Um tesouro em vasos de argila
16/12/2002
- Opinión
Os jornais, a televisão e a mídia em geral têm veiculado nas últimas semanas repetidas e escandalosas notícias sobre abusos sexuais cometidos por sacerdotes católicos contra crianças e adolescentes do sexo masculino. Com isso, têm conseguido assombrar e escandalizar o grande público, acirrar os ânimos dos inimigos da fé e entristecer sobremaneira o coração dos católicos, que sentem como próprios o pecado e a dor de sua Igreja. O próprio Papa João Paulo II fez sobre estes fatos pronunciamento extremamente corajoso e verdadeiro, transpassado da tristeza de ver seus irmãos sacerdotes violarem de maneira tão escandalosa os compromissos tomados diante de Deus e da comunidade. Juntamente com as notícias dos abusos cometidos por padres, a mídia noticiou o caso de um médico com larga folha corrida de vários ataques pedófilos a menores de idade. Além disso, é freqüente se tomar conhecimento pelos meios de comunicação de abusos sexuais cometidos contra seres humanos pequenos e indefesos, deixando marcas e cicatrizes para o resto da vida, por toda classe de pessoas: pais, professores etc. Por que estas notícias protagonizadas por padres parece que chocam e escandalizam mais? A resposta deve estar no fato daquilo que o padre simboliza e representa na Igreja e na sociedade. Mais: naquilo que a sociedade e a comunidade eclesial como um todo esperam do padre em termos de comportamento e conduta. Um padre é alguém visto como escolhido e ungido especialmente por Deus para uma missão sobrenatural. Como tal, espera-se que tal pessoa, que elege e abraça tal vocação, se conduza de modo digno do chamado que recebeu; que professe uma conduta ética irrepreensível, que dê testemunho de um caráter sem mancha; e que visibilize de maneira singular a figura de Jesus Cristo, que passou pela vida fazendo o bem. É muito difícil que as pessoas se dêem conta de que um padre, apesar da grandeza da missão que carrega, é alguém frágil como qualquer outro. Que tem suas tentações, suas dificuldades afetivas e que pode errar, cair, pecar, sem que por isso a realidade sobrenatural de seu ministério se veja afetada ou diminuída, já que não depende dele e sim de Deus. Os casos de pedofilia relatados pela mídia, no entanto, são particularmente revoltantes. Alguns dos meninos atacados pelos padres pedófilos tiveram suas vidas arruinadas para sempre. Com o psiquismo definitivamente combalido, jamais puderam levantar-se e retomar vidas normais. Alguns caíram em depressão e não poucos chegaram até o suicídio. Tudo isso faz com que a discussão se acenda na opinião pública e esta se revele indignada. A indignação, porém, não se dirige tanto aos que cometeram os abusos sexuais quanto aos que, sabendo dos fatos, não tomaram providências, não afastaram o sacerdote em questão da convivência com jovens que pudessem representar vítimas em potencial. Simplesmente limitaram-se a transferi-lo de paróquia a paróquia cada vez que mais uma denúncia vinha à tona. É compreensível toda esta indignação diante dos horrendos abusos de que são vítimas crianças e adolescentes indefesos. É justificável o escândalo e o horror das famílias atingidas, algumas das quais declaram ter se afastado para sempre da Igreja. É lícito que se cobre da Igreja mais transparência e verdade na administração de tais problemas. Assim estão procedendo os católicos de Boston, exigindo medidas severas contra o bispo que acobertou durante tanto tempo o problema. Assim declarou o cardeal Mahoney, de Los Angeles, ao defender a apuração transparente e séria dos casos e o afastamento dos culpados. O pedófilo é um doente, alguém que não está no uso normal de suas faculdades mentais. Tem direito, do ponto de vista cristão, a toda a misericórdia e caridade que Jesus Cristo ensina no Evangelho que se deve ter com os pecadores; mas sem que isso coloque em risco a vida e o futuro de crianças e adolescentes inocentes. Aquele que acoberta a conduta desviada do pedófilo, que o defende, que o protege e sobretudo que continua a dar-lhe as condições para que pratique seus crimes é mais gravemente responsável diante de Deus, da Igreja e da sociedade. A história da Igreja nos diz que não é apenas hoje que tais coisas acontecem. Não é privilégio da nossa época que sacerdotes e religiosos, e mesmo cristãos em geral, se mostrem indignos da imensa graça da vocação que receberam. Já Paulo de Tarso admoestava sua querida comunidade de Corinto para que tirasse do seu meio o incestuoso que conspurcava a vivência do Evangelho e a pureza de vida que devia ser a deles. São longas as listas nas quais Paulo elenca os "frutos da carne" onde não mede palavras para descrever o que se passava ou podia passar-se nas comunidades cristãs: fornicação, luxúria, depravação etc. E no entanto, é uma frase do mesmo Paulo que parece iluminar de fato o problema que neste momento aflige a Igreja como um todo. Trata-se da comparação que se encontra na Segunda Carta aos Coríntios, cap. 5, v. 7, quando, ao se referir à graça do ministério apostólico, diz: "Mas este tesouro, nós o carregamos em vasos de argila, para que esse poder incomparável seja de Deus e não nosso." A missão do padre é santa e grande, e seu ministério insubstituível dentro da Igreja. No entanto, carregar com dignidade esse tesouro recebido gratuitamente só deve fazer aumentar nele a consciência de que tudo é graça neste pobre vaso de argila, e nesta finitude vulnerável que é a sua e a de todos nós. Manter-se alerta e vigilante para agir de modo digno da vocação a que foi chamado é obrigação sua. Zelar para que tenha as condições objetivas de fazê-lo, não o expondo, nem à comunidade, a situações escandalosas é obrigação de seus superiores. Em situações como esta, impõe-se usar da mais total transparência, sem medo algum da verdade. Esta é a verdadeira caridade, que liberta o agressor no sentido de que faz apelo à sua consciência e preserva a comunidade de escândalos que só podem dividi-la e debilitá-la. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, Teóloga.
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