Uma eleição sem Lula como candidato defrauda a própria soberania popular
- Opinión
A coluna desta semana será substituída pela reprodução da entrevista concedida ao Diário de Notícias, de Lisboa. Após concluir um roteiro de trabalho em Sevilla e Lisboa, onde ocorreram debates sobre alternativas democráticas e novas formas de organização política, as atenções estão todas voltadas ao julgamento da próxima quarta-feira.
O assunto esteve presente em diversos momentos da viagem, inclusive no encontro com Carlos Cesar, Presidente do bloco de sustentação do Governo de centro-esquerda, em Portugal. Na conversa, as ilegalidades no “lawfare” contra Lula.
“Uma eleição sem Lula como candidato defrauda a própria soberania popular”
Antigo ministro da Justiça de Lula da Silva é um dos principais defensores do ex-presidente, que na quarta-feira pode ser condenado em segunda instância por corrupção e ficar afastado das presidenciais de outubro. Ao DN, Tarso Genro diz que o Partido dos Trabalhadores (PT) não quer falar de um plano B. O ex-governador de Rio Grande do Sul fala em reproduzir a “geringonça” portuguesa no Brasil.
O que acontece se Lula ficar impossibilitado de concorrer às presidenciais?
A nossa equipa jurídica vai usar todos os recursos e o processo pode chegar ao Supremo Tribunal Federal. Neste processo foi negado a Lula o direito à ampla defesa e este é um pressuposto processual constitucional no Brasil, não é originário da mera lei penal. O Supremo vai ter de desatar esse nó, vai ter de dizer se admite a adoção de métodos de exceção para a perseguição política, como está a acontecer, ou se vai colocar novamente o processo penal brasileiro nos trilhos da Constituição e do Direito.
Assinou o manifesto “Eleição sem Lula é fraude”. Por quê?
O que se decide não é só a sorte de Lula. É a realidade e a profundidade do nosso processo democrático. Há sondagens que dizem que Lula podia ganhar as eleições à primeira volta. Que legitimidade terá para governar um presidente se Lula não puder ser candidato? Nenhuma. Porque estará a ser indicado por uma minoria de vontade política da sociedade civil. Uma eleição sem Lula, que tem a maioria hoje na população, defrauda a própria soberania popular.
Então não há um plano B?
Acho que não devemos falar em plano B porque isso seria admitir a legitimidade e a legalidade deste processo. Há pessoas no Partido dos Trabalhadores que acham até que não devíamos concorrer às eleições sem Lula. Eu não tenho essa visão. Acho que temos de concorrer, temos de indicar um candidato ou apoiar outro próximo de nós, para que a voz do campo democrático da esquerda não fique fora do processo eleitoral. Mas por enquanto todos concordamos que não temos de falar em plano B. Temos o plano A e só o plano A. Se chegarmos ao limite de Lula não poder ser candidato, certamente o presidente vai apoiar e indicar alguém.
Não temos de falar em plano B. Temos o plano A e só o plano A
Na quarta-feira haverá decisão sobre um processo, mas o nome de Lula surge envolto em vários. Mesmo sendo ilibado deste você considera que ele tem legitimidade para concorrer?
O próprio presidente Lula falou, desde o começo, que todas as pessoas sobre as quais paira alguma suspeição devem ser investigadas e processadas se for o caso. E nós, no campo da esquerda, democrático, nunca defendemos que o Lula não poderia ser processado. Nós achamos que isso é uma decorrência do estado de direito. O que não se pode é utilizar o processo penal como um processo de lawfare, ou seja, utilizá-lo para a perseguição política, para eliminar os adversários. Todos esses processos que o Lula tem foram precedidos de uma brutal campanha mediática que distorceu os processos penais, porque o oligopólio dos media já adiantou o resultado. Já disse que essas pessoas são culpadas, independentemente do que vão dizer os processos judiciais. É essa distorção política que ocorre no país. O processo do Lula é exemplar porque ele é o principal líder popular do país, mas o que se discute não é isso. É a questão democrática. São os direitos da defesa, são os direitos fundamentais que estão a ser violados nesses processos penais, particularmente por esta parte do sistema de justiça que está na cidade de Curitiba. Veja que nós temos uma deformação radical originária nesse processo, que é o seguinte: nós não temos uma jurisdição penal nacional. Nenhum juiz pode julgar fora da sua jurisdição. E este juiz Moro e o Ministério Público de Curitiba começaram a artificializar relações de factos em diversos estados e o juiz Moro foi puxando para si uma jurisdição nacional e compôs uma devassa política sobre determinados políticos e particularmente sobre o presidente Lula. Essas deformações estão distorcendo o processo político e democrático no Brasil e eliminando as garantias do processo penal. Hoje o presidente Lula tem seis ou sete processos, por motivos que não têm conexão entre si, mas que estão todos situados em Curitiba. Este juiz está a assumir uma jurisdição nacional que não existe. Devia julgar factos que ocorreram na sua jurisdição.
Numa entrevista defendeu que Lula é o único candidato de esquerda capaz de chegar à segunda volta. O que acontece se ele não for candidato e tiver de escolher entre Geraldo Alckmin e Jair Bolsonaro? A esquerda está preparada para apoiar Alckmin nesse caso?
Em nenhuma hipótese. Serão eleições ilegítimas, que farão um presidente ilegítimo. O Alckmin e o Bolsonaro têm uma diferença de grau, não de conteúdo. É claro que o Bolsonaro é um líder de extrema-direita, que tem tendências fascistas. E não se pode dizer isso de Alckmin. Mas do ponto de vista económico, do autoritarismo, do projeto que defende para o país, diria que Alckmin tem muitas semelhanças com Bolsonaro. É uma visão que faz todas as concessões para o predomínio total do capital financeiro sobre a vida pública e económica e que aceita restrições radicais aos direitos fundamentais, sociais, como está a ocorrer hoje com a reforma laboral.
Do ponto de vista económico, do autoritarismo, do projeto que defende para o país, diria que Alckmin tem muitas semelhanças com Bolsonaro.
Bolsonaro está em segundo nas sondagens. O que é que isso diz do Brasil?
Diz que a esfera da política foi anulada, profundamente desgastada pelos interesses políticos que proporcionaram o golpismo. Foi preciso sufocar a política para que houvesse um governo “salvacionista”. Neste processo, nesta transição, surgem os candidatos que se apresentam como não políticos. O que é mentira. Bolsonaro é um militar de extrema-direita que não tem património político acumulado para mostrar à sociedade e que aparece para determinados setores mais despolitizados da sociedade como a salvação. Mas não tem hipóteses de ganhar. Ele não irá para a segunda volta. Porque quem se apoia hoje no Bolsonaro como a salvação verá o desempenho dele nos debates eleitorais e certamente terá uma decepção.
A reforma laboral, de que falou, é um dos principais problemas da presidência de Temer?
Nós temos que fazer uma reforma laboral no Brasil, como em todas as economias do mundo. Porque a economia financeira mudou, os processos de trabalho estão profundamente modificados pelas revoluções tecnológicas e digitais. Agora, temos que fazer uma reforma laboral para proteger e organizar esse mundo de trabalho e não para destruir as garantias originárias dos processos de trabalho da segunda revolução industrial. E o que se está a fazer agora é a destruição desse património jurídico que protege os trabalhadores de uma outra época, sem colocar nada no lugar. Vai ficar todo o mundo desprotegido. A força do capital vai ser imperante nessas relações. Então, não se trata de achar que as coisas não devem ser reformadas. Devem ser reformadas sim. Há um novo mundo de trabalho que está a surgir cujo controlo não é mais pela subordinação “natural” dentro da fábrica, o controlo dá-se pelo resultado. No Brasil está a ser destruída a proteção de uma época anterior, que tem vivência forte ainda na maioria da classe trabalhadora brasileira, sem colocar nada no lugar. A isso nós chamamos de devastação dos direitos sociais originários da carta de 88.
Se o PT voltar ao poder será para recuar nesta reforma que está a ser feito por Temer?
Isso tudo depende da correlação de forças. Porque no âmbito da política e das reformas legais e constitucionais, isso não ocorre por vontade espontânea do presidente. O próximo governo, se for um governo progressista, não será um governo de esquerda, será um governo de centro-esquerda com influência maior da esquerda e vai ter que pensar todo o tecido constitucional brasileiro, inclusive em relação à propriedade dos meios de comunicação, que são oligarquizados no Brasil. Temos que democratizar os meios de comunicação.
Falou das alianças. A verdade é que o Congresso brasileiro tem muitos partidos e para governar são precisas essas alianças. Desde o regresso da democracia, o PMDB de Temer tem apoiado o presidente, quer à esquerda quer à direita. Depois do que dizem ser o golpe contra Dilma, é possível voltar a confiar no PMDB?
Como partido não. Como partido o PMDB é uma instituição falida. É um consórcio de relações regionais oligárquicas. Houve uma ocupação do PMDB pelas piores lideranças regionais conservadoras, de direita, que o perverteu. Mas o PMDB tem muitos homens e mulheres progressistas. São minoria, mas ainda tem. Então, temos de compor um novo conceito de frente política que envolva personalidades, movimentos sociais, frações de partidos, para que tenhamos sustentação política e governabilidade dentro da democracia. Isso não ocorreu no último governo de Dilma. Ela é uma pessoa progressista, esclarecida, democrática, mas a aliança com o PMDB ficou vencida na metade do seu primeiro governo. O nosso partido não se apercebeu ou, se se apercebeu, não quis fazer um confronto político com o PMDB. Foi um erro político nosso.
Você tem sido um apoiante da geringonça portuguesa. Porquê?
A experiência portuguesa é muito estudada e admirada. Integro o conselho de Novos Paradigmas, um pequeno think thank de pensamento político e democrático de esquerda, e temos feito um conjunto de debates em vários países da América Latina e na Europa. Estamos a preparar outro para março, em Lisboa. Um dos elementos da discussão é a experiência portuguesa. Uma experiência democrática, moderada, que conseguiu conter as piores coisas do projeto neoliberal em plena Europa dirigida pela senhora Merkel. Isso não é fácil. Tem de ser uma experiência respeitada e estudada, para ver o que podemos reproduzir em países como o Brasil.
[A geringonça é] uma experiência democrática, moderada, que conseguiu conter as piores coisas do projeto neoliberal em plena Europa dirigida pela senhora Merkel. Isso não é fácil. Tem de ser uma experiência respeitada e estudada, para ver o que podemos reproduzir em países como o Brasil.
É possível reproduzir?
Na minha opinião é possível. Tenho amigos no PS, no PCP, no Bloco, acompanhei a maneira magistral como o governo foi montado. E a postura serena, sem renunciar a princípios, que teve o Bloco e o PCP para dar governabilidade, para bloquear as piores coisas do neoliberalismo em Portugal. E o resultado está aí. Eu e um vasto setor do PT e da esquerda brasileira vemos com simpatia e carinho essa experiência portuguesa.
Falando do PT. Durante muitos anos esteve centrado na figura de Lula. Depois de tudo o que aconteceu, o que é que aprenderam e que futuro tem o partido?
É muito difícil a gente debater isso no momento em que o partido e o Lula estão sendo cercado. São responsabilizados pelo oligopólio dos media por toda a corrupção do Brasil. Isso é uma fraude. É uma mentira. A corrupção sempre foi sistémica no estado brasileiro. E aquilo que ocorreu dentro do governo do PT já ocorria à saciedade noutros governos. O PT cometeu erros. Houve pessoas que cometeram ilegalidades e essas pessoas têm que ser responsabilizadas. Agora, você querer fazer uma devastação, uma espécie de holocausto de toda uma posição política, de toda uma comunidade política, usando como argumento a questão da corrupção e depois colocando o governo mais corrupto que o Brasil já teve, que é o atual, é uma insanidade do ponto de vista da democracia. Não só em relação ao PT. E é isso que está a ser feito no Brasil. Então, o Lula está a ser hoje protegido por toda a esquerda no Brasil porque ele é um símbolo. Agora, a esquerda e o projeto democrático da esquerda, não termina com o Lula. E é para isso que nós temos que nos preparar. Todos nós somos finitos, politicamente e fisicamente. Temos que preparar para uma nova época, para uma nova utopia democrática, para reconstruir a ideia de uma social-democracia pela esquerda e restaurar o espírito de solidariedade social que hoje terminou no Brasil, que hoje está sufocado, estrangulado por esse processo de direitização do estado e consagração de corrupção no governo.
- Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Janeiro 22, 2018
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