetivo geral da construção da autonomia camponesa perante o capital é livra-lo da subalternidade que essa relação tem ensejado. Esse objetivo só poderá ser alcançado se os camponeses mudarem suas atitudes e comportamentos perante as diversas frações dos capitais e dos governos.
 
O que seria desejável é que a relação de negócios entre os camponeses e as empresas capitalistas se dê entre dois sujeitos. Isso significaria que a subalternidade dos camponeses perante o capital teria sido superada, senão na totalidade dos agentes econômicos camponeses devido à forte dominação da classe burguesa, ao menos na concepção dos camponeses do que deveria ser essa relação econômica. E, como já acontece em diversos locais e situações no país, as atitudes e comportamentos camponeses já o afirmam como sujeitos dos seus negócios.
 
Sem dúvida alguma que esse comportamento desejável por parte dos camponeses é dificultado pelo descenso das lutas populares urbanas contra o capital. Mesmo presentes, aqui e acolá, essas lutas sociais de resistência social não contemplam, seja no discurso seja na prática, a construção de outra sociedade menos desigual socialmente. A utopia necessária de uma sociedade mais igualitária foi afastada pela hegemonia da ideologia neoliberal. Mesmo nessa correlação de forças políticas e ideológicas bastante contrárias aos interesses de classe das classes sociais populares, há conquistas populares localizadas e algumas gerais que ajudam seja no fortalecimento da resistência social popular seja afirmação de que é necessária a superação do modo de produção capitalista.
 
Para que essas iniciativas possam acontecer e alcançar resultados positivos será necessário dispender, por parte dos camponeses organizados, um considerável esforço ideológico, político e institucional de formulação teórica e aplicação prática dos conhecimentos adquiridos nas lutas sociais reivindicatórias e de protestos camponesas no sentido de romper com a subalternidade ao capital. Tarefa difícil essa ao se considerar que a ideologia do agronegócio faz parte intrínseca da concepção de mundo dominante e influencia decisivamente as políticas públicas à revelia dos camponeses. Essa concepção de mundo inspirada nos valores do agronegócio emula as soluções governamentais para que a oferta de alimentos se efetue pelas grandes empresas capitalistas do agronegócio burguês. Assim, como que encurralados, os camponeses e ampla parcela de seus intelectuais orgânicos, têm reduzido as suas pretensões teórico-práticas de elaborarem ou aprimorarem propostas estruturantes que deem nova forma à agricultura no país e que se anteponham, pela negação, às concepções do agronegócio. Quem sabe parcela desses camponeses e de seus intelectuais orgânicos estariam sendo cooptados pelos setores moderados do pensamento neoliberal num processo que Gramsci[7] denominou de “transformismo”[8].
 
No contexto desses embates de classes o principal desafio que enfrentam os camponeses no Brasil[9] é a construção permanente da sua autonomia relativa perante o capital. Isso exigirá, do ponto de vista da luta social mais ampla (não localizada e não referida a um acontecimento empírico), a construção de uma teoria geral sobre o campesinato nas formações econômicas e sociais sob a dominação-hegemonia do capital. Essa teoria geral facilitará a elaboração de uma estratégia global para a afirmação do campesinato como classe social, condição essencial que as lutas sociais no campo considerem a necessidade de ruptura da dependência camponesa perante o capital. Será, de fato, nesse processo de tentativa de rompimento da subalternidade política e ideológica camponesa ao capital que a afirmação da autonomia camponesa poderá se desenvolver e adquirir forma. E não haverá possibilidade efetiva dessa afirmação camponesa sem que se vislumbre um caminho capaz de superar o modo de produção capitalista dominante, particularmente no campo.
 
Isso significaria, evidentemente, que o campesinato organizado assumiria, ao menos no desejo da concretização da utopia camponesa, uma práxis política[10] contestatória mais além do convívio com o capital, uma práxis que tenha como referencial outro jeito de se fazer agricultura, uma proposta de outra formação econômica e social para o Brasil que permita, ao menos nos níveis político e ideológico, se vislumbrar a redução da desigualdade social e a construção de uma sociedade mais igualitária.
 
Considerado este sumário esboço analítico, é possível se sugerir que se coloca como uma exigência histórica a ampliação do esforço teórico e prático que os movimentos e organizações sociais e sindicais populares no campo deverão dispensar para estimularem as reflexões camponesas sobre as possibilidades e necessidades reais da sua autonomia relativa perante o capital. Esse referencial que é aqui resumido na expressão “autonomia relativa camponesa perante o capital”, a qual é condição política e ideológica indispensável para os confrontos ideológicos no sentido de se superar a ideologia dominante, concepção esta que tende direta e indiretamente para afirmar a  continuidade da subalternidade camponesa ao capital ou, no caso mais, radical, a sua exclusão social.
 
Essa postura intelectual dos movimentos e organizações sociais e sindicais populares no campo requererá, ademais, negar a afirmação dominante de que os camponeses são povos sem destinos. O que exigirá, em sentido contrário, uma afirmação sobre as perspectivas históricas positivas de realização do campesinato nas sociedades capitalistas contemporâneas.
 
4.    A CENTRALIDADE DA PRÁTICA CAMPONESA
 
A centralidade da prática camponesa é a oferta continuada e diversificada de alimentos para a sociedade brasileira e para a exportação. Alimentos saudáveis ‘in natura’ e beneficiados. Sua racionalidade reside não apenas na oferta de alimentos saudáveis para a população brasileira como no garantir a reprodução social de sua família pela renda que auferir. Essa racionalidade camponesa se realiza numa prática produtiva em plena harmonia com a dinâmica da natureza, respeitando-a e aprimorando-a  sempre que possível e necessário.
 
A empresa capitalista no campo, cuja centralidade de seus objetivos é a lucratividade do seu negócio, é antagônica às iniciativas necessárias e indispensáveis de oferta de alimento para toda a sociedade e à preservação da natureza. A garantia da soberania alimentar de um povo exige que as políticas governamentais, antes de tudo, sejam elaboradas e implementadas sob caráter social e ambiental. E o modo de produção camponês, potencializado pelas distintas maneiras de cooperação mútua, solidariedade e organização política, se coloca como a melhor alternativa para a superação da impossibilidade social efetiva da empresa capitalista e do seu modo de produção de dar conta dos interesses sociais e ambientais requeridos pela população brasileira.
A produção de alimentos básicos em todo o mundo deve ser regida por critérios sociais não sujeitos às lógicas do mercado nacional e internacional burguês com tendências oligopolistas e oligopsônicas. A cooperação e a solidariedade são valores incompatíveis com as regras capitalistas dos mercados. A referência à soberania alimentar de um povo não comporta as ideias burguesas de segurança alimentar porque estas são insatisfatórias e têm sido regidas pela lógica do capital cuja centralidade dos seus negócios, conforme já acentuado anteriormente, reside exclusivamente no lucro. As possibilidades reais de construção de uma soberania alimentar somente serão pertinentes numa sociedade mais igualitária. Nessa perspectiva a empresa capitalista não se apresenta como uma referência desejável para dar conta dessa dimensão da política pública socialmente determinada. Será, então, necessário se reinventar as empresas sociais muito além das empresas públicas.
 
As cooperativas de comercialização de produtos camponeses têm alcançado resultados positivos apenas em determinadas circunstâncias, em geral, nos primeiros elos da cadeia produtiva de produtos agrícolas, amplo senso. No entanto, independente de seus objetivos sociais imediatos, ao desaguarem nos mercados mais amplos, regionais e ou nacionais, se encontram submetidas a mercados oligopsônicos controlados pelas grandes empresas multinacionais, onde os preços praticados são politicamente administrados por critérios estabelecidos pelos interesses comerciais das grandes corporações. Nessas circunstâncias o produto do camponês torna-se uma mercadoria despersonalizada e considerada como de natureza idêntica, desconhecendo-se as diferenças substanciais entre os processos de produção camponesa e capitalista.
 
(...) Na medida em que ingressam na circulação capitalista, as mercadorias de origem camponesa sofrem uma mutação, pois o que o vendedor considera primordial é a simples possibilidade de se estabelecer uma relação de troca, ou seja, seu valor de troca em geral. Por outro lado, as regras do jogo impostas a esse mercado pelas empresas capitalistas não colocam em primeiro plano o valor em geral das mercadorias, mas sim sua condição de portadora de mais-valia. O camponês vende para poder comprar e esse é o único fim que o condiciona ao mercado; já o capital vende para obter lucro e somente sob esta condição aceita o intercâmbio.”
 
“O camponês é aquele produtor que, em regra geral, cede sua mercadoria por um preço de mercado inferior ao seu valor e ao seu preço de produção porque, diferentemente do capital, não pode deixar de vender pelo simples fato de não obter lucros. Além disso, ele não se encontra em condições de passar para outro ramo da economia, pois seus meios de produção não adquiriram a ‘forma livre do capital’“[11]
 
O camponês não pode criar uma sociedade à parte daquela em que se insere. Isso porque numa formação econômica e social onde domina (e é hegemônico) o modo de produção capitalista, as outras formas de relações sociais de produção presentes são direta ou indiretamente a ele subordinada.
 
As idéias e proposições de afirmação camponesa devem ser aprofundadas e disseminadas em toda a sociedade. Essas idéias e ideais são contrárias à lógica capitalista de produção. Portanto, se colocam como outro paradigma de produção no campo mais além do sugerido e praticado pelo capitalismo.
 
5.    MAIS ALÉM DA CONVIVÊNCIA COM O CAPITAL
 
Os camponeses, apesar de apresentarem formas de produção[12] distintas da dominante[13] se encontram, com as exceções que se constam, em situação de subalternidade perante o capital. E isso se dá por diversas razões, sendo que as mais relevantes, no meu entendimento seriam:
 
a) dificuldades para os camponeses obterem tecnologias contemporâneas que sejam socialmente apropriadas à sua escala e intenção de produção;
 
b) as políticas públicas, em geral, têm induzido os camponeses à adoção de linhas de produção e tecnologias de natureza capital-intensiva que na maior parte das vezes é incompatível com a lógica de produção camponesa;
 
c) o referencial de produção e de gestão da produção dominantes apresentados como desejáveis pelos meios de comunicação e organismos governamentais são aqueles próprios da grande empresa e da racionalidade capitalista como, por exemplo, a terceirização na gestão da unidade de produção, o emprego e exploração da força de trabalho assalariada, o monocultivo, a produção em grande escala, a oferta de produtos destinados à exportação, o uso intensivo de insumos de origem industrial, a tendência à concentração e centralização da apropriação privada das terras e demais recursos naturais;
 
d) ainda perdura na cultura brasileira (herança escravagista) a ideologia do camponês como os pobres da terra, os povos sem destino e de produtores com dificuldades culturais para se inserirem nos mercados organizados para o consumo de massas.
 
Para que um modo de produção camponês se afirmasse como tal numa formação econômica e social complexa como a capitalista seria indispensável que apresentasse mais (outras) características do que aquelas das condições específicas do processo produtivo. Requereria, entre outros, que política e ideológicamente os camponeses fossem capazes de formularem uma concepção de mundo distinta da dominante (no caso caracterizado pelas empresas capitalistas no campo) e que se apresentassem (formulação e disseminação) como a alternativa socialmente mais eficiente e eficaz que pudesse ser compreendida e aceita por amplas parcelas da sociedade onde se insere. E, principalmente, pudessem deixar explícito nas suas proposições que a afirmação camponesa nega, de maneira antagônica, o modo de produção capitalista.  
 
Costa[14], ao sugerir uma definição de camponês, avança na contribuição para a sua compreensão e inserção nas sociedades de classes sociais como as capitalistas.  
 
        “(...) são camponesas aquelas famílias que, tendo acesso à terra e aos recursos naturais que esta suporta, resolvem seus problemas reprodutivos a partir da produção rural --- extrativista, agrícola e não-agrícola – desenvolvida de tal modo que não se diferencia o universo dos que decidem sobre a alocação do trabalho, dos que sobrevivem com o resultado dessa alocação.”
 
“Essas famílias, no decorrer de suas vidas, nas interações sociais que estabelecem e nos territórios em que se encontram desenvolvem hábitos de consumo e de trabalho e formas diferenciadas de relação com a natureza que lhes caracteriza especificidades no modo de ser e de viver no âmbito complexo das sociedades capitalistas contemporâneas.”
 
É minha compreensão de que esse conceito dá conta da realidade camponesa contemporânea e contribui de maneira relevante para acentuar a especificidade camponesa. Nesse conceito se está ressaltando, entre outras características, que os camponeses são diferentes dos capitalistas, portanto, apresentam maneiras de viver e de produzir distintas da dominante no campo.
 
No entanto, tem sido cada dia mais difícil explicar e compreender a assertiva final desse conceito “(...) especificidades no modo de ser e de viver no âmbito complexo das sociedades capitalistas contemporâneas”. Isso porque, entre outros elementos da racionalidade dominante, tem aumentado a concentração e centralização capitalistas da renda e da riqueza e, nela, das terras e dos demais recursos naturais. Nessa racionalidade capitalista o diferente é descartado ou, então, é denegrido e objeto de descrédito. Essa tem sido a postura em relação aos camponeses.
 
6.    A SUPERAÇÃO DO PARADOXO CAMPONÊS
 
O paradoxo camponês, sintetizado na expressão “o sucesso camponês é a sua própria negação”, se verifica em duas possibilidades básicas quando:
 
a)    esse sucesso conduz o camponês a se transformar num produtor rural pequeno burguês absenteísta ao deslocar sua moradia para a cidade e tendendo a terceirizar (mesmo precariamente) a gestão da sua unidade de produção;
 
b)    as condições objetivas obtidas nos seus processos de produção e com os mercados garante a reprodução social da família, mas com dependência relativa das políticas públicas compensatórias.
 
Todavia, uma terceira possibilidade pode ser aventada:
 
c)    a precarização econômica e ideológica crônica do camponês sem que tenha perdido a terra, mas numa situação que se apresenta com exíguas condições de produção e em situação de pobreza crescente e, então, passa a depender estrutural e continuadamente do acesso às políticas públicas ditas compensatórias.
 
Nessa terceira perspectiva a família camponesa torna-se altamente dependente não mais do capital, mas agora dos governos. Sua capacidade de realizar negócios tornou-se de tal maneira incipiente que sua reprodução social é mantida precariamente pelas políticas públicas do tipo ‘bolsa-família’. Nessas circunstâncias, o camponês, além de se sentir constrangido moralmente, se encontra em situação de reduzida possibilidade de ter na terra a fonte efetiva de geração de renda e de riqueza que lhe permita romper com esse contexto opressor de dependência dos governos e de subalternidade ao capital.
 
Um dos caminhos para a superação desses constrangimentos é a possibilidade, apesar dos contextos adversos, dos camponeses buscarem a construção da sua autonomia relativa perante o capital. Isso não significa que a relação camponês-capitalista seja eliminada, todavia, o que se espera é que ela se dê, ao menos, entre dois sujeitos sociais em presença na formação econômica e social brasileira. Atitude difícil essa devido, entre diversos outros motivos, à subalternidade histórica dos camponeses perante o capital e ao caráter conservador (reprodução dos interesses dominantes na relação estrutura-superestrutura) da maior parte das organizações sociais e sindicais de representação de interesses dos camponeses.
 
A postura política dos camponeses de construir sua autonomia relativa perante o capital requereria que alguns esforços de organização política fossem dispensados, em especial na dinamização da intermediação dos novos movimentos e organizações sociais e sindicais populares camponeses, de maneira tal que pudessem centrar suas iniciativas nos movimento sociais de massa e desempenhar o papel de intelectuais orgânicos[15] do campesinato brasileiro enquanto classe social.
 
Essas iniciativas seriam indispensáveis no contexto histórico contemporâneo  onde é agudizada a subalternidade camponesa ao capital e crescente a dependência políticas aos governos; iniciativas essas que tentassem ir além das lutas sociais localizadas e se tornassem motivadoras e mobilizadoras dos camponeses para se comportarem como classe social, de tal maneira que pudessem não somente ampliar os esforços de reivindicação e de protesto mas, sobretudo, de enfrentamento político e ideológico no contexto das contradições sociais com as diversas frações da burguesia, para a realização de seus interesses de classe como camponeses.
 
Como sugestão para reflexão, esses esforços poderiam ser sintetizados em quatro grandes diretrizes estratégicas:
 
a)      Elaboração e implementação de um amplo e diversificado plano de formação política-ideológica dos camponeses que lhes proporcionassem acessos à compreensão das classes sociais na formação econômica e social brasileira contemporânea e do campesinato com classe social em construção;
 
b)      Os camponeses, enquanto classe social, assumirem como objetivo estratégico de classe de oferta de alimentos básicos ‘in natura’ e beneficiados para toda a sociedade e para a exportação;
 
c)       Explicitarem um padrão tecnológico e de produção que afirme objetivamente a especificidade camponesa. Um padrão ou modelo de produção e tecnológico que se fundamente numa relação de coprodução homem e natureza, na diversificação produtiva capaz de regenerar e promover a biodiversidade, numa inserção nos mercados como sujeitos da soberania alimentar local, regional e nacional;
 
d)      Acentuar a importância da relação de cooperação entre os próprios camponeses, e destes com a população urbana, no sentido de, ao mesmo tempo, a negação do modo de produção capitalista e a afirmação, para o campo, de outro modo de produção que consiga, por distintas maneiras, consolidar a socialização da produção e a solidariedade entre as classes populares do país.
 
(janeiro de 2015)


[1] “Entendemos o campesinato como uma classe social e não apenas como um setor da economia, uma forma de organização da produção ou um modo de vida. Enquanto o campo brasileiro tiver a marca da extrema desigualdade social e a figura do latifúndio se mantiver no centro do poder político e econômico – esteja ele associado ou não ao capital industrial e financeiro -, o campesinato permanece como conceito-chave para decifrar os processos sociais e políticos que ocorrem neste espaço e suas contradições. Portanto, defendemos atualidade deste conceito, cuja densidade histórica nos remete a um passado de lutas no campo e ao futuro como possibilidade.” In. Marques, Marta Inez Medeiros (2008).  A atualidade do uso do conceito de camponês. Presidente Prudente, Revista NERA – ano 11, n. 12 – janeiro/junho de 2008 – ISSN: 1806-6755, p. 58
[2] Carvalho, Horacio Martins de (2005) Campesinato e a democratização da renda e da riqueza no campo. Curitiba, julho, mimeo 48 p.
[3] Carvalho, Horacio Martins (2007). A construção da autonomia camponesa. Curitiba, outubro, mimeo 9 pp.
[4] Ianni, Octavio (1985). A utopia camponesa. Águas de São Pedro (SP), IX Encontro Anual da ANPOCS – GT “Estado e Agricultura”.  22 a 25 de outubro. Citação da p. 2, 1º parágrafo.
[5] Costa, Francisco de Assis. Trecho da correspondência recebida via e-mail por Horacio Martins de Carvalho, em 07/01/2015, 11h36min.
[6] A venda da força de trabalho camponesa é aqui referida para aqueles casos em que o camponês não obtém renda agrícola suficiente para garantir a sua reprodução social com apenas as atividades econômicas passíveis de serem exploradas no seu lote de terra. Sem dúvida alguma que alguns dos membros da família camponesa escolham profissões distintas daquela da lida com a terra, sem que isso represente uma necessidade estrutural da família camponesa no sentido de complementar a renda agrícola devida à limitação de área ou a precariedade da sua exploração econômica.
[7] Antonio Gramsci (1891-1937), ver Maestri, Mário e Candreva, Luigi (2001) Antonio Gramsci: vida e obra de um comunista revolucionário. São Paulo, Expressão Popular.
[8] “(...) O ‘transformismo’ consistiu na agregação dos intelectuais das classes subalternas à classe política, para decapitar a direção desses grupos... o transformismo é um processo orgânico: traduz a política da classe dominante que recusa qualquer compromisso com as classes subalternas e assim atrai seus chefes políticos para agrega-los à classe política... o processo mais eficaz consiste na absorção ideológica...”, in Portelli, Hugues (1977). Gramsci e o bloco histórico. Rio de janeiro, Paz e terra, pp. 71-72
[9] Não somente no Brasil. Mesmo nos países onde se exercitou as ideias socialistas foi precária e insuficiente as soluções socializantes relacionadas com a questão camponesa.
[10] “A práxis política pressupõe a participação de amplos setores da sociedade. Persegue determinados fins que correspondem aos interesses radicais das classes sociais, e em cada situação concreta a realização desses fins é condicionada pelas possibilidades objetivas inscritas na própria realidade (...)”, in Vázquez, Adolfo Sánchez (2007). Filosofia da práxis. São Paulo, Expressão Popular, citação à p. 231.
[11] Vergés, Armando Bartra (2011). Os novos camponeses. Leituras a partir do México profundo. São Paulo, Cultura Acadêmica; Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Rural, cit.  p. 19.
[12] Diversidade na condição de acesso à terra, trabalho familiar direto, não assalariamento permanente de terceiros, produção para o autoconsumo e para o mercado, diversificação e combinação de cultivos e criações  nas linhas de produção, linha de produção principal para o consumo no mercado interno, uso de insumos parcialmente gerados em sua unidade de produção, baixa capacidade de armazenamento, etc.
[13] Produção especializada e em escala voltada principalmente para a exportação, uso intensivo de insumos de origem industrial, gerenciamento terceirizado, assistência técnica continuada, inovação constante para obtenção de lucro extraordinário, etc.
[14] Costa, Francisco de Assis (2012). Economia camponesa  nas fronteiras do capitalismo. Belém, NAEA, cit. p.. 43
[15] Utilizo essa expressão a partir da noção de intelectual orgânico de Gramsci quando este  distingue tais intelectuais dos que denomina  intelectuais tradicionais (ligados ao sistema hegemônico dominante). Os intelectuais orgânicos estabelecem um vinculo (orgânico) com a classe social à qual eles representam na relação entre superestrutura (sociedade política mais sociedade civil) e estrutura (economia). Gramsci nega a existência de intelectuais em geral, acentuando que os intelectuais sempre possuem função de classe no seio de um bloco histórico. Ver Portelli, Hugues (1977). Gramsci e o bloco histórico. Rio de janeiro, Paz e Terra, p. 83 e ss.
https://www.alainet.org/en/node/167012
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