Pronunciamiento de Lula:

“Nenhuma solução sem o povo trabalhador como protagonista”

08/09/2020
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Lula
Foto: Ricardo Stuckert
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Minhas amigas e meus amigos.

 

Nos últimos meses uma tristeza infinita vem apertando meu coração. O Brasil está vivendo um dos piores períodos de sua história. Com quase 130 mil mortos e mais de 4 milhões de pessoas contaminadas despencamos em uma crise econômica social e sanitária nunca vista. Mais de 200 milhões de brasileiros e brasileiras acordam todos os dias sem saber se seus parentes, amigos ou eles próprios estarão saudáveis e vivos à noite.

 

A esmagadora maioria dos mortos pelo coronavírus é de pobres, pretos, pessoas vulneráveis que o Estado abandonou. Na maior e mais rica cidade do país, as mortes pela covid-19 são 60% mais altas entre os pretos e pardos das periferias, segundo os dados das autoridades sanitárias. Cada um desses mortos que o governo federal trata com desdém tinha nome, sobrenome, endereço. Tinha pai, tinha mãe, irmão, filho, marido, esposa e amigos. Dói saber que dezenas de milhares de brasileiros e brasileiras não puderam se despedir de seus entes queridos. Eu sei o que é esta dor.

 

Teria sido possível, sim, evitar tantas mortes. Estamos entregues a um governo que não dá valor à vida e banaliza a morte. Um governo insensível, irresponsável e incompetente, que desrespeitou as normas da Organização Mundial de Saúde e converteu o novo coronavírus em uma arma de destruição em massa.

 

Os governos que emergiram do golpe congelaram recursos e sucatearam o Sistema Único de Saúde, o SUS, respeitado mundialmente como modelo para outras nações em desenvolvimento. E o colapso só não foi maior ainda graças aos heróis anônimos: as trabalhadoras e os trabalhadores do sistema público de saúde. Os recursos que poderiam estar sendo usados para salvar vidas foram destinados a pagar juros ao sistema financeiro.

 

O Conselho Monetário Nacional acaba de anunciar que que vai sacar mais de R$ 300 bilhões dos lucros das reservas que nossos governos deixaram. Seria compreensível, se essa fortuna fosse destinada a socorrer o trabalhador desempregado ou a manter o auxílio emergencial de R$ 600 enquanto durar a pandemia. Mas isso não passa pela cabeça dos economistas do nosso governo. Eles já anunciaram que esse dinheiro vai ser usado para pagar os juros da dívida pública.

 

Nas mãos dessa gente a saúde pública é maltratada em todos os aspectos. A substituição da direção do Ministério da Saúde por militares sem experiência médica ou sanitária é apenas a ponta do iceberg. Em uma escalada autoritária, o governo transferiu centenas de militares da ativa e da reserva para a administração federal, inclusive em muitos postos chave, fazendo lembrar os tempos sombrios da ditadura.

 

O mais grave de tudo isso é que Bolsonaro aproveita o sofrimento coletivo para sorrateiramente cometer um crime de lesa-pátria. Um crime politicamente imprescritível. O maior crime que um governo pode cometer contra o seu país e o seu povo: abrir mão da soberania nacional. Não foi por acaso que escolhi para falar com vocês nesse 7 de Setembro, dia da Independência do Brasil, quando celebramos o nascimento de nosso país como nação soberana. Soberania significa independência, autonomia, liberdade. O contrário disso é dependência, servidão e submissão.

 

Ao longo de minha vida sempre lutei pela liberdade. Liberdade de imprensa, liberdade de opinião, liberdade de manifestação e de organização, liberdade sindical e liberdade de iniciativa. É importante lembrar que não haverá liberdade se o próprio país não for livre. Renunciar à soberania é subordinar o bem estar e a segurança do nosso povo aos interesses de outros países.

 

A garantia da soberania nacional não se resume à importantíssima missão de resguardar a segurança de nossas fronteiras terrestres, marítimas e nosso espaço aéreo. Supõe também defender nosso povo, nossas riquezas minerais, nossas florestas, nossos rios, nossa água. Na Amazônia, devemos estar presentes com cientistas, antropólogos e pesquisadores dedicados a estudar a fauna e a flora. E a empregar este conhecimento na farmacologia, na nutrição e em todos os campos da ciência, respeitando a cultura e a organização social dos povos indígenas.

 

O governo atual subordina o Brasil aos Estados Unidos de forma humilhante e submete nossos soldados e nossos diplomatas a situações vexatórias. E ainda ameaça envolver o nosso país em aventuras militares contra os nossos vizinhos, contrariando a própria Constituição, para atender aos interesses econômicos, estratégicos e militares norte-americanos. A submissão do Brasil aos interesses militares de Washington foi escancarada pelo próprio presidente ao nomear um oficial-general das forças armadas brasileiras para servir no comando militar sul dos Estados Unidos, sob as ordens de um oficial americano.

 

Em outro atentado à soberania nacional, o atual governo anunciou um acordo com os Estados Unidos, que coloca a Base Aeroespacial de Alcântara (no Maranhão) sob controle de funcionários norte-americanos. E que priva o Brasil de acesso a tecnologia, mesmo de terceiros países.

 

Quem quiser saber os verdadeiros objetivos do governo não precisa consultar manuais secretos da Abin ou do serviço de inteligência do Exército. A resposta está todos os dias no Diário Oficial, em cada ato, em cada decisão, em cada iniciativa do presidente e seus assessores, banqueiros e especuladores que ele chamou para dirigir nossa economia. Instituições centenárias como o Banco do Brasil, a Caixa Econômica Federal e o BNDES, que se confundem com a história do desenvolvimento do país, estão sendo fatiadas e esquartejadas, ou simplesmente vendidas a preço vil. Bancos públicos não foram criados para enriquecer famílias, eles são instrumentos do progresso, financiam a casa do pobre, a agricultura familiar, as obras de saneamento e a infraestrutura essencial ao desenvolvimento.

 

Se olharmos para o setor energético, veremos uma política de terra arrasada igualmente predadora. Depois de colocar à venda por valores ridículos as reservas do pré-sal, o governo desmantela a Petrobras. Venderam a distribuidora e os gasodutos foram alienados. As refinarias estão sendo esquartejadas. Quando só restarem os cacos, chegarão as grandes multinacionais para arrematar o que tiver sobrado de uma empresa estratégica para a soberania do Brasil.

 

Meia dúzia de multinacionais ameaçam a renda centenas de bilhões de reais do petróleo do pré-sal. Recursos que constituiriam um fundo soberano para financiar uma revolução educacional e científica.

 

A Embraer, um dos maiores trunfos do nosso desenvolvimento tecnológico, só escapou da sanha entreguista em função das dificuldades da empresa que iria adquiri-la, a Boeing, profundamente ligada ao complexo industrial militar dos Estados Unidos.

 

O desmanche não termina aí. O furor privatista do governo pretende vender na bacia das almas a maior empresa de geração de energia da América Latina, a Eletrobrás. Uma gigante, com 164 usinas, duas delas termonucleares, responsável por quase 40% da energia consumida pelo Brasil. A demolição das universidades, da educação e o desmonte das instituições de apoio à ciência e à tecnologia promovidos pelo governo são uma ameaça real e concreta à nossa soberania.

 

Um país que não produz conhecimento, que persegue seus professores e pesquisadores, que corta bolsas de pesquisa, que nega ensino superior à maioria de sua população, está condenado à pobreza e à eterna submissão.

 

A obsessão destrutiva deste governo deixou a cultura nacional entregue a uma sucessão de aventureiros. Artistas e intelectuais clamam pela salvação da Casa de Rui Barbosa, da Funarte, da Ancine. A Cinemateca Brasileira, onde está depositado um século da memória do cinema nacional, corre o sério risco de ter o mesmo destino trágico do Museu Nacional.

 

Minhas amigas e meus amigos, no isolamento da quarentena tenho refletido muito sobre o Brasi e sobre mim mesmo. Sobre os meus erros e acertos e sobre o papel que ainda pode me caber na luta do nosso povo por melhores condições de vida. Decidi me concentrar ao lado de vocês na reconstrução do Brasil como nação independente, com instituições democráticas, sem privilégios oligárquicos e autoritários. Um verdadeiro Estado democrático de direito, com fundamento na soberania popular. Uma nação voltada para a igualdade e o pluralismo.

 

Uma nação inserida numa nova ordem internacional baseada no multilateralismo, na cooperação e na democracia, integrada na América do Sul e solidária com outras nações em desenvolvimento. O Brasil que quero reconstruir com vocês é uma nação comprometida com a libertação do nosso povo, dos trabalhadores e dos excluídos.

 

Dentro de um mês vou fazer 75 anos. Olhando para trás, só posso agradecer a Deus, que foi muito generoso comigo. Tenho de agradecer à minha mãe, Dona Lindu, por ter feito de um pau-de-arara sem diploma um trabalhador orgulhoso, que um dia viraria presidente da República. Por ter feito de mim um homem sem rancor e sem ódio. Eu sou o menino que desmentiu a lógica, que saiu do porão social e chegou andar de cima sem pedir permissão a ninguém. Só ao povo. Não entrei pela porta dos fundos. Entrei pela rampa principal. E isso os poderosos jamais perdoaram.

 

Reservaram para mim um papel de figurante, mas virei protagonista pelas mãos dos trabalhadores brasileiros. Assumi o governo disposto a mostrar que o povo cabia sim orçamento. Mais do que isso, provei que o povo é um extraordinário patrimônio, uma enorme riqueza, com o povo o Brasil progride, se enriquece, se fortalece, se torna um país soberano justo. Um país em que a riqueza produzida por todos seja distribuída para todos, mas em primeiro lugar para os explorados, os oprimidos e os excluídos.

 

Todos os avanços que fizemos sofreram encarniçada oposição das forças conservadoras, aliadas aos interesses de outras potências. eles nunca se conformaram em ver o Brasil como um país independente e solidário com seus vizinhos latino-americanos e caribenhos, com os países africanos, com as nações em desenvolvimento.

 

É aí, dessas conquistas dos trabalhadores, do progresso dos pobres, do fim da subserviência, que está a raiz do golpe de 2016, dos processos armados contra mim, da minha prisão ilegal e da proibição da minha candidatura em 2018. Processos que agora, todo mundo sabe, contaram com a criminosa colaboração secreta de organizações de inteligência norte-americanas. ao tirar 40 milhões de brasileiros da miséria nós fizemos uma revolução neste país, uma revolução pacífica, sem tiros nem prisões.

 

Ao ver que esse processo de ascensão dos pobres iria continuar, que a afirmação da nossa soberania não iria ter volta, os que se julgam donos do Brasil, aqui dentro e lá fora, resolveram dar um basta. Nasce aí o apoio dado pelas elites conservadoras a Bolsonaro.

 

Aceitaram como natural sua fuga dos debates, derramaram rios de dinheiro na indústria de fake news, fecharam os olhos para seu passado aterrador, fingiram ignorar seu discurso em defesa da tortura e a apologia pública que ele fez do estupro.

 

As eleições de 2018 jogaram o Brasil em um pesadelo que parece não ter fim. Com a ascensão de Bolsonaro, milicianos, atravessadores de negócios e matadores de aluguel saíram das páginas policiais e aparecem nas colunas políticas. Como num filme de terror, as oligarquias brasileiras pariram um monstrengo que agora não conseguem controlar, mas que continuarão a sustentar enquanto seus interesses estiverem sendo atendidos.

 

Um dado escandaloso ilustra essa conivência. Nos quatro primeiros meses da pandemia, 40 bilionários brasileiros aumentaram suas fortunas em 170 bilhões de reais. Enquanto isso, a massa salarial dos empregados caiu 15% em um ano, o maior tombo já registrado pelo IBGE. Para impedir que os trabalhadores possam se defender dessa pilhagem, o governo asfixia os sindicatos, enfraquece as centrais sindicais e ameaça fechar as portas da Justiça do Trabalho. Querem quebrar a coluna vertebral do movimento sindical, o que nem a ditadura conseguiu.

 

Violentaram a Constituição de 1988, repudiaram as práticas democráticas, implantaram um autoritarismo obscurantista que destruiu as conquistas sociais alcançadas em décadas de lutas. Abandonaram uma política externa altiva e ativa em favor de uma submissão vergonhosa e humilhante. Esse é o verdadeiro e ameaçador retrato do Brasil de hoje. Tamanha calamidade terá que ser enfrentada com um novo contrato social, que defenda os direitos e a renda do povo trabalhador.

 

Minhas queridas amigas, meus queridos amigos. Minha longa vida, aí incluídos os quase dois anos que passei em uma prisão injusta e ilegal, me ensinou muito. Mas tudo que fui, tudo que aprendi, cabe num grão de milho se essa experiência não for colocada a serviço dos trabalhadores. É inaceitável que 10% da população viva às custas da miséria de 90% do povo. Jamais haverá crescimento e paz social em nosso país enquanto a riqueza produzida por todos for parar nas contas bancárias de meia dúzia de privilegiados. Jamais haverá crescimento e paz social se as políticas públicas e as instituições não tratarem com equidade a todos os brasileiros. É inaceitável que os trabalhadores brasileiros continuem sofrendo os impactos perversos da desigualdade social.

 

Não podemos admitir que nossa juventude negra tenha suas vidas marcadas por uma violência que beira o genocídio. Desde que vi, naquele terrível vídeo, os 8 minutos e 43 segundos de agonia de George Floyd, não paro de me perguntar: quantos George Floyds nós tivemos no Brasil? Quantos brasileiros perderam a vida por não serem brancos? Vidas negras importam sim, mas isso vale para o mundo. Vale para os Estados Unidos, e vale para o Brasil. É intolerável que nações indígenas tenham suas terras invadidas e saqueadas e suas culturas destruídas. O Brasil que queremos é o do Marechal Rondon e dos irmãos Villas-Boas, não o dos grileiros e dos devastadores de florestas.

 

Temos um governo que quer matar as mais belas virtudes do nosso povo como a generosidade, o amor, a paz e a tolerância. O povo não quer comprar revólver nem cartucho de carabina. O povo quer comprar comida.

 

Temos que combater com firmeza a violência impune contra as mulheres, não podemos aceitar que um ser humano seja estigmatizado por seu gênero. Repudiamos o escárnio público com os quilombolas, condenamos o preconceito que trata como seres inferiores pobres que vivem nas periferias das grandes cidades. Até quando conviveremos com tanta discriminação, tanta intolerância e tanto ódio?

 

Meus amigos e minhas amigas. Para reconstruirmos o Brasil pós-pandemia, precisamos de um novo contrato social entre todos os brasileiros. Um contrato social que garanta a todos o direito de viver em paz e harmonia. Em que todos tenham as mesmas possibilidades de crescer e que nossa economia esteja a serviço de todos e não de uma pequena minoria. No qual sejam respeitados nossos tesouros naturais, como a Amazônia, o Cerrado, o Pantanal, a Amazônia Azul e a Mata Atlântica.

 

O alicerce desse contrato social tem que ser o símbolo e a base do regime democrático: o voto. É através do exercício do voto, livre de manipulações e fake news, que devem ser formados os governos e serem feitas as grandes escolhas e opções fundamentais da sociedade. Através dessa reconstrução lastreada no voto, teremos um Brasil democrático, soberano, respeitador dos direitos humanos e das diferenças de opinião. Protetor do meio ambiente e das minorias, e defensor de sua própria soberania. Um Brasil de todos e para todos.

 

Se estivermos unidos em torno disso, poderemos superar esse momento dramático. O essencial hoje é vencer a pandemia, defender a vida e a saúde do povo. É por fim a esse desgoverno e acabar com o teto de gastos que deixa o Estado brasileiro de joelhos diante do capital financeiro nacional e internacional. Nessa empreitada árdua, mas essencial, eu me coloco à disposição do povo brasileiro, especialmente dos trabalhadores e dos excluídos.

 

Minhas amigas e meus amigos. Queremos um Brasil em que haja trabalho para todos, estamos falando de construir um Estado de bem estar social que promova igualdade de direitos, em que a riqueza produzida pelo trabalho coletivo seja devolvida à população segundo a necessidade de cada um. Um Estado justo, igualitário e independente, que dê oportunidade aos trabalhadores, os mais pobres e os excluídos.

 

Esse Brasil dos nossos sonhos pode estar mais próximo do que aparenta. Até os “profetas” de Wall Street e da City de Londres já decretaram que o capitalismo tal como o mundo conhece está com os dias contados. Levaram séculos para descobrir uma verdade inquestionável que os pobres conhecem desde que nasceram: o que sustenta o capitalismo não é o capital, somos nós, os trabalhadores. É nessa hora que me vem à cabeça esta frase que li num livro de Victor Hugo escrito há um século e meio e que todo trabalhador deveria levar escrita em um pedacinho de papel para jamais esquecer: é do inferno dos pobres que é feito o paraíso dos ricos.

 

Nenhuma solução, porém, terá sentido sem o povo trabalhador como protagonista, assim como a maioria dos brasileiros. Não acredito e não aceito os chamados pactos pelo alto, com as elites. Quem vive do próprio trabalho não quer pagar a conta dos acertos políticos feitos no andar de cima.

 

Por isso, quero reafirmar algumas certezas pessoais. Não apoio, não aceito e não subscrevo qualquer solução que não tenha a participação efetiva dos trabalhadores. Não contem comigo para qualquer acordo em que o povo seja mero coadjuvante. Mais do que nunca, estou convencido de que a luta pela igualdade social passa sim por um processo que obrigue os ricos a pagarem impostos proporcionais a suas rendas e suas fortunas.

 

E esse Brasil, minhas amigas e meus amigos, está ao alcance das nossas mãos. Posso afirmar isso olhando nos olhos de cada uma e cada um de vocês. Nós provamos ao mundo que o sonho de um país justo e soberano pode sim se tornar realidade. Eu sei, vocês sabem, que podemos de novo fazer do Brasil o país dos nossos sonhos. E dizer, do fundo do meu coração: estou aqui, vamos juntos reconstruir o Brasil. Ainda temos um longo caminho a percorrer juntos. Fiquem firmes, porque juntos nós somos fortes. Viveremos e venceremos.

 

Luiz Inácio Lula da Silva

 

https://www.alainet.org/en/node/208824?language=en
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