Programa de governo de Marina: inconsistências de um projeto neoliberal tardio

24/09/2014
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Marcello Casal Jr/Agência Brasil
 
Dedico este texto ao grande intelectual e economista brasileiro Celso Furtado, que apontou um caminho para nossa geração, com grande rigor intelectual e ilimitada paixão pelo nosso país, mas que não pode percorrer conosco esse caminho de reconstrução do Brasil.

1. A incompatibilidade entre a política econômica ortodoxa e neoliberal e as políticas sociais
 
Estamos discutindo o futuro do Brasil e, portanto, o debate democrático deve ser feito de forma rigorosa e profunda. Convivi com Marina Silva por décadas, no Partido dos Trabalhadores (PT) e como parlamentar da mesma bancada no Congresso Nacional. Minha análise, extremamente crítica à candidatura de Marina, leva em conta a composição de forças heterogêneas, predominantemente conservadoras, que estão reunidas em torno de sua candidatura e as inconsistências e contradições presentes em seu programa de governo em seu discurso de campanha, que merecem reflexão criteriosa.

O programa de governo de Marina Silva é uma colcha de retalhos, mal costurada. Além do improviso e da precariedade de suas propostas, são gritantes a quantidade de plágios já comprovados e os sucessivos recuos diante de diversos temas. Isso reflete o próprio caráter de sua candidatura, que não é resultado do acúmulo de debates que costumam ocorrer no interior dos partidos políticos estruturados. Nos últimos anos, a candidata passou por três partidos e tentou, sem sucesso, criar um novo, mas não conseguiu reunir em torno de si, de forma organizada, quadros técnicos e políticos que fossem capazes de formular coletivamente um programa de governo à altura dos desafios que o país tem pela frente. O que ela fez foi costurar uma aliança política que não passa de uma aglomeração de personalidades e de apoios difusos. Por isso, seu programa acaba reunindo, às pressas, um conjunto de propostas contraditórias que denunciam sua tentativa de acomodar demandas de diversos setores, sem compromisso com a coerência e a eficácia de suas promessas de campanha.

A maior contradição de suas propostas está na opção em radicalizar o projeto neoliberal e a política econômica ortodoxa, ao mesmo tempo em que diz que vai ampliar as políticas sociais postas em prática nos últimos doze anos. Ela ignora que não há diálogo possível entre suas propostas neoliberais para a área econômica, inspiradas nos governos Collor e FHC, e as políticas de inclusão social dos governos Lula e Dilma. Na verdade, nunca uma candidatura presidencial levou tão longe seu compromisso com o Estado mínimo e políticas neoliberais tardias. Isso não aconteceu nem mesmo nos momentos de profunda crise econômica, em que o país esteve sujeito aos pacotes do FMI.

Na área econômica, ela se compromete com uma política de choque nos preços de energia, “o tarifaço”, que teria forte impacto na inflação; com a independência jurídica do Banco Central, na contramão de toda a reflexão teórica e política pós-crise de 2008 sobre o papel do Estado na regulação do sistema financeiro; com a criação de um Conselho Nacional de Responsabilidade Fiscal, formado por tecnocratas “independentes e sem qualquer vínculo com o governo”; com a redução do papel dos bancos públicos e do crédito direcionado para a indústria, a agricultura, a construção civil e para os consumidores de baixa renda; e com a eliminação da política de conteúdo local, que poderá desarticular principalmente a industrial naval e a cadeia de petróleo e gás.

Essas medidas implicam delegar aos credores da dívida pública e aos bancos privados o poder de arbitrar as taxas de juros e de câmbio e a regulação do sistema financeiro. Elas reduziriam drasticamente o poder de um governo democraticamente eleito para atuar no campo fiscal e orçamentário, além de suprimir o papel do Estado na execução de políticas anticíclicas, que no último período foram cruciais para o enfrentamento da crise internacional e para fomentar os investimentos e aumentar o emprego e a renda da população.

Ao mesmo tempo, com suas propostas de políticas sociais a candidata promete antecipar a meta de 10% do PIB para a educação (R$ 170 bilhões/ano), prevista no PNE, elevar o gasto com saúde para 10% da receita corrente bruta (R$ 40 bilhões/ano), aumentar em dois pontos percentuais o Fundo de Participação dos Municípios (R$ 9 bilhões/ano), estender o Bolsa Família para mais 10 milhões de famílias (R$ 19 bilhões/ano), acabar com o fator previdenciário (R$12 bilhões/ano), criar o passe livre estudantil (R$ 12 bilhões/ano) e multiplicar por dez o orçamento do Fundo Nacional de Segurança Pública (R$ 3,7 bilhões). Isso corresponde a cerca de R$ 260 bilhões, o que equivale a aproximadamente 5% do PIB.

Marina sabe muito bem que na vida pública é preciso eleger prioridades. E o que ela faz é desenhar uma política ortodoxa e recessiva na área econômica que conflita com suas promessas sociais. Sua clara subordinação aos interesses do setor financeiro revela, porém, que ela não terá como cumprir minimamente suas promessas sociais. Como a conta não fecha, ela não tem como esconder sua real prioridade, que será o ajuste fiscal ortodoxo. Ao mencionar suas promessas para a área social, Eduardo Giannetti, seu principal assessor econômico, enfatizou que “os compromissos assumidos no programa serão cumpridos à medida que as condições viabilizarem, sem prejuízo do equilíbrio fiscal”.

Enfim, seu programa de governo traz de volta um neoliberalismo tardio e uma política econômica ortodoxa, que, na prática, representará a negação da estratégia adotada nos últimos 12 anos, baseada na decisão de fazer da inclusão social e da distribuição de renda os eixos estruturantes do desenvolvimento econômico. Foi essa estratégia que permitiu a construção de um amplo mercado interno de consumo de massas, ancorado em inovadoras políticas de transferência de renda, ampliação massiva do emprego, aumento sustentado dos salários, em especial do salário mínimo, e outras políticas de inclusão, como o Bolsa Família. Os governos Lula e Dilma foram responsáveis pela maior distribuição de renda de nossa história e pela saída do Brasil do Mapa da Fome, segundo a ONU.

2. Política energética: uma estratégia cara e insustentável
 
Marina tem uma resistência antiga e anacrônica ao petróleo e ao pré-sal. No capítulo de energia de seu programa de governo não há qualquer referência ao pré-sal, que apenas é mencionado no capítulo de educação, quando se trata da destinação dos royalties, algo que já está previsto em lei aprovada por iniciativa do governo Dilma. A candidata ignora a importância do petróleo na matriz energética mundial, não apenas como fonte de energia, mas também sob a forma de produtos e serviços. São milhares de empregos gerados na exploração e distribuição, na petroquímica e em tantos outros setores em que o petróleo e seus derivados são empregados. O setor também é responsável por estimular a pesquisa, o desenvolvimento e a inovação, com impacto direto na produtividade da indústria e da economia como um todo, além de seu papel crucial para a melhoria das contas externas pelo seu grande peso na exportação de bens e serviços e no acúmulo de reservas cambiais.
 
Em 2009, ao ser entrevistada no programa Roda Viva, Marina defendeu que investir na exploração do pré-sal era uma “aposta errada”, um erro estratégico, pois os resultados relevantes só viriam em 20 anos. Nesse prazo, os combustíveis fósseis já teriam sido superados pelos biocombustíveis de segunda geração. Passados quatro anos, o pré-sal já é uma realidade, produzindo 540 mil barris/dia. Os governos Lula e Dilma implantaram o regime de partilha, que define a Petrobras como operadora única do pré-sal e estabelece uma política de compras públicas e de incentivo ao conteúdo local. Isso permitiu a construção de 15 novos estaleiros, que hoje empregam mais 80 mil trabalhadores, elevando para o quarto lugar no mundo a indústria naval brasileira, que uma década atrás estava destruída.
 
É inacreditável que uma candidatura presidencial defenda que a compra de nossas plataformas e navios de países asiáticos e que essa iniciativa possa ter algum efeito positivo sobre o investimento e o crescimento do país. O único efeito é que os empregos daqui vão migrar para países do outro lado do mundo, que não abrem mão de suas políticas de promoção industrial e de comércio exterior.
 
São essas políticas estratégicas que o coordenador de campanha, Walter Feldman, considera “doutrinárias” e que, em sua opinião, devem ser totalmente revistas. Essa revisão fará com que o pré-sal deixe de ser explorado pela Petrobras como única operadora, sob o regime de partilha. Além disso, a eliminação do regime de partilha e a retomada do regime de concessão no polígono do pré-sal implicariam entregar às grandes empresas privadas internacionais nossa reservas estratégicas, e também reduziriam significativamente a participação do povo brasileiro na distribuição dessa importante riqueza.
 
Mesmo com toda a relevância que o pré-sal e o petróleo têm para a economia brasileira, ela também propõe reduzir o uso dos combustíveis fósseis, restabelecer a CIDE e criar uma tarifa sobre a emissão de CO2 para desestimular as emissões. Medidas essas que não apenas trariam um forte e imediato aumento dos preços dos combustíveis, mas também da energia elétrica gerada por termelétricas e de todos os produtos e serviços que utilizam, direta ou indiretamente, derivados de petróleo. Seu programa de governo nem sequer cita as termoelétricas movidas a combustíveis fósseis, que têm se mostrado essenciais para a segurança e economicidade do sistema elétrico, especialmente no último período, quando enfrentamos uma situação de hidrologia bastante adversa.
 
A energia hidrelétrica é outro alvo da candidata. Hoje, as usinas hidrelétricas são a principal fonte de energia elétrica do país e os reservatórios são uma forma estratégica de estocar energia. O Brasil possui algo em torno de 160 GW de potencial hidrelétrico não aproveitado, metade dele concentrado na região Norte. Recentemente, Marina declarou que será necessário rever o plano de instalação de novas usinas hidrelétricas na região Norte, subestimando o imenso potencial disponível e o papel estratégico dessas usinas, de eclusas e de hidrovias para a nossa logística. No caso das hidrovias, elas são fundamentais para reduzir os custos logísticos da produção agrícola da região Centro-Oeste, permitindo também desafogar os portos das regiões Sul e Sudeste.
 
Além de subestimar o papel estratégico da energia hidrelétrica para o desenvolvimento sustentável da economia brasileira, seu programa de governo propõe justamente o oposto – que é preciso reorientar a matriz energética em direção às “fontes renováveis modernas (solar, eólica, de biomassa, geotermal, das marés, dos biocombustíveis de segunda geração)”, o que, como ela própria admite, deve trazer maior custo para o consumidor brasileiro, sem, no entanto, garantir a segurança energética do país.
 
Seu programa também ignora os avanços do país na geração de energia com fontes limpas, como a eólica, a solar e a biomassa. Nos governos Lula e Dilma, a oferta dessas fontes passou de 240MW para 3.101MW. A oferta de energia eólica vem crescendo entre 30% e 40% ao ano, o que nos coloca como segundo país que mais investe em geração eólica no mundo. Essa expansão tem ocorrido em paralelo ao desenvolvimento da produção doméstica de equipamentos para o setor, fruto das políticas industriais e de conteúdo local, que são tão duramente criticadas pela candidata.
 
O fato é que a produção regular de energia a baixo custo é estratégica para a competitividade da economia de qualquer país. Exatamente por isso, os Estados Unidos não estão permitindo a exportação do gás de xisto extraído de suas imensas reservas, recém-descobertas. Eles estão mantendo os preços extremamente baixos para dar competitividade à sua indústria, mesmo com o país ocupando a vanguarda tecnológica nas áreas de produção de energias limpas.
 
O Brasil já possui uma das matrizes energéticas mais limpas do mundo, domina as tecnologias necessárias para mitigar os impactos ambientais e já dispõe de políticas públicas e tecnologias sociais para transformar cada empreendimento do setor hidrelétrico e de petróleo e gás em recursos indispensáveis para o desenvolvimento sustentável. A vinculação dos royalties do pré-sal e de metade do Fundo Social para as áreas de educação e saúde é o melhor exemplo de como transformar uma riqueza não renovável em riqueza permanente e essencial para a construção da sociedade do conhecimento.
 
Os preconceitos de Marina se estendem à energia nuclear, que simplesmente é ignorada em seu programa de governo. Com Angra I e II e a construção de Angra III, o país está e continuará a gerar energia elétrica de baixo custo e fornecimento constante, ao contrário da energia gerada por usinas eólicas, solares e de marés, que depende fortemente dos ciclos da natureza. O desenvolvimento da indústria nuclear também é essencial para a área da saúde. Por sinal, em junho de 2010, a então senadora Marina Silva foi a única a votar contra a PEC 100, de 2007, que autorizava a produção, comercialização e utilização de produtos de radioisótopos para fins medicinais, sob supervisão da Comissão Nacional de Energia Nuclear. Na segunda votação dessa mesma PEC , quando se viu totalmente isolada no plenário, ela mudou o voto.
 
Para finalizar, a própria ONU reconhece que o Brasil é o país que mais contribuiu para a redução de emissões de gases de efeito estufa de todo planeta. Já atingimos 80% da meta voluntária que assumimos para 2020, de reduzir de 39% a 32% as emissões. O que o Brasil já reduziu em um ano equivale a todas as emissões do Reino Unido por igual período. A nossa matriz energética dá uma grande contribuição à nossa estratégia de desenvolvimento sustentável. Outra dimensão relevante é a redução do desmatamento da Amazônia. Quando o presidente Lula assumiu o governo, tínhamos 21 mil km2 de desmatamento/ano.
 
Durante a gestão de Marina no Ministério do Meio Ambiente, o desmatamento bateu recorde e chegou a 24 mil km2, e em 2007 reduzimos para cerca de 11 mil km2. Na gestão da presidente Dilma, tivemos as menores taxas de desmatamento da história da Amazônia, em torno de 5 mil km2 ano. O Brasil está construindo uma estratégia de desenvolvimento que combina crescimento econômico, inclusão social e sustentabilidade ambiental.
 
3. A independência do Banco Central e a terceirização da política fiscal
 
O programa de governo de Marina Silva traz duas propostas para a área econômica que transferem decisões políticas estratégicas para as mãos de tecnocratas, que em princípio deveriam promover o bem público, mas que tendem a se tornar guardiões de interesses econômicos privados quando suas decisões escapam ao controle político de governos eleitos democraticamente.
 
Sua proposta de independência legal do Banco Central, de certa forma, retira da população o direito de influir, ainda que indiretamente, em decisões que afetam o seu dia a dia, como, por exemplo, se o Banco Central deve considerar os impactos de suas decisões sobre o emprego e a renda. A Constituição brasileira apenas prevê a independência dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. O que ela está propondo é praticamente um quarto poder: o poder dos bancos, traduzido em um Banco Central com uma diretoria blindada diante de qualquer governo democraticamente eleito pelo povo. A autonomia operacional do BC vem sendo praticada há décadas no Brasil, mas a independência completa representa um grande retrocesso na relação entre o governo democraticamente eleito e o capital financeiro.
 
Esse debate é antigo, data dos governos Collor e FHC, mas não avançou nem mesmo quando estivemos submetidos às orientações do FMI. É inacreditável que essa proposta ganhe força depois da crise financeira internacional de 2008. Recentemente, o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, admitiu que a busca exclusiva do combate à inflação por um Banco central independente “tornou-se uma distração perigosa para a economia”.
 
Economistas laureados com o Nobel e ex-economistas chefe do FMI e do Banco Mundial, como Joseph Stiglitz, Paul Krugman e Simon Johnson destacam que os excessos dos bancos centrais independentes, sempre dispostos a atender aos pleitos dos mercados financeiros em matéria de regulação bancária e política monetária, estão na raiz da crise de 2008. Também ressaltam que os países com bancos centrais menos independentes, como o Brasil, a Índia e a China, foram aqueles que melhor enfrentaram a recente crise internacional.  O debate mundial, após 2008, caminhou no sentido contrário ao da proposta de Marina, pois o que está em pauta é como aprofundar a regulação e o controle sobre o sistema financeiro, estabelecer regras prudenciais e coibir os riscos e as consequências econômicas e sociais de novas crises financeiras.
 
A proposta de independência legal do Banco Central é agravada quando associada à retração dos bancos públicos na oferta de crédito. Hoje, os bancos públicos respondem por aproximadamente 50% da oferta de crédito. Como diz seu principal assessor econômico, Eduardo Giannetti, a indústria deve se preparar para ser “desmamada”.
 
Outro economista ligado à campanha, Alexandre Rands, qualifica os empresários como “prostitutas” na sua relação com os bancos públicos. São visões preconceituosas e rebaixadas da relação entre o Estado e setor privado, que, se levadas adiante, terão graves consequências para a indústria e todo o setor produtivo. Por sinal, também foram preconceituosas e rebaixadas as críticas ao ilustre brasileiro Celso Furtado e aos economistas da Unicamp.
 
Não satisfeita em delegar exclusivamente a técnicos as decisões de política monetária e a regulação do sistema financeiro, a candidata também propõe delegar a condução da política fiscal a outro grupo de tecnocratas não eleitos pelo povo, “sem vinculação a nenhuma instância de governo”: o Conselho Nacional de Responsabilidade Fiscal. Dessa forma, ela propõe terceirizar instrumentos fundamentais que os governos democráticos dispõem para a implementação da política fiscal e orçamentária e o enfrentamento de crises.
 
Essas propostas de Marina, concebidas sob o pretexto da racionalidade técnica, nos levarão, inexoravelmente, para o caminho da recessão, com o choque de preços de energia, o encarecimento do crédito, o aperto monetário e fiscal, a terceirização da política fiscal e, consequentemente, o rompimento completo com os compromissos sociais e com a própria estrutura produtiva do país.
 
4. O desmonte da política industrial e a retração dos bancos públicos
 
O programa de Marina Silva critica duramente os bancos públicos – que supostamente impediriam o desenvolvimento do crédito privado e do mercado de capitais – e condena os aportes do Tesouro nacional ao BNDES, bem como seus critérios na concessão de financiamentos. Entretanto, a presença e atuação dos bancos públicos têm sido fundamentais no financiamento de projetos estratégicos para o nosso desenvolvimento econômico, como grandes obras de infraestrutura e de modernização da indústria. É evidente que é importante desenvolver o crédito privado e novos instrumentos de crédito de longo prazo, mas é um equívoco privatizar o mercado de crédito e abrir mão de instrumentos públicos, para o investimento de longo prazo.
 
A atuação dos bancos públicos foi muito importante não apenas para a reação à crise de 2008, mas também para a manutenção de boa parte do dinamismo do mercado doméstico e para a recuperação do investimento, que permitiram combinar crescimento econômico com inclusão social. Diante da crise internacional, a política industrial e os bancos públicos (BB, BNDES, CEF, BASA, FINEP e BNE) têm sido utilizados pelos governos como instrumentos de política anticíclica e de renovação da estrutura produtiva.
 
Nos últimos anos, houve um aumento do ativismo do Estado em vários países, como os Estados Unidos, o Japão e a Coreia do Sul, para não mencionar a China, que é o principal exemplo de dinamismo e utilização de bancos públicos. Nesses países, o crédito público tem tido papel estratégico para a retomada e sustentação do investimento, sobretudo para impulsionar a inovação e reverter expectativas do setor privado.
 
No fundo, a candidata retoma uma velha proposta do sistema financeiro, que deseja acabar com o crédito direcionado e barato para atividades estratégicas em áreas como agricultura, habitação e investimento de longo prazo. Ou seja, estariam comprometidos os R$ 180 bilhões de reais/safra para a agricultura comercial e familiar, previstos no Plano Safra 2014-2015, os R$ 190 bilhões de reais/ano destinados pelo BNDES principalmente à indústria e à infraestrutura, e os recursos destinados aos programas de financiamento à habitação popular, como o programa Minha Casa, Minha Vida.
 
Com isso, o crédito ficaria mais caro, tanto para quem produz, quanto para quem quer comprar sua casa própria, derrubando assim os Investimentos e empurrando nossa economia para um ajuste ortodoxo e recessivo. As propostas da candidata desarticulam o sistema de crédito subsidiado em favor do sistema bancário tradicional. E com isso desconstituem a política industrial, com a retomada de propostas neoliberais que se mostram anacrônicas pós-crise de 2008.
 
Marina propõe eliminar a política de compras governamentais e conteúdo local.  Os principais alvos de suas medidas são a cadeia de petróleo e gás e a indústria automotiva. Isso significaria desarticular o Inovar Auto, que atraiu 12 novas montadoras para o país, adensou a cadeia produtiva no setor e está estimulando a pesquisa, desenvolvimento e inovação dessa indústria. Também significaria retomar o processo de desnacionalização de nossa indústria de autopeças, revertendo os esforços recentes. Da mesma forma, a suspensão da exigência de conteúdo local na cadeia de petróleo e gás desmobilizaria a capacidade de nossos estaleiros. Sofreriam, ainda, duro impacto os esforços de inovação e agregação de valor da indústria de fármacos e de tecnologia da informação.
 
A indústria de defesa também foi abandonada no programa de governo, apesar de ser estratégica para a soberania e o desenvolvimento tecnológico, pois demanda muita pesquisa e alta tecnologia, e para a balança comercial, pois essa indústria atualmente exporta US$ 2,5 bilhões por ano. O Brasil vem desenvolvendo importantes projetos, como a construção de submarinos para a defesa do pré-sal, os aviões cargueiros (modelo KC 390 da Embraer), Super Tucano, os novos caças Grippen, o sistema de monitoramento da Amazônia Azul, os Helicópteros Militares HX-BR, o Sisfron (Sistema de Monitoramento de Fronteiras), o veículo blindado Guarani e os veículos aéreos não tripulados – VANTS, muito importantes para a vigilância de nossas fronteiras.
 
Na sua visão, o crédito subsidiado só deve ser direcionado para investimentos em inovação, atividades econômicas de alto impacto social e de longa maturação, como infraestrutura. À restrição ao crédito de longo prazo para o investimento se soma a revisão da política de conteúdo local e a decisão de expor indiscriminadamente a indústria à concorrência internacional, mesmo àquela concorrência desleal, praticada por países que manipulam sua taxa de câmbio e não respeitam as convenções internacionais sobre direitos dos trabalhadores. O que ela esquece é que esse receituário já foi aplicado no Brasil nos anos 90, e resultou em um intenso processo de desindustrialização e desnacionalização de nossa indústria, com graves consequências para o emprego e a renda dos trabalhadores.
 
5. A subordinação das políticas sociais ao ajuste fiscal
 
Como já mencionei, Marina Silva propõe aumentar significativamente o gasto com programas sociais, prevendo um incremento de pelo menos R$ 260 bilhões por ano, o que equivale a 5% do PIB, mas em nenhum momento diz de onde virão os recursos necessários. Apenas diz que esse aumento seria financiado com ganhos de eficiência da administração pública e pelo fim do componente fiscal dos subsídios aos bancos públicos. Além de demagógica e inconsistente, essa proposta revela total desconhecimento pela candidata do Orçamento Geral da União.
 
Hoje, as despesas de pessoal equivalem a 4,1% do PIB e a margem para sua redução é pequena, até porque já reduzimos essas despesas em 0,5% do PIB, nos últimos 11 anos.  As despesas de custeio correspondem a outros 4%. Porém, metade dela é destinada às áreas de saúde e educação e são consideradas indispensáveis ao seu funcionamento.
 
Como a candidata propõe que a União antecipe a meta de 10% do PIB para a educação, prevista no PNE, e destine 10% da receita corrente bruta para a saúde, isso só aumentaria a parcela do PIB destinada ao custeio da saúde e da educação. Dessa forma, do total de 8,1% de gasto com pessoal e custeio que a candidata pretende otimizar, sobram apenas 2% do PIB para eventuais cortes diante de gastos adicionais da ordem de 5% do PIB. Ou seja, a conta não fecha.
 
Não é por outro motivo que Eduardo Giannetti diz que o investimento social será subordinado à meta fiscal, estabelecida por aquele Conselho de Responsabilidade Fiscal, independente do governo, a quem competiria assegurar o superávit primário. Ou seja, se a conta não fechar os pobres vão ter que esperar. Se as contas apertarem, os pobres, novamente, vão ser esquecidos na hora da definição do orçamento público.
 
Buscar um ganho de eficiência dessa ordem exigiria, portanto, arrochar salários, desestruturar carreiras e reduzir o atual quadro de servidores públicos. É bom lembrar que quando se tentou algo do gênero, o resultado foi o acúmulo de processos e condenações da União e a desestruturação de unidades chave,  para o planejamento e a gestão do Estado.
 
Ela também propõe cortar as linhas de crédito subsidiado e direcionados que beneficiam a agricultura, a habitação popular, a indústria, a infraestrutura e os exportadores. Contudo, essas subvenções equivalem, hoje, a aproximadamente 0,8% do PIB. Seu fim não supriria a necessidade de expansão do gasto social, mas certamente comprometeria investimentos estratégicos para o desenvolvimento do país.
 
Portanto, quando a candidata propõe um acréscimo de 5% do PIB, aproximadamente R$ 260 bi, nas despesas do governo federal, ela precisa dizer de onde virão esses recursos. A distribuição de renda e a inclusão têm um custo fiscal não desprezível, e são atualmente os eixos estruturantes do desenvolvimento econômico recente. A criação de um mercado interno de consumo de massas mudou a dinâmica econômica e as relações sociais do país. O retorno a uma política de choque, ortodoxa, e pautada por um neoliberalismo tardio e ultrapassado, significa, na prática, abdicar das políticas sociais que, de acordo com a ONU, foram responsáveis por uma inédita distribuição de renda e pela retirada do Brasil do Mapa da Fome.
 
Na política econômica proposta por Marina, o social é apenas uma variável de ajuste da política fiscal, que foi terceirizada para o seu comitê de tecnocratas.  

6. Política externa: a retomada da inserção subordinada do Brasil
 
As propostas de política externa da candidata representam a retomada da estratégia de inserção subordinada do Brasil na economia mundial. Sua concepção de integração às cadeias globais de produção vem acompanhada da renúncia a todas as formas de política industrial. O governo brasileiro abriria mão dos principais instrumentos necessários para o Brasil assegurar uma posição nessas cadeias globais, com bons empregos à população, impulso à inovação tecnológica e aumento do conteúdo nacional de nossos produtos.
 
O México é um exemplo do alinhamento comercial defendido por Marina. De 1999 a 2010, o PIB per capita em Paridade de Poder de Compra (PPP) do México cresceu 9,1%, enquanto que o do Brasil cresceu 31%. No mesmo período, pobreza atingiu 51% da população mexicana, enquanto que o Brasil, de 2001 a 2012, presenciou uma redução sem precedentes da desigualdade e da pobreza extrema, que caiu de 14% para 3,5% de acordo com a ONU. Qual o modelo de desenvolvimento parece mais adequado: o conduzido por Lula e Dilma ou o adotado pelo México?
 
De forma envergonhada, ela também propõe relativizar o Mercosul e a estratégia de integração regional ou mesmo abandoná-lo. Mas, ao se associar aos ataques conservadores ao Mercosul, ela omite que nos últimos anos o comércio mundial cresceu 180%, enquanto nossas exportações para o Mercosul cresceram mais de 600%, com destaque para as nossas exportações de bens industriais.
 
Além disso, o aprofundamento da integração produtiva e da infraestrutura regional vem permitindo ao Brasil, a maior economia do bloco, firmar-se como líder na região. Foi precisamente nos últimos anos que fortalecemos o Mercosul, que constituímos a Unasul e a Celac, em um ambiente de paz e democracia na região, em contraposição a um passado golpista e de longos períodos ditatoriais, com pesada interferência externa sobre os destinos políticos do continente. O Brasil não pode negligenciar seu papel regional, pois respondemos por mais da metade do território, do PIB e da população da América do Sul.
 
A outra grande frente de atuação de sua política externa conservadora conduz ao enfraquecimento da cooperação no âmbito dos BRICS, por meio da imposição de constrangimentos à cooperação, subordinando a agenda de cooperação a temas como meio ambiente e direitos humanos. Isso equivale a subordinar as relações com os EUA a temas como violações de direitos humanos em Guantánamo ou e o controle de emissões de CO2, pois os Estados Unidos são o maior emissor mundial e não é signatário do Tratado de Kyoto. Obviamente, isso a candidata não propõe.
 
Na prática, essa proposta esvazia os BRICS e compromete os esforços para a criação de novos mecanismos de promoção do desenvolvimento e estabilidade financeira, como o Novo Banco de Desenvolvimento dos BRICS e o Arranjo Contingente de Reservas, que estão se constituindo como instrumentos mais avançados que o Banco Mundial e o FMI.
 
Isso significa renunciar ao esforço de construção de um mundo multipolar e o retornar à lógica de inserção subordinada aos países desenvolvidos, cujo maior símbolo era o projeto de inserção na Alca. Naquela época, acumulávamos déficits comerciais de US$ 8,6 bilhões. Muito diferente da política externa e comercial dos governos Lula e Dilma, em que se acumularam superávits comerciais da ordem de US$ 312 bilhões e US$ 380 bilhões em reservas internacionais, ao mesmo tempo em que nossa diplomacia se ampliou e se diversificou em todo o mundo.
 
O Brasil, hoje, assumiu um protagonismo internacional em temas sociais, ambientais e econômicos, que é inédito em nossa história. É lamentável assistir o retorno de uma retórica conservadora, inteiramente associada a uma visão subalterna do Brasil no cenário internacional.

7. O ataque aos partidos e os riscos à governabilidade
 
Apesar de ter sido vereadora, deputada estadual, senadora por dois mandatos e ministra por cinco anos, e de ter passado por três partidos e por um projeto mal-sucedido de organização partidária, Marina Silva pretende se apresentar como porta-voz de uma “nova política”. Seu discurso se propõe a superar problemas históricos da democracia brasileira, tais como o predomínio de interesses econômicos e sociais hegemônicos, a concentração do poder político nas mãos de partidos tradicionais e de grupos oligárquicos, a existência de um presidencialismo de coalizão, que favorece o fisiologismo e a corrupção, e a baixa qualidade dos mecanismos de participação popular e de transparência pública.
 
Seus ataques aos partidos políticos têm sido direcionados especialmente ao PT, partido em que ela militou por 27 anos, cuja militância foi responsável pela condução a todos seus mandatos eletivos e pela sustentação dos embates políticos que travou ao longo de sua vida pública. A candidata parece ter esquecido que foi precisamente esse partido político, o PT, que permitiu que ela ganhasse a condição de liderança nacional.
 
A candidata sonha com um presidencialismo construído em torno de personalidades – “os homens de bem”. A ausência de apoio parlamentar esteve, porém, na raiz de crises institucionais, como as que ocorreram durante os governos Jânio e Collor. A eventual cooptação de quadros políticos oriundos de alguns partidos políticos não significa necessariamente o apoio parlamentar desses partidos. Portanto, a sua promessa de que governará com os “melhores” quadros de cada partido é não apenas ingênua, mas pode pôr em risco a própria governabilidade do país.
 
Além disso, sua proposta de reforma política enfraquece, sobretudo, os partidos programáticos. Por exemplo, a  implementação da “Verdade Eleitoral” representa o fim do quociente eleitoral, o que enfraqueceria principalmente os partidos políticos que têm em seus quadros lideranças políticas bem votadas. Isso seria agravado com a possibilidade de candidaturas avulsas aos cargos proporcionais, que favoreceria os candidatos com alta exposição pública, grande poder econômico, ou representantes de “causas” que já se elegem dentro da atual estrutura partidária, mas que deixariam de contribuir para o quociente eleitoral e para a vida partidária. O que enfraquece justamente os partidos de conteúdo programático, para os quais é essencial o acúmulo de debates e candidaturas.
 
Sua proposta de revisão da distribuição do tempo para a propaganda eleitoral também reduz a importância do voto do eleitor que determina o tamanho das bancadas parlamentares, critério utilizado na determinação de parte do tempo de televisão. Na sua visão, as bancadas parlamentares não seriam representativas da sociedade brasileira. Ou seja, a candidata acredita possuir uma fórmula “melhor” do que o voto do eleitor para definir essa representatividade, mas não diz qual é essa fórmula. E ao relativizar o tamanho das bancadas como critério para a distribuição de tempo proporcional de televisão, acena com a distribuição desse tempo de forma isonômica entre todos os candidatos, o que favoreceria as legendas de aluguel, sempre dispostas a usar o tempo de TV como moeda de troca, estimulando ainda mais a fragmentação partidária.
 
É inacreditável falar em “nova política” sem enfrentar um tema central, que está na raiz de quase todos os escândalos de corrupção envolvendo políticos – o financiamento privado empresarial das campanhas eleitorais. Em seu programa de governo, a candidata apenas se compromete a aperfeiçoar os mecanismos de fiscalização e prestação de contas das doações privadas. Ela caminha na direção contrária à do Supremo Tribunal Federal, que está prestes a proibir as doações de empresas privadas. Recentemente, até o Senado norte-americano deu início a um processo parlamentar para aprovar uma emenda constitucional que permitirá restringir definitivamente a influência de empresas privadas do processo eleitoral. Por ironia, nos últimos dias, Marina Silva passou a falar em financiamento público de campanha, em mais um recuo em seu programa de governo.
 
Sua única proposta modernizadora – convocar plebiscitos, referendos e facilitar o processo de aprovação de projetos de lei de iniciativa popular – é, na verdade, uma bandeira histórica do PT, que introduziu na gestão pública diversas formas de participação popular, como conferências nacionais e regionais, orçamento participativo e conselhos da sociedade civil. É bom lembrar que, desde 2010, a candidata propõe a realização de consultas populares com o propósito de se esquivar do debate de temas polêmicos, como a descriminalização do aborto e da maconha. Em nenhum momento, porém, a candidata propõe submeter a consulta popular temas de amplo interesse, como  suas proposta de independência legal do Banco Central, e de retração do papel dos bancos públicos.
 
Marina é uma política profissional há décadas e agora se filiou a um partido extremamente pragmático, tanto na sua composição interna, como nas alianças políticas. A sua campanha aglutinou predominantemente quadros políticos e ideólogos do pensamento conservador. A nova política é uma retórica cada dia mais fragilizada pelos compromissos, composição de forças, atitudes e alianças da candidata.

- Aloizio Mercadante, economista formado pela USP, mestre e doutor pela Unicamp, professor licenciado da PUC-SP e Unicamp e Ministro-Chefe da Casa Civil da Presidência da República. Este texto tem como base a entrevista concedida ao jornalista Paulo Moreira Leite para o Brasil 247.
 
25/09/2014
 
https://www.alainet.org/es/node/103667
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