As fortes heranças do passado

Desmistificando falsos argumentos contra as lutas da esquerda.

04/05/2003
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Ouvi outro dia de um amigo a seguinte frase: "O problema é que a esquerda continua presa a idéias velhas, do século 19. Ela não percebeu que já passamos de 1917. Que o mundo hoje é outro. Que ele mudou". A certeza expressa por tal afirmação me chamou a atenção e passei a refletir sobre o assunto. E cheguei a seguinte conclusão. O problema de estar prisioneira de idéias do século 19 não é exclusividade da esquerda, mas uma condição geral das classes sociais que compõem a sociedade capitalista atual. E não podemos falar das classes sociais sem nos referirmos a sua peça mais importante; o próprio homem. A humanidade. E por que os homens continuam presos á ideais do passado? Porque, como descobriu Marx "os homens fazem a história e não a história que faz os homens. A questão é que homens não fazem a história como desejam, mas sim sob as mais diversas condições. E uma dessas condições é a pressão exercida pelo seu passado, origem cultural, pelos seus ancestrais". Desde que começou a andar sobre a terra o ser humano carrega dentro de si sentimentos dos mais variados. E também desejos. Esse ser humano passa a se organizar em torno de seus sentimentos, desejos e NECESSIDADES. É aqui que nasceu a sociedade, o ser social, a organização produtiva, religiosa, política e militar. Enfim, o Estado. A riqueza é um produto de um tipo de organização social, política e econômica. Para equacionar de maneira eficaz a medida da riqueza, o que era ter mais que os outros, inventamos o dinheiro. Um objeto, por assim dizer, que representa o poder de comprar, de possuir novas mercadorias, terras, casarões, escravos, castelos, feudos, exércitos e mais riqueza. Só que o valor embutido nesse objeto é o valor do trabalho humano, das coisas produzidas pelo esforço e concentração do homem. Sem esse valor o dinheiro não teria valor algum. Com o Estado vieram as leis que regularam quem deveria ser o que no interior da sociedade. Quem deveria trabalhar e quem não precisaria trabalhar. Quem era livre e quem não podia ser. O trabalho escravizado tem um peso muito grande na história do desenvolvimento da humanidade. E é também uma grande mancha que em muitos lugares ainda existe. Como numa sociedade escravocrata a liberdade de uns se sustenta na servidão de outros, o sentimento de ódio nutrido pelo escravo contra a sua condição o fez lutar por sua libertação. Ódio e desejo de liberdade. Sentimentos que caminharam juntos pela história até os dias de hoje. E a luta pela liberdade trouxe com ela o ideal de uma nova sociedade sem a escravização de outros homens. Impérios nasceram, cresceram e foram destruídos por essa razão. A primeira luta travada pelo homem contra um seu semelhante foi a luta pela liberdade. A luta pelo direito de viver livre. Uma luta que ainda perdura em pleno século 21. Ser livre não é só deixar de ser escravo. Ser livre é poder usufruir todas as nossas potencialidades. É expandir todas as capacidades criadoras do ser humano e coloca-las a serviço da humanidade. O desejo de liberdade persiste como uma das nossas fortes heranças do passado. As formas de opressão foram se modificando pelos séculos e com elas também as formas de luta pela liberdade. Pelo fim da opressão. Novamente Marx entra em cena. Ao se deparar com essas condições históricas, Marx observou que todo o progresso ou retrocesso das sociedades era produtos das lutas políticas dos componentes sociais dessas sociedades. As divindades deram lugar às lutas de classes. O escravizado contra o escravagista; o vassalo contra o senhor feudal; o plebeu contra os nobres; os explorados contra os seus exploradores e os excluídos contra os que promovem a sua exclusão. Então a idéia de liberdade e de lutar por ela é tão antiga quanto o próprio homem. A liberdade germinou no interior do vasto território do então Império Romano. E os povos submetidos à ocupação romana se sublevaram. Após séculos de lutas sangrentas lançaram as suas flechas e suas espadas contra os muros de Roma. Era o fim do Império. Ingleses expulsos de seu país pela Cora, são levados pelo desejo de liberdade às terras distantes da América. Constroem cidades, portos, aram as terras, criam gado e reorganizam suas vidas. Fundam as 13 Colônias da América. Em 1776, movidos pelo mesmo desejo de liberdade, agora não contra a escravidão, mas contra a opressão de um rei que não mais consideravam como seu, declaram a sua independência política. Nasciam os Estados Unidos da América do Norte e com ele o mito da "terra da liberdade". Da Revolução Francesa à Revolução Russa. Da Revolução Chinesa às guerras de libertação nacional que infestaram o final da década de 50 e a metade da década de 70 do século 20, a luta pela liberdade esteve presente em todas. Nunca deixou a noiva esperando no altar. Mas a liberdade não é vista de forma igual por todos os homens. A liberdade para a burguesia era a de poder explorar o trabalho de outro homem, do proletário. O desejo de acumular riqueza (lembram) fez com que o Estado (órgão regulador da sociedade) transformasse em leis os interesses burgueses. Assim a Revolução Industrial ganhou um grande impulso para a sua realização, fortalecimento e expansão. O capitalismo se espalhou com o progresso pelos cantos do mundo. E a concepção de liberdade da burguesia também. A ideologia liberal é o resultado de uma concepção de liberdade. A liberdade de acumular riqueza requer a não liberdade dos produtores dessa riqueza. Eles têm que estar desorganizados, atomizados, sobrevivendo nas piores condições de vida e na ignorância para se disporem ao trabalho diário, penoso e por um salário que lhes garanta um pouco de pão, batatas, peixe e um lugar para dormir. O trabalho assalariado é fruto da ideologia liberal e mantido pelo Estado liberal. A democracia liberal é um conjunto de normas jurídicas que fazem das desigualdades social e econômica, não os resultados da exploração de uma classe sobre uma outra, mas uma divisão natural da sociedade. Nas constituições liberais os direitos são iguais, as liberdades também e só. As condições não. Elas ficam a cargo de um ente todo poderoso chamado de "A Mão Invisível". O regulador da economia de mercado e das relações entre as classes sociais no interior da sociedade capitalista liberal. É nesse conjunto de acontecimentos e de descobertas tecnologias que vai se moldando a esquerda. Primeiros os iluministas, os socialistas utópicos, republicanos, depois os anarquistas e a seguir o movimento comunista intencional de Marx a segunda guerra mundial. As idéias permaneceram vivas. As areias do tempo não foram suficientes para sepulta-las. Enquanto existirem as condições materiais, sociais, econômicas e políticas que mantenham o homem sem a sua liberdade. Sem o direito a sua própria vida. Existirão também os sentimentos e os desejos que o impelirão à luta pela sua libertação. Não existem idéias estáticas na esquerda. O que existe é uma metodologia que a esquerda se utiliza para entender a história, o processo histórico que é dinâmico. O comunismo, defendido pelos bolcheviques e seus correligionários em várias partes do mundo, não conseguiu ultrapassar seus esperançosos e sofridos 75 anos de existência. Mas o modelo capitalista atual (o liberalismo tem mais de 200 anos) também não conseguiu acabar "A esquerda continua presa a velhas idéias". É o poder das palavras. Ao fazer esta afirmação o meu amigo jogou a idéia de liberdade na lata do lixo da história da humanidade. Porque é o ideal de liberdade que continua movendo a esquerda. A libertação da humanidade de todas as formas de opressão é uma de suas metas. "Ela não percebeu que já passamos de 1917". A esquerda percebeu sim. Percebeu porque a URSS, obra edificada por uma parte dela a partir de 1917 foi engolida pela falta de liberdade e das condições objetivas para a sua existência. "O mundo de hoje é outro. Que ele mudou". Realmente o mundo de hoje é outro. Ele mudou. Mas mudou só para alguns. Para outros, ele continua igual desde os primórdios dos tempos. A fome, a miséria, a exploração, a exclusão social, econômica e política ainda continuam. Ainda hoje existem escravos, pessoas mantidas na ignorância longe da liberdade. Longe do seu direito à própria vida. A esquerda pode estar presa a várias outras "coisas", mas jamais estará presa a idéia * Rui Amaro Gil Marques
Núcleo de Estudos Brasileiros – NEB - Natal, RN.
https://www.alainet.org/es/node/107465
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