Racismo e anticomunismo, só para lembrar

O resurgimento propagandistico do anticomunismo, as relações históricas dos EUA com o nazismo e as consequências da nova maquinaria midiática contra a Russia.

18/03/2022
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Análisis
f.elconfidencial.com_original_c04_845_c84_c04845c847fee274a25fae6d359872d1.jpg
-A +A

Com a invasão da Ucrânia, a campanha internacional contra a Rússia parece já ter superado os níveis de histeria anticomunista e anti-União Soviética dos tempos da Guerra Fria. Às sanções econômicas somam-se pressões contra atletas e artistas russos.

 

A soprano russa Anna Netrebko, por exemplo, teve seus concertos cancelados e foi praticamente banida dos teatros da Europa Ocidental e dos EUA devido a suas ligações com Vladimir Putin.

 

Comparar a punição do Ocidente a esta artista da Rússia com o que aconteceu com alguns artista alemães na época da Guerra Fria pode revelar algumas coisas. A soprano Elisabeth Schwarzkopf teve uma carreira de enorme sucesso nos anos 40 e 50. Porém, segundo Frances Storno Saunders, autora de Who paid the piper?, um importante livro sobre o papel da CIA e de grupos organizados da direita na instrumentalização da literatura e da arte contra o comunismo e a União Soviética durante a Guerra Fria, “Elisabeth Schwarzkopf tinha dado concertos para as Waffen SS na frente oriental, tinha estrelado nos filmes de propaganda de Goebbels e foi incluída por ele em uma lista de artistas abençoados por Deus! Seu número de filiação ao Partido Nacional Socialista era 7548960. (...) Schwarzkopf foi autorizada pela Comissão de Controle Aliada e prosseguir com a sua carreira. Mais tarde, ela foi condecorada como Dama do Império Britânico.”

 

E o conhecido maestro Herbert von Karajan, segundo a mesma autora “Ele (Karajan) era membro do partido desde 1933 e nunca hesitou em abrir seus concertos com o Horst Wessel Lied, uma das canções favoritas dos nazistas. Seus inimigos se referiam a ele como SS Coronel von Karajan. Mas apesar de favorecer o regime nazista, ele foi rapidamente reintegrado como o rei indiscutível da Filarmônica de Berlim, a orquestra que nos anos pós-guerra foi construída como o baluarte simbólico contra o totalitarismo soviético.”

 

Elisabeth Schwarzkopf e Herbert von Karajan não foram os únicos apoiadores do nazismo dentro da elite cultural da Alemanha. Os pianistas Wilhelm Backhaus e Wilhelm Kempff – a quem Hitler chamava de Mein Kempff – dentre muitos outros, apoiaram o regime. Todos excelentes músicos, dentre os maiores do século XX, assim como Anna Netrebko no século XXI. Com o fim da guerra, todos retomaram suas bem sucedidas carreiras. Nenhum deles foi banido das salas de concerto e dos teatros ou sofreu punições por suas ligações com o nazismo como Anna Netrebko.

 

A cooptação de vários nazistas, inclusive criminosos de guerra, pelos EUA logo após a derrota da Alemanha, é um fato conhecido e há bastante literatura a respeito. Com o fim da guerra os nazistas se tornaram, pelos seus conhecimentos e convicções, aliados importantes na luta contra o comunismo e a União Soviética.

 

Deste modo, a desnazificação da Alemanha não foi um processo nem muito profundo nem muito extenso. Na verdade, a reconstrução do capitalismo não só na Alemanha mas em toda a Europa foi feita com a ajuda e o empenho de vários nazistas, fascistas e outros grupos de direita e extrema-direita. Sobretudo grandes industriais e banqueiros que colaboraram com o nazismo na Alemanha e na França foram poupados. E artistas como Herbert von Karajan e Elisabeth Sschwarzkopf foram limpos de suas conexões com o nazismo para servir à maquina de propaganda do ocidente capitalista.

 

O nazismo voltou a ser um tema de discussão devido à presença de grupos neonazistas no governo de Zelensky na Ucrânia, apoiado pelos EUA. O renomado jornalista australiano John Pilger, por exemplo, escreeveu:

 

“Após o golpe na Ucrânia em 2014 - orquestrado pela enviada de Barack Obama em Kiev, Victoria Nuland - o regime golpista, infestado de neonazistas, lançou uma campanha de terror contra Donbas, de língua russa, que representa um terço da população da Ucrânia.

 

“Supervisionadas pelo diretor da CIA John Brennan em Kiev, ‘unidades especiais de segurança’ coordenaram ataques selvagens contra o povo de Donbas, que se opôs ao golpe. Vídeos e relatos de testemunhas oculares mostram bandidos fascistas queimando a sede do sindicato na cidade de Odessa, matando 41 pessoas presas no interior. A polícia não reagiu. Obama parabenizou o regime golpista ‘devidamente eleito’ por sua ‘notável contenção’.”

 

No mesmo artigo John Pilger ainda lembra que:

 

“Quase todos os russos sabem que foi através das planícies da fronteira da Ucrânia que as divisões de Hitler invadiram a União Soviética pelo oeste em 1941, impulsionadas pelos cultistas e colaboradores nazistas da Ucrânia. O resultado foi a morte de mais de 20 milhões de russos.”

 

Por outro lado, o eminente especialista norte-americano em assuntos da Rússia, Stephen Cohen, num artigo de maio de 2018, alertava:

 

“A narrativa político-midiática ortodoxa norte-americana responsabiliza somente ‘a Rússia de Putin’ pela nova Guerra Fria EUA-Rússia. A manutenção desta verdade parcial (no máximo) envolve várias práticas malfeitoras da mídia dominante, entre elas a falta de contexto histórico; reportagens baseadas em ‘fatos’ não verificados e fontes seletivas; parcialidade editorial; e a exclusão, mesmo que parcial, de proponentes de narrativas explicativas alternativas, classificando-os como ‘apologistas do Kremlin’ e portadores de ‘propaganda russap''.

 

“Não menos importante, porém, é a natureza altamente seletiva da narrativa principal da nova Guerra Fria, o que ela opta por apresentar e o que ela virtualmente omite. Entre as omissões, poucas realidades são mais importantes do que o papel desempenhado pelas forças neofascistas na Ucrânia, apoiada pelos EUA e governada por Kiev desde 2014. Nem mesmo os americanos que acompanham as notícias internacionais sabem, por exemplo, do seguinte:

 

  • “Que os franco-atiradores que mataram dezenas de manifestantes e policiais na Praça Maidan de Kiev em fevereiro de 2014, desencadeando assim uma ‘revolução democrática’ que derrubou o presidente eleito, Viktor Yanukovych, e levou ao poder um virulento regime anti-russo e pró-americano - não foi nem uma revolução nem democrática, mas um golpe violento que se desenrolou nas ruas com apoio de alto nível - não foram enviados por Yanukovych, como ainda é amplamente divulgado, mas quase certamente pela organização neofascista Setor Direita e seus co-conspiradores.”
  • “O pogrom que queimou até a morte russos étnicos e outros em Odessa pouco tempo depois, em 2014, que reavivou as memórias dos esquadrões de extermínio nazistas na Ucrânia durante a Segunda Guerra Mundial, foi praticamente apagado da narrativa dominante americana, embora continue sendo uma experiência dolorosa e reveladora para muitos ucranianos.”
  • “Que o Batalhão Azov de cerca de 3.000 combatentes bem armados, que desempenhou um importante papel de combate na guerra civil ucraniana e agora é um componente oficial das forças armadas de Kiev, é declaradamente ‘parcialmente’ pró-Nazista, como evidenciado por suas regalias, slogans e declarações programáticas, e bem documentado como tal por várias organizações internacionais de monitoramento.”
  • “Que as agressões feitas por esquadrões de ataque contra gays, judeus, russos étnicos, idosos e outros cidadãos ‘impuros’ são generalizadas em toda a Ucrânia governada por Kiev, juntamente com marchas de tochas que lembram aquelas que eventualmente inflamaram a Alemanha no final dos anos 1920 e 1930. E que a polícia e as autoridades legais oficiais não fizeram praticamente nada para impedir esses atos neofascistas ou para processar os responsáveis. Pelo contrário, Kiev os encorajou oficialmente, reabilitando sistematicamente os colaboradores ucranianos com os pogroms de extermínio nazista alemães e seus líderes durante a Segunda Guerra Mundial, renomeando ruas em sua homenagem, construindo monumentos para eles, reescrevendo a história para glorificá-los, e muito mais.”
  • “Que o relatório anual oficial do Estado de Israel sobre anti-semitismo em todo o mundo em 2017 concluiu que tais incidentes haviam dobrado na Ucrânia e que o número ‘superou a contagem de todos os incidentes relatados em toda a região em conjunto’. Por região, o relatório significava o total em toda a Europa Oriental e em todos os antigos territórios da União Soviética.”

 

Neste contexto é importante mencionar a recenete resolução da ONU que apela para ‘combater a glorificação do nazismo, do neonazismo e de outras práticas que contribuem para alimentar as formas contemporâneas de racismo’. As únicas nações que votaram contra esta resolução foram os Estados Unidos e a Ucrânia,130 nações votaram a favor e 49 se abstiveram. 

 

Anticomunismo, racismo e a direita nos EUA.

 

Segundo escreveu o historiador Eric Foner no livro ‘The Story of American Freedom’:

 

“O anticomunismo tornou-se uma ferramenta empunhada por supremacistas brancos contra os direitos civis dos negros, de empregadores contra sindicatos e de defensores da moralidade sexual e dos papéis tradicionais de gênero contra a homossexualidade, todos alegadamente responsáveis pela erosão do espírito de luta do país.”

 

E para Sara Diamond, uma estudiosa dos movimentos da direita nos EUA e autora do livro ‘Roads to Dominion’:

 

“O anticomunismo tornou-se o motivo dominante da direita americana não só porque justificava a imposição do domínio americano internacionalmente, mas também porque reagrupava elementos díspares da ideologia de direita. Em um nível elitista, o anticomunismo tratava de preservar a desigualdade econômica e a tensão libertária no pensamento de direita. Em um nível mais popular, o anticomunismo tratava da obediência à autoridade e da repressão da dissidência política interna e das tendências desviantes na cultura mais ampla.”

 

Nos anos 50 e 60 do século passado, os supremacistas brancos dos EUA lutaram ferozmente contra a integraçâo dos afro-americanos – que os permitiria frequentar as mesmas escolas e locais públicos frequentados pelos ‘brancos’ - que finalmente foi decidida e imposta pela Suprema Corte. Sara Diamond cita uma reveladora declaração de Robert Paterson, uma liderança supremacista daquela época, em um relatório de 1956 de sua organização, a Associação de Conselhos de Cidadãos do Mississippi:

 

"(...) A integração representa a escuridão,a regimentação,o totalitarismo, o comunismo e a destruição. A segregação representa a liberdade de escolher seus associados, o americanismo, a soberania do Estado e a sobrevivência da raça branca”.

 

Nos EUA, anticomunismo e racismo sempre caminharam juntos. E se nem todo racista é nazista, todo nazista é racista. O racismo e a supremacia branca são a base comum do fascismo e do nazismo. Deste modo,o apoio dos EUA aos neonazistas ucranianos é a continuação de uma colaboração bem mais antiga da supremacia branca e das elites econômicas dos EUA com o fascismo e o nazismo na luta contra a integração dos afro-americanos, por um lado, e a cruzada anticomunista por outro.

 

A campanha antirussa atual é uma continuação da cruzada anticomunista da Guerra Fria, utilizando os mesmo métodos , com os mesmos colaboradores e o mesmo objetivo: a imposição do sistema capitalista e a dominaçâo das elites econômicas do ocidente sobre todo o planeta. A União Soviética e o Pacto de Varsóvia já não existem mais, porém a Rússia de Vladimir Putin cometeu o crime supremo: não se tornou uma nova colônia do ocidente. A neocolonização da Rússia iniciada sob Boris Yeltsin foi revertida por Putin, e por isso ele é tão execrado.

 

A eleição do atual presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, foi uma consequência direta da deposição do presidente Yanukovych, do mesmo modo que a eleição de Bolsonaro veio em seguida ao golpe contra a presidente Dilma Rousseff. E não é uma coincidência que tanto no golpe contra Dilma Rousseff no Brasil como na ‘revolução’ de 2014 na Ucrânia, grupos de direita e extrema-direita – neonazis no caso da Ucrânia – tenham tido um papel fundamental na articulação das manifestações nas ruas. Tampouco é uma coincidência que empresas como a Monsanto tenham entrado na Ucrânia logo após a derrubada do presidente Yanukovych, pois a mesma Monsanto esteve envolvida no golpe parlamentar que derrubou o Presidente Fernando Lugo no Paraguai em 2012. Por sua vez, o golpe no Brasil abriu as portas para a exploração das reservas de petróleo por empresas estrangeiras e para toda uma série de privatizações. Grandes corporações como a Shell ou a Monsanto – adquirida pela Bayer em 2016 - e grupos de direita e extrema-direita estão interligados num mesmo movimento político, o neoliberalismo.

 

Para Sara Diamond “Um padrão é evidente. Ser de direita significa apoiar o Estado em sua capacidade de imposição da ordem e opor-se ao Estado como distribuidor de riqueza e poder para baixo e de forma mais eqüitativa na sociedade. Ao longo da história dos movimentos de direita nos EUA, veremos este padrão recorrente com uma organização atrás da outra trabalhando para reforçar o capitalismo, o militarismo e o tradicionalismo moral. “

 

Defender um Estado forte quando se trata de impor a ‘ordem’, ou seja, de reprimir, mas opor-se ao Estado quando se trata de distribuição de riquezas e poder ou da manutenção de um setor público forte de educação e saúde – esta é a essência do neoliberalismo.

 

Para impor sua agenda de privatizações, de destruição dos direitos sociais e trabalhistas e de proteção ao meio-ambiente, à saúde e à educação, ao neoliberalismo só resta mobilizar o apoio das forças mais reacionárias ainda existentes na sociedade, o fascismo latente. Pois o fascismo nada mais é do que o neoliberalismo de botas e uniforme. Ou, dito de outra maneira, o neoliberalismo é o fascismo à paisana.

 

Diante disto, não é de surpreender que na Ucrânia, no Brasil ou na Bolívia de Evo Morales, o racismo e a supremacia branca, em suas formas mais extremas do fascismo e do nazismo, tenham sido instrumentalizados para apoiar golpes de estado e impor políticas econômicas de concentração de riquezas e de poder, de rígida hierarquização e exclusão social. O aumento substancial de grupos neonazistas no Brasil sob o governo Bolsonaro, mais uma vez, não é uma coincidência, é o resultado de um projeto político aplicado tanto na América Latina quanto na Ucrânia.

 

Como escreveu Eric Foner :

 

“A liberdade na Guerra Fria era um conceito circular. Se uma nação fazia parte da aliança militar anticomunista mundial liderada pelos Estados Unidos, ela automaticamente se tornava um membro do ‘mundo livre’. Este uso produziu anomalias como a Espanha fascista sendo elogiada pelo Presidente Eisenhower por sua devoção à liberdade, e a República da África do Sul sendo incluída dentro do ‘mundo livre’, apesar de sua minoria branca ter privado a população negra de quase todos os seus direitos.”

 

O ‘mundo livre’ de hoje impõe sanções não só contra a Rússia, mas contra Cuba e Venezuela. O ‘mundo livre’ apoiou e legitimou os golpes contra Fernando Lugo no Paraguai, contra Manuel Zelaya em Honduras, contra Dilma Rousseff no Brasil e contra Evo Morales na Bolívia, dentre tantos outros. Este é o verdadeiro ‘admirável mundo novo’ onde neonazis são heróis lutando pela liberdade e o racismo continua a exterminar os povos indígenas e os afro-descendentes na América Latina em nome do progresso e do capital.

https://www.alainet.org/en/node/215151?language=es
Subscribe to America Latina en Movimiento - RSS