De Caetés ao Planalto, de Retirante a Presidente: Uma viagem de 500 anos

27/11/2002
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Durante anos, a aristocracia portuguesa manteve centenas de marcineiros, pedreiros e outros trabalhadores envolvidos na construção de suas caravelas; agricultores e comerciantes preparando o material necessário para as longas viagens, ao longo das quais milhares de homens do povo morriam em naufrágios, para, quando a aventura surtia efeito, os nobres portugueses assumirem as novas terras e os lucros do comércio. A história brasileira é a narrativa do produto de homens do povo apropriado pela elite de seu tempo. Ao longo dos séculos, mudaram os produtos e os nomes dos dirigentes beneficiados, mas os produtores anônimos continuaram sendo relegados, sem escolas, sem moradia, sem lazer e até mesmo sem comida. O povo anônimo trabalhando e excluído e a elite controlando e usufruindo. Os imperadores foram substituídos por presidentes, os condes e barões viraram doutores e excelências, separados da mesma forma do povo que os elegia e os atendia. Por isto, a eleição do presidente Lula representa um símbolo de mudança, antes mesmo de seu governo começar. Sua viagem às cidades de Caetés e Garanhuns mostra o significado da diferença que sua eleição representa. Aos sete anos de idade, em 1952, o pequeno Lula saiu de Garanhuns como retirante. Aos 57 anos, volta como presidente. Mas não volta como uma pessoa diferente, que tenha enriquecido, virado doutor, passado para o lado da elite, e voltasse apenas por uma questão de cortesia atávica. Volta mais velho, famoso, experiente, mas o mesmo Lula. Esta é a grande vitória do Lula, vencer sem mudar. Se não houve até aqui nenhum presidente retirante, houve filhos de classe média baixa e até pobres. Nenhum dos principais candidatos a presidente em 2002 era filho de rico, mas todos tinham pago pedágio às elites. Lula não pagou nenhum dos preços cobrados pela elite para receber e legitimar os filhos de pobres. Não enriqueceu, não serviu a partido dos ricos, não se formou em universidade, não repudiou seu passado sindicalista. Muitos criticam Lula por não ter aproveitado seu enorme potencial, sua inteligência privilegiada para estudar formalmente e tirar um diploma universitário. Mas se Lula fosse doutor ele seria um presidente como os anteriores. Muitos criticaram ao longo dos anos o radicalismo do Lula, seu apego a um partido nitidamente de esquerda, mas se tivesse chegado ao poder por um dos partidos conservadores, Lula seria um presidente igual aos outros. O seu mérito é ter amadurecido, sem mudar de lado. Como ele próprio disse no discurso em Caetés, sua história de vida é mais importante do que sua vitória eleitoral. E foi esta história que criou as condições para uma das mais emocionantes viagens de um homem publico brasileiro. Quando saímos de Brasília para Recife, pouco antes das oito horas da noite, em um pequeno jato executivo, chamou nossa atenção, a lua cheia em frente, vista pelo parabrisa dos pilotos, parecendo um alvo à espera da flecha que nos carregava. Havia ali um simbolismo forte, do avião que levava um herói do povo em direção a seu povo. Lula em nenhum momento da viagem parecia aquele que poucas horas mais adiante choraria duas vezes diante da multidão. Não parecia preocupado com as responsabilidades que lhe espera, nem emocionado com o regresso à terra de onde partiu retirante para voltar presidente. De Recife, no dia seguinte no começo da tarde, para Garanhuns, no mesmo avião, a conversa tocou um pouco na sua vida passada e nos dias que nos esperam no governo, mas sem emoções maiores. Estas começariam a se manifestar quando, ao fazer as operações de pouso pudemos ver a enorme fila de carros e a multidão de gente esperando na pista e ao redor do terminal do pequeno aeroporto. Ao abrir a porta do avião a multidão gritava como se estivesse diante ao mesmo tempo de um primo que voltava vitorioso, um herói que chegava em gloria e sobretudo, do portador de esperanças. Do aeroporto ao centro de Garanhuns, mesmo sem saber exatamente em qual automóvel ele estava, a multidão gritava o nome de Lula. Desde o simples nome, até mensagens: "Deus te proteja", "Viva Lula", " Bem Vindo Irmão", "Sou seu Primo". No discurso ele soltou a emoção. Falou das lembranças de seu curto tempo como criança naquela terra, mas sobretudo de seu compromisso com o Nordeste. Acusando a elite de responsável pela seca, pela pobreza, pelo abandono da Região. Embaixo, a multidão fazia silencio absoluto ou gritava de repente em apoio, como se regida por um maestro invisível. Havia um claro casamento entre povo e orador. Não o casamento aparente que se vê entre o povo e governantes populistas, mas o casamento do povo com alguém que é um deles, ainda que totalmente diferente. Isso é Lula: líder e povo, com sua diferença de líder e e mesmo assim um deles. O presidente e o filho de D. Lindu. Muitos choravam, outros riam, todos olhavam com carinho e esperança, como nunca antes houve na história política do Brasil. A grande festa ainda estava por vir. Em Caetés. A cidade que era parte de Garanhuns, em 1952. Entre uma e outra cidade, havia uma placa que dizia "Aqui nasceu Lula-presidente", outra indicava a direção para o sítio onde ele tinha nascido e vivido até os sete anos. Uma outra dizia: "Obrigado D. Lindu, por ter dado a luz à esperança"; que poderia ser também "dado à luz a esperança". E havia as faixas dos primos. Os primos que talvez nada tenham a ver com família. Primos no sentido de irmãos sociais, iguais, companheiros, como se sente cada um daqueles habitantes que criaram um feriado e foram às ruas para ver o seu presidente. Um presidente que era um deles, como qualquer dos outros filhos de Lindus e Marias, filhos todos do povo. O curto mais demorado trajeto pela rua central de Caetés, o presidente e alguns políticos sobre uma camioneta e o povo ao lado, não parecia um desfile. Parecia uma caminhada de irmãos, primos, amigos, onde um deles era o centro, em cima do carro apenas para ser visto, não por ser diferente. O povo olhava Lula e falava com Lula. Um observador resumiria em: "Você é um dos nossos", "Finalmente, Lula, você nos levou até lá". Como se o povo estivesse tomando posse na presidência. Porque o povo, pela primeira vez sente como se estivesse tomando posse, desde 500 anos atrás, quando marinheiros portugueses descobriram nosso País; pela primeira vez desde quando, quase duzentos atrás, um português proclamou a independência e se coroou como nosso imperador; pela primeira vez desde quando uma princesa aboliu a escravidão, mas não distribuiu terra, nem fez escolas; pela primeira vez desde quando um marechal proclamou a república e esqueceu de construí-la; pela primeira vez desde quando, há 15 anos, redemocratizamos o Brasil e nada mudamos na nossa realidade social. Quando começou a falar, em Caetés, diante de uma multidão maior do que a população total da cidade, o Sol já estava desaparecendo, e em cima parecia que uma chuva chegaria naquele sertão nordestino. Lula falou com emoção ainda maior do que ele fala normalmente. Nenhum discurso, nem mesmo quando na avenida Paulista comemorou a vitória, na madrugada do dia 28, foi tão carregado de emoção. Chorou, sem disfarçar, quando falou em sua mãe, e disse que ela nunca baixou a cabeça, e disse que sua eleição era o exemplo que o povo precisava para saber que não precisa, nem deve baixar a cabeça diante dos poderosos. E disse que no seu governo, cada auxiliar precisa ter coração ainda maior do que o cérebro. O Brasil precisa de ministros e funcionários que em primeiro lugar tenham coração que chore quando sabe da pobreza, e cérebros que transformem a indignação em energia propulsora de propostas transformadoras. De auxiliares que unam a capacidade de indignar-se com a capacidade de criar soluções para resolver as causas da indignação. Lula demorou 500 anos para chegar ao Planalto, vindo de Caetés. Onde mora cada pobre deste país, cada desempregado, retirante, menino de rua, mãe desesperada, para o Planalto onde mora o poder que eles nunca tiveram. Mas, no avião, na volta, pudemos perceber que Lula tem consciência de que sua viagem está apenas começando. Foram necessários 500 anos para chegar ao Planalto, mas agora, nos próximos quatro anos, uma nova, mas difícil viagem terá que ser feita sob a coordenação do Presidente no sentido de abolir a pobreza, acabar com a exclusão social, realizar uma segunda e completa abolição, construir uma verdadeira republica, soberana, onde todos se sintam parte do mesmo país, onde o presidente não apenas tenha origem no povo mas governe para ele. Se conseguir fazer este próximo trajeto, Lula ficará na história, não apenas como o homem do povo que virou presidente, mas o presidente que virou o Brasil a favor do povo. * Cristovam Buarque. Professor do CDS/UnB. Brasília DF. 27 de novembro de 2002
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