A esperança de Celso Furtado nas eleições de 2014
21/09/2014
- Opinión
Em seu blog inteligente, musical e bem informado, Luís Nassif escreveu por todos nós ao responder a mais uma provocação dos economistas neoliberais saídos da toca em nome de Marina Silva. Depois de Eduardo Gianetti dizer que a tradição da economia crítica da Unicamp era filhote da ditadura, agora vem um certo Alexandre Rands, em palestra sempre para mais banqueiros, afirmar que a “as propostas de Celso Furtado para o país não fazem mais sentido se é que já fizeram algum dia”. “Este um quem?”, perguntou ironicamente Luís Nassif, que faz esse juízo tão mal informado sobre o economista brasileiro mais reconhecido da nossa história, no Brasil e no mundo.
É o problema do fast food neoliberal: há a matriz de idéias – já marcada por uma exuberante indigência intelectual – e abrem-se “franquias” de idéias ainda mais caricaturais. O juízo questionável de origem é de Fernando Henrique Cardoso: o Brasil não seria mais um país subdesenvolvido mas sim injusto. Isto é, a correção de suas disparidades sociais não demandaria mais soberania nacional e reformas estruturais mas educação ( oferta de novas capacidades ) e mais mercado ( novas oportunidades). Mas nem Fernando Henrique Cardoso diria isto, que as idéias de Celso Furtado nunca teriam feito sentido.
Mais do que um sintoma, o episódio vale pelo sentido do que está em disputa nestas eleições de 2014. Como disse uma vez Walter Benjamin, se eles fossem capazes agora de vencer, não só os vivos, mas inclusive os mortos correriam perigo. Por um momento, revisitamos esta foto impressionante do velho economista nordestino em 1998 (na bela edição da Companhia das Letras, organizada por Rosa Freire Furtado, em memória dos 50 anos de “Formação Econômica do Brasil”), com o rosto vincado como o de um sertanejo e os olhos brilhando, apesar de tudo, de esperança. E o que nos diz, então, Furtado?
Certamente não seria uma lição específica do que fazer com os instrumentos disponíveis da macro-economia mas de como pensar os novos impasses econômicos do Brasil e como encontrar o caminho para um novo ciclo, dinâmico e sustentável, ainda mais profundo de crescimento, distribuição de renda e e inovação. Não seria uma solução técnica nem burocrática mas, como sempre fez Furtado , trata-se de construir razões apoiadas na legitimidade da vontade democrática do povo brasileiro. E estas eleições são, por excelência, o momento ideal para isso: formam-se maiorias eleitorais claras, amplas e sólidas com razões e com a força renovada da esperança.
Subdesenvolvimento e “O longo amanhecer”
É o problema do fast food neoliberal: há a matriz de idéias – já marcada por uma exuberante indigência intelectual – e abrem-se “franquias” de idéias ainda mais caricaturais. O juízo questionável de origem é de Fernando Henrique Cardoso: o Brasil não seria mais um país subdesenvolvido mas sim injusto. Isto é, a correção de suas disparidades sociais não demandaria mais soberania nacional e reformas estruturais mas educação ( oferta de novas capacidades ) e mais mercado ( novas oportunidades). Mas nem Fernando Henrique Cardoso diria isto, que as idéias de Celso Furtado nunca teriam feito sentido.
Mais do que um sintoma, o episódio vale pelo sentido do que está em disputa nestas eleições de 2014. Como disse uma vez Walter Benjamin, se eles fossem capazes agora de vencer, não só os vivos, mas inclusive os mortos correriam perigo. Por um momento, revisitamos esta foto impressionante do velho economista nordestino em 1998 (na bela edição da Companhia das Letras, organizada por Rosa Freire Furtado, em memória dos 50 anos de “Formação Econômica do Brasil”), com o rosto vincado como o de um sertanejo e os olhos brilhando, apesar de tudo, de esperança. E o que nos diz, então, Furtado?
Certamente não seria uma lição específica do que fazer com os instrumentos disponíveis da macro-economia mas de como pensar os novos impasses econômicos do Brasil e como encontrar o caminho para um novo ciclo, dinâmico e sustentável, ainda mais profundo de crescimento, distribuição de renda e e inovação. Não seria uma solução técnica nem burocrática mas, como sempre fez Furtado , trata-se de construir razões apoiadas na legitimidade da vontade democrática do povo brasileiro. E estas eleições são, por excelência, o momento ideal para isso: formam-se maiorias eleitorais claras, amplas e sólidas com razões e com a força renovada da esperança.
Subdesenvolvimento e “O longo amanhecer”
A primeira lição de Furtado foi sempre a de pensar o Brasil em suas temporalidades longas. O seu conceito central – o de subdesenvolvimento que organiza todo o seu campo de análise e de proposições, indicando a fixação de desigualdades estruturais na relação do Brasil com o mundo e na própria sociedade brasileira - foi construído como síntese de uma longa visão histórica e estrutural da nossa formação retardatária e desigual inserida na formação geral do capitalismo.
E, neste sentido, a questão posta por Furtado hoje para nós é: as conquistas históricas profundas e inéditas construídas nos últimos doze anos pelos governos Lula e Dilma já foram suficientes para superar o subdesenvolvimento?
A resposta provável de Furtado seria: não ainda embora nunca tenhamos criado tantas condições para superá-lo.
O que se conseguiu até agora construir na distribuição de renda, inclusão social e recuperação dos direitos do trabalho pode ser sinalizado, de modo apenas muito aproximativo, por alguns indicadores. Segundo o IPEA, o Índice de Gini (que mede a desigualdade, quanto mais próximo de zero menos desigual), foi de 0,495 em 2013, era de 0,583 em 2002 ( último ano FHC), sendo estimado em 0,536 em 1960. Isto é, o que conseguimos avançar, por este índice bastante utilizado mas ainda impreciso, foi desfazer a concentração de renda fortalecida nos 21 anos da ditadura militar e praticamente mantida nos oito anos de neoliberalismo e começar a ir além, o que é uma direção para entender o forte dinamismo desconcentrador destes últimos doze anos. Nos países que construíram estruturas do Estado do bem-estar social, o processo de mudança na distribuição mais rápido foi a diminuição anual de 0,007 na concentração da renda.
No que diz respeito à distribuição funcional da renda entre o capital e o trabalho, a partir das Contas Nacionais do IBGE, somando os salários e a remuneração dos autônomos, este índice era de aproximadamente 65 % em 1959, de 64 % em 1995, de 58 % em 2004 e, a partir daí, crescendo sempre, tendo já atingido 62,3 % em 2009, segundo os cálculos do economista João Sicsú. Isto é, em um grande agregado aproximativo da distribuição entre os rendimentos do capital e dos assalariados e autônomos, estaríamos nos aproximando do índice do auge do período desenvolvimentista no pré-64.
No que diz respeito à evolução do valor real do salário mínimo, a partir do Índice do Custo de Vida calculado pelo Dieese, este era de R$ 1 211,98 em 1960, baixou a R$ 414,75 em 1990, a R$ 322,00 em 2002 ( último ano FHC) e subiu a R$ 514,00 em 2010 ( último ano Lula). Teve um acréscimo em seu valor real de 0,31 % em 2011 e de 8,30 % em 2012. Isto é, segundo o Dieese, estamos ainda longe do salário-mínimo alcançar o poder de compra real que tinha em 1960, apesar de ele comprar em 2010 2,17 cestas básicas ao invés de 1,42 cestas básicas em 2002, último ano do governo FHC.
A verdade é que o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo, embora nos últimos anos tenha sido um dos que mais conseguiram avançar na erradicação da pobreza. Esta desigualdade social estrutural está bem demonstrada exatamente pelo fato de que ainda mais de 40 milhões de pessoas precisarem de um complemento de renda através do Bolsa Família para sobreviver minimamente. O Brasil ainda é subdesenvolvido porque mantém ainda desigualdades sociais estruturais no acesso aos bens de civilização, como diria provavelmente Celso Furtado.
Esta visão de longo prazo é muito importante porque, como diria o mestre Furtado, ainda há muito o que distribuir para mais poder crescer. E isto é mais verdade ainda para os últimos anos nos quais convergiram o menor crescimento das exportações brasileiras em função da crise internacional, o fato dos ganhos na demanda interna por inclusão social passarem a ser mais de natureza incremental, o salário-mínimo teve um crescimento menor, o emprego aumentou em taxas menores e o caminho da expansão do crédito foi por duas limitado por manobras altistas do Banco Central e pelo endividamento das famílias. E é mais preocupante ainda porque teria prevalecido na opinião especializada o diagnóstico de que o problema estaria centrado na rigidez estrutural da oferta, diante da maior pressão inflacionária.
Mas também nas relações do Brasil com o mercado mundial, a dependência (que acompanha sempre o subdesenvolvimento, na visão de Furtado) evidencia que o Brasil ainda não superou plenamente as heranças histórico estruturais de sua condição antes periférica. Está decerto mudando a inserção do Brasil no sistema-mundo, para lembrar Wallerstein e Arrighi, e estamos viajando historicamente da semi-periferia para o centro.
Mas esta viagem está ainda a meio caminho: se saímos da dependência do FMI, que retornava em crises cambiais fatais desde os anos oitenta, se estamos construindo uma nova institucionalidade econômica alternativa com os BRICs, se temos hoje uma muralha de centenas de bilhões de dólares de reservas cambiais acumuladas, as nossas exportações dependem fundamentalmente de commodities, a indústria nacional patina e as inovações ainda não encontraram um ambiente prolongado e propício para construir suas redes e suas cadeias de internacionalização.
E ainda o mais importante: o conceito de subdesenvolvimento de Celso Furtado jamais foi economicista e sempre mirou nas construções cristalizadas no Estado brasileiro, que reproduziam a dinâmica do subdesenvolvimento. Daí o segundo conselho que o mestre Furtado nos daria: olhar para as relações que conseguimos construir entre a democracia e a macro-economia brasileira.
Democracia e superação do subdesenvolvimento
A razão central para o maior valor de Celso Furtado na cultura do nacional-desenvolvimentismo no pré-64, em um ambiente em que a esquerda brasileira ainda não conjugava bem socialismo e democracia, era o de sempre vincular a superação do subdesenvolvimento ao aprofundamento da democracia no Brasil. Se é verdade que havia neste período ainda nele uma certa ilusão nos poderes da racionalidade do planejamento público frente ao estrito interesse das classes em disputa, depois de 1964 houve sempre e cada vez mais um aprofundamento e uma politização do pensamento e da ação de Furtado até se tornar, apesar do exílio, o principal intelectual orgânico do então MDB.
Este caminho que vai da economia política reformista para uma política radical da economia o levaria, afinal, a se encontrar com este outro grande intelectual nordestino em formação, que é Lula. Antes do encontro, Celso Furtado já havia formulado o pensamento de que, diante da crescente transnacionalização da grande burguesia brasileira, os destinos nacionais dependeriam cada vez mais da força e do poder político das classes trabalhadoras.
Como homem público, Celso Furtado nunca pensou uma solução econômica para um impasse sem o dilema da formação da formação de sua legitimidade na opinião pública. A operação Nordeste e a criação da Sudene, após um trauma humanitário nacional com os dramas da grande seca do fim dos anos cinqüenta, só foi possível porque fez convergir a opinião sagrada de um Dom Hélder Câmara, o radicalismo das Ligas Camponesas, a nova liderança de Arraes, a canção sertaneja de Luiz Gonzaga, as visões do Cinema Novo e da canção de protesto, a rebeldia dos jovens e da consciência nacional: na canção de Carlos Lira, o subdesenvolvimento virou até canção para o s jovens do CPC. Nunca, então, o Brasil foi tão nordestino.
Foi Celso Furtado talvez quem expressou, de forma mais dramática, no pré-64 que a composição da Câmara Federal e principalmente do Senado eram uma barreira, de formação patrimonialista e conservadora, às reformas de base que eram necessárias para o Brasil superar o subdesenvolvimento. Em escritos pouco conhecidos, chegou a reivindicar a formação de uma nova “ciência política” para os novos tempos, embora sua linguagem nunca tenha freqüentado e se desenvolvido nas avenidas abertas pelas culturas da democracia participativa.
O combate à corrupção sistêmica no Estado brasileiro, identificando as heranças do patrimonialismo que ele tanto enfrentou na sua cruzada contra a “indústria da seca” ou a privatização das funções do Estado tão limpidamente defendida pelos seus adversários liberais, sempre foi central para Furtado. Ele bem sabia que a corrupção deslegitimava exatamente a dimensão pública do Estado que era necessário alargar e tornar referencial.
Identificando no capitalismo uma fatal separação entre a racionalidade dos meios e a racionalidade dos fins, pregava sempre pela formação de uma vontade pública informada e socialmente ampla capaz de qualificar a própria noção do desenvolvimento, interagindo, então, a partir dos anos setenta, com as novas consciências ecológicas em formação.
Planejamento democrático e Banco Central soberano
Neste mesmo sentido, foi muito interessante o editorial do jornal Valor Econômico do dia 12 de setembro. Escrito em linguagem escandalizada, ele chamava a atenção da presidente Dilma, que em suas críticas à proposta de “autonomia do banco Central”, tinha ido longe demais na crítica aos poder dos bancos e à necessidade de subsunção dos poderes do Banco Central ao poder soberano.
Como são cínicos os neoliberais! Não foram eles quem, na ausência em cena de uma linguagem liberal mais cosmopolita e politicamente mais formada de Fernando Henrique Cardoso, expressaram seu protagonismo e interesses corporativos de modo tão nítido e voraz, avançando todos os sinais?
Pois muito bem: os bancos não devem formar um quarto poder e o Banco Central deve ser “servidor” – na boa linguagem republicana de Rousseau – dos interesses do povo soberano, como afirmou com uma nitidez nunca tão pública na democracia brasileira a presidente Dilma.
Este, o terceiro grande conselho provável do mestre Furtado: para democratizar a economia é preciso avançar nas condições do planejamento público. Por isto, controle soberano das riquezas do pré-sal e a prioridade para os bens públicos da educação e da saúde. Por isso, cada vez mais poder estratégico para os bancos públicos. Por isso, é preciso fundar uma nova economia de tributação no Brasil. Por isso, é preciso também construir mais legitimidade para uma nova macro-economia da dívida pública no Brasil, tanto mais responsável quanto mais combinar a responsabilidade fiscal com as funções públicas do Estado. Por isto, é preciso avançar na construção de um sistema nacional de inovação, que carreie para o interesse público prioritário as inovações da ciência brasileira.
Nestas eleições, a consciência do povo brasileiro está sendo desafiada a conjugar, como nunca antes, os seus direitos públicos com os valores da democracia e uma nova macro-economia do desenvolvimento. Um novo patamar de consciência cidadã pode estar se formando no Brasil através da própria dialética da luta de classes. Apuremos, então, os nossos sentimentos para a esperança que há nas razões de Celso Furtado.
E, neste sentido, a questão posta por Furtado hoje para nós é: as conquistas históricas profundas e inéditas construídas nos últimos doze anos pelos governos Lula e Dilma já foram suficientes para superar o subdesenvolvimento?
A resposta provável de Furtado seria: não ainda embora nunca tenhamos criado tantas condições para superá-lo.
O que se conseguiu até agora construir na distribuição de renda, inclusão social e recuperação dos direitos do trabalho pode ser sinalizado, de modo apenas muito aproximativo, por alguns indicadores. Segundo o IPEA, o Índice de Gini (que mede a desigualdade, quanto mais próximo de zero menos desigual), foi de 0,495 em 2013, era de 0,583 em 2002 ( último ano FHC), sendo estimado em 0,536 em 1960. Isto é, o que conseguimos avançar, por este índice bastante utilizado mas ainda impreciso, foi desfazer a concentração de renda fortalecida nos 21 anos da ditadura militar e praticamente mantida nos oito anos de neoliberalismo e começar a ir além, o que é uma direção para entender o forte dinamismo desconcentrador destes últimos doze anos. Nos países que construíram estruturas do Estado do bem-estar social, o processo de mudança na distribuição mais rápido foi a diminuição anual de 0,007 na concentração da renda.
No que diz respeito à distribuição funcional da renda entre o capital e o trabalho, a partir das Contas Nacionais do IBGE, somando os salários e a remuneração dos autônomos, este índice era de aproximadamente 65 % em 1959, de 64 % em 1995, de 58 % em 2004 e, a partir daí, crescendo sempre, tendo já atingido 62,3 % em 2009, segundo os cálculos do economista João Sicsú. Isto é, em um grande agregado aproximativo da distribuição entre os rendimentos do capital e dos assalariados e autônomos, estaríamos nos aproximando do índice do auge do período desenvolvimentista no pré-64.
No que diz respeito à evolução do valor real do salário mínimo, a partir do Índice do Custo de Vida calculado pelo Dieese, este era de R$ 1 211,98 em 1960, baixou a R$ 414,75 em 1990, a R$ 322,00 em 2002 ( último ano FHC) e subiu a R$ 514,00 em 2010 ( último ano Lula). Teve um acréscimo em seu valor real de 0,31 % em 2011 e de 8,30 % em 2012. Isto é, segundo o Dieese, estamos ainda longe do salário-mínimo alcançar o poder de compra real que tinha em 1960, apesar de ele comprar em 2010 2,17 cestas básicas ao invés de 1,42 cestas básicas em 2002, último ano do governo FHC.
A verdade é que o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo, embora nos últimos anos tenha sido um dos que mais conseguiram avançar na erradicação da pobreza. Esta desigualdade social estrutural está bem demonstrada exatamente pelo fato de que ainda mais de 40 milhões de pessoas precisarem de um complemento de renda através do Bolsa Família para sobreviver minimamente. O Brasil ainda é subdesenvolvido porque mantém ainda desigualdades sociais estruturais no acesso aos bens de civilização, como diria provavelmente Celso Furtado.
Esta visão de longo prazo é muito importante porque, como diria o mestre Furtado, ainda há muito o que distribuir para mais poder crescer. E isto é mais verdade ainda para os últimos anos nos quais convergiram o menor crescimento das exportações brasileiras em função da crise internacional, o fato dos ganhos na demanda interna por inclusão social passarem a ser mais de natureza incremental, o salário-mínimo teve um crescimento menor, o emprego aumentou em taxas menores e o caminho da expansão do crédito foi por duas limitado por manobras altistas do Banco Central e pelo endividamento das famílias. E é mais preocupante ainda porque teria prevalecido na opinião especializada o diagnóstico de que o problema estaria centrado na rigidez estrutural da oferta, diante da maior pressão inflacionária.
Mas também nas relações do Brasil com o mercado mundial, a dependência (que acompanha sempre o subdesenvolvimento, na visão de Furtado) evidencia que o Brasil ainda não superou plenamente as heranças histórico estruturais de sua condição antes periférica. Está decerto mudando a inserção do Brasil no sistema-mundo, para lembrar Wallerstein e Arrighi, e estamos viajando historicamente da semi-periferia para o centro.
Mas esta viagem está ainda a meio caminho: se saímos da dependência do FMI, que retornava em crises cambiais fatais desde os anos oitenta, se estamos construindo uma nova institucionalidade econômica alternativa com os BRICs, se temos hoje uma muralha de centenas de bilhões de dólares de reservas cambiais acumuladas, as nossas exportações dependem fundamentalmente de commodities, a indústria nacional patina e as inovações ainda não encontraram um ambiente prolongado e propício para construir suas redes e suas cadeias de internacionalização.
E ainda o mais importante: o conceito de subdesenvolvimento de Celso Furtado jamais foi economicista e sempre mirou nas construções cristalizadas no Estado brasileiro, que reproduziam a dinâmica do subdesenvolvimento. Daí o segundo conselho que o mestre Furtado nos daria: olhar para as relações que conseguimos construir entre a democracia e a macro-economia brasileira.
Democracia e superação do subdesenvolvimento
A razão central para o maior valor de Celso Furtado na cultura do nacional-desenvolvimentismo no pré-64, em um ambiente em que a esquerda brasileira ainda não conjugava bem socialismo e democracia, era o de sempre vincular a superação do subdesenvolvimento ao aprofundamento da democracia no Brasil. Se é verdade que havia neste período ainda nele uma certa ilusão nos poderes da racionalidade do planejamento público frente ao estrito interesse das classes em disputa, depois de 1964 houve sempre e cada vez mais um aprofundamento e uma politização do pensamento e da ação de Furtado até se tornar, apesar do exílio, o principal intelectual orgânico do então MDB.
Este caminho que vai da economia política reformista para uma política radical da economia o levaria, afinal, a se encontrar com este outro grande intelectual nordestino em formação, que é Lula. Antes do encontro, Celso Furtado já havia formulado o pensamento de que, diante da crescente transnacionalização da grande burguesia brasileira, os destinos nacionais dependeriam cada vez mais da força e do poder político das classes trabalhadoras.
Como homem público, Celso Furtado nunca pensou uma solução econômica para um impasse sem o dilema da formação da formação de sua legitimidade na opinião pública. A operação Nordeste e a criação da Sudene, após um trauma humanitário nacional com os dramas da grande seca do fim dos anos cinqüenta, só foi possível porque fez convergir a opinião sagrada de um Dom Hélder Câmara, o radicalismo das Ligas Camponesas, a nova liderança de Arraes, a canção sertaneja de Luiz Gonzaga, as visões do Cinema Novo e da canção de protesto, a rebeldia dos jovens e da consciência nacional: na canção de Carlos Lira, o subdesenvolvimento virou até canção para o s jovens do CPC. Nunca, então, o Brasil foi tão nordestino.
Foi Celso Furtado talvez quem expressou, de forma mais dramática, no pré-64 que a composição da Câmara Federal e principalmente do Senado eram uma barreira, de formação patrimonialista e conservadora, às reformas de base que eram necessárias para o Brasil superar o subdesenvolvimento. Em escritos pouco conhecidos, chegou a reivindicar a formação de uma nova “ciência política” para os novos tempos, embora sua linguagem nunca tenha freqüentado e se desenvolvido nas avenidas abertas pelas culturas da democracia participativa.
O combate à corrupção sistêmica no Estado brasileiro, identificando as heranças do patrimonialismo que ele tanto enfrentou na sua cruzada contra a “indústria da seca” ou a privatização das funções do Estado tão limpidamente defendida pelos seus adversários liberais, sempre foi central para Furtado. Ele bem sabia que a corrupção deslegitimava exatamente a dimensão pública do Estado que era necessário alargar e tornar referencial.
Identificando no capitalismo uma fatal separação entre a racionalidade dos meios e a racionalidade dos fins, pregava sempre pela formação de uma vontade pública informada e socialmente ampla capaz de qualificar a própria noção do desenvolvimento, interagindo, então, a partir dos anos setenta, com as novas consciências ecológicas em formação.
Planejamento democrático e Banco Central soberano
Neste mesmo sentido, foi muito interessante o editorial do jornal Valor Econômico do dia 12 de setembro. Escrito em linguagem escandalizada, ele chamava a atenção da presidente Dilma, que em suas críticas à proposta de “autonomia do banco Central”, tinha ido longe demais na crítica aos poder dos bancos e à necessidade de subsunção dos poderes do Banco Central ao poder soberano.
Como são cínicos os neoliberais! Não foram eles quem, na ausência em cena de uma linguagem liberal mais cosmopolita e politicamente mais formada de Fernando Henrique Cardoso, expressaram seu protagonismo e interesses corporativos de modo tão nítido e voraz, avançando todos os sinais?
Pois muito bem: os bancos não devem formar um quarto poder e o Banco Central deve ser “servidor” – na boa linguagem republicana de Rousseau – dos interesses do povo soberano, como afirmou com uma nitidez nunca tão pública na democracia brasileira a presidente Dilma.
Este, o terceiro grande conselho provável do mestre Furtado: para democratizar a economia é preciso avançar nas condições do planejamento público. Por isto, controle soberano das riquezas do pré-sal e a prioridade para os bens públicos da educação e da saúde. Por isso, cada vez mais poder estratégico para os bancos públicos. Por isso, é preciso fundar uma nova economia de tributação no Brasil. Por isso, é preciso também construir mais legitimidade para uma nova macro-economia da dívida pública no Brasil, tanto mais responsável quanto mais combinar a responsabilidade fiscal com as funções públicas do Estado. Por isto, é preciso avançar na construção de um sistema nacional de inovação, que carreie para o interesse público prioritário as inovações da ciência brasileira.
Nestas eleições, a consciência do povo brasileiro está sendo desafiada a conjugar, como nunca antes, os seus direitos públicos com os valores da democracia e uma nova macro-economia do desenvolvimento. Um novo patamar de consciência cidadã pode estar se formando no Brasil através da própria dialética da luta de classes. Apuremos, então, os nossos sentimentos para a esperança que há nas razões de Celso Furtado.
21/09/2014
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