Lições de Gaza: direitos humanos (2009-2014)

13/08/2014
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Segundo a Alta Comissária da ONU para Direitos Humanos, Navi Pillay, “parece que há um desafio deliberado de Israel a não cumprir com suas obrigações internacionais. Não deveríamos permitir este tipo de impunidade. Não deveríamos permitir que não se averiguem nem se persigam flagrantes violações”. Também afirmou que “instalar foguetes em meio a escolas e hospitais ou mesmo lançá-los de áreas densamente povoadas são violações à lei humanitária internacional”, mas tal fato não “absolve” Israel de violar a mesma lei. Ainda que as declarações sejam dadas em final de mandato, é importante salientar que há indícios de que o mundo no geral, e o Sul em especial, estão começando a virar-se contra Israel. Que lições para os direitos humanos podem ser tiradas tanto da ofensiva de 2009- que Ramón Grosfoguel entendeu ser o fim destes direitos- quanto desta, de 2014?
 
Primeiro: é cada vez mais evidente que a situação não pode ser chamada de “guerra”, mas sim de resistência contra uma ocupação ilegal de território há quase setenta anos, com absoluta indiferença a qualquer forma de pressão internacional pelos órgãos competentes. O relatório Gladstone, juiz judeu sul-africano, apontou existência de crimes de guerra em Gaza em 2009; o relatório Falk, de 2014, professor judeu de direito internacional, recomendou a investigação no sentido de averiguar efetiva ocorrência de colonialismo, apartheid e limpeza étnica na prolongada ocupação de tais territórios. É necessário, pois, o reforço da atuação do direito internacional. O sistema de vetos, também, é mais que a manutenção da guerra fria pós 45, ainda uma imposição colonial: é a prevalência do “direito da força” à “força do direito”.
 
Segundo: a manutenção de “única democracia da região” tem sido construída com o apoio às ditaduras do Cone Sul, à política de apartheid e à resistência dos processos resultantes da “Primavera Árabe”. A preferência por ditaduras seculares, na vizinhança, a processos mais alargados de participação popular, sem controle, parece ter sido a tônica da atuação geopolítica de direitos humanos do país. As críticas à política do país são insistentemente associadas a antissemitismo, ignorando que palestinos também são semitas e insuflando, no mesmo processo, diversas formas de discriminação a islâmicos. Uma profunda revisão da vertente democrática interna se faz necessária, com abertura para a demodiversidade.
 
Terceiro: o monopólio da “memória judaica”, em especial a partir da vertente sionista, não deixa espaço para outras narrativas não hegemônicas, sejam seculares ou laicas. É o que se verifica com os árabes israelenses e com o tratamento dado às judias etíopes. Trata-se, portanto, de pensar uma Israel pós-sionista e aberta a outras memórias, experiências e possibilidades.
 
Quarto: as restrições aos palestinos, tanto na Cisjordância quanto em Gaza, acentuadas em 1967 e mais preocupadas com a “segurança” de Israel, a partir de 1993, acabam por inviabilizar tratar-se da resistência a uma ocupação ilegal, direito assegurado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão e reforçado com a declaração da descolonização de 1960. O processo de descolonização, portanto, ainda está inconcluso. E a Palestina, dos últimos atos coloniais da Europa, está a mostrar a urgência de que esta  seja encaminhada. Mais que isso: que seja reconhecida a legitimidade dos interlocutores palestinos. Desde 1948, OLP, Fatah, Arafat, Abbas, Hamas vêm sendo progressivamente “descredenciados” por Israel como tais. A potência colonizadora, estabelecendo quem pode com ela negociar, acaba impedindo qualquer negociação.
 
Quinto: considerando que o relatório Falk de 2014 afirma que “parece incontestável que as medidas israelenses de fato dividem a população dos Territórios Palestinos Ocupados com base em critérios raciais, criam reservas separadas para os palestinos e expropriam sua terra” (§ 71), a “paz como caminho” e não somente as alegadas buscas do “caminho para paz” têm que ser pensadas não na exclusividade de um “Estado judeu e democrático”, mas sim buscar inspirações no Sul Global, com a discussão da bi ou plurinacionalidade, se for o caso. O período pós-apartheid pode ser outra inspiração para processos traumáticos que parecem insolúveis.
 
Sexto: a insistência em fazer de Israel um paraíso da “tolerância sexual” ao lado de perseguições dos islâmicos, sempre tidos como “conservadores”, invisibiliza as resistências queer palestinas, aumenta a propaganda israelense como a única retórica LGBT possível, e, fundamentalmente, tratam-se de “homonacionalismo”- nas palavras de Jasbir Puar- uma narrativa que liga política e questões LGBT a agendas imperialistas, estabelecendo que determinados corpos e sujeitxs formam parte do relato nacional. Ademais ignora a opressão exercida contra mulheres pelos judeus ortodoxos.
 
Sétimo: é ideia por demais etnocêntrica e supremacista imaginar que algum povo, comunidade ou país tem o “monopólio da dor e do sofrimento”. Ademais, “esquece” que tanto judeus quanto palestinos são igualmente semitas. É ignorar, na América, os mais de 500 anos de resistência indígena e os 400 anos de luta para a abolição da escravatura, e os sucessivos desterros após as independências nacionais.  A “dívida histórica” que a Europa tem, tanto em 1492, pela expulsão, quanto na Segunda Guerra Nacional, pelo Holocausto,  diz respeito também, no primeiro caso, aos muçulmanos e, no segundo, aos gays e ciganos. E não é demais lembrar o paradoxo: a Declaração de Direitos Humanos da ONU convive e coincide com o sistema de Jim Crow (EUA), com o estabelecimento do apartheid e com a Nakba (“catástrofe”), quando mais de 700 mil palestinos fugiram ou foram expulsos de seus lares, em função da guerra.
 
Oitavo: as resistências realizadas internamente, no geral, têm a expertise do conhecimento local, da possibilidade da inteligibilidade dentro dos parâmetros culturais e, muitas vezes, evitam a visão de interferência externa. Devem, na medida do possível, ser exploradas, valorizadas e utilizadas, o que não impede alianças transnacionais e coalizações internas de distintos atores sociais. Os sucessivos impasses nas “negociações” parecem indicar o caminho escolhido, desde 2005, por 171 ONGs palestinas, insatisfeitas com a política de Israel de manutenção de ocupação e expansão: BDS- Boicote, Desinvestimento e Sanções, inspirada na luta contra o apartheid. Trata-se, fundamental mas não exclusivamente, no boicote econômico de produtos fabricados em Israel ou que utilizem plantas nos territórios ocupados. Mas pode ser associado a boicotes acadêmicos, envolvendo universidades israelenses; rompimento de relações comerciais ou de tratados neste sentido; ou mesmo boicote cultural e desportivo (como suspensão da Sociedade de Arquitetura da respectiva União Internacional) ou político (como suspensão de relações diplomáticas).
 
Nono: de forma interessante, o apoio dado à Palestina pelas comunidades negras- e muçulmanas- da África do Sul-e também pelos povos indígenas de Turtle Island, Nasa da Colômbia e tzotsiles do México (islâmicos!) está a demonstrar que a forma de conhecimento para romper o colonialismo é a solidariedade. Da mesma forma que as opressões são interseccionais, as lutas contra elas também o são; e os conhecimentos que delas emergem são inter-conhecimentos, re-conhecimentos e auto-conhecimentos. A solidariedade internacional tem partido, pois, do Sul Global ou do sul do Norte Global. Paradoxalmente, Israel realiza nova ofensiva justamente no Ano Internacional de Solidariedade com o povo palestino, declarado pela ONU.
 
Em 1961, o filósofo judeu Ernst Bloch afirmou que “nem a dignidade humana é possível sem a liberação econômica, nem esta … sem a grande questão dos direitos do homem”, de tal forma que “não há instauração verdadeira dos direitos humanos sem por fim à exploração, nem verdadeiro término da exploração sem a instauração dos direitos do homem.” Os feminismos negros e não ocidentais, os coletivos LGBT e queer, as lutas pela independência na África e tantos outros movimentos antissistêmicos têm salientado que- mais que isto- os direitos humanos implicam também lutas contra os colonialismos, sexismos e racismos. Neste momento, parece que Gaza- e o fim da ocupação da Palestina- constituem motivações para pensarmos direitos humanos de alta intensidade.
 
- César Augusto Baldi é  Mestre em Direito (ULBRA/RS), doutorando Universidad Pablo Olavide (Espanha), servidor do TRF-4ª Região desde 1989,é organizador do livro “Direitos humanos na sociedade cosmopolita” (Ed. Renovar, 2004). Pesquisador associado do Núcleo de Estudos para a Paz e os Direitos Humanos – NEP, CEAM/UnB e integra o coletivo Diálogos Lyrianos (www.odireitoachadonarua.blogspot.com.br
 
14/ago/2014
 
https://www.alainet.org/es/node/102444
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