Reforma agrária, a mais antiga dívida social
01/07/2003
- Opinión
A experiência mostra que não adianta retirar um tema do cenário
político quando o mesmo reflete anseios profundos da sociedade. É o
que estamos verificando com a questão da reforma agrária. Muitos e
muito poderosos são os interesses que querem ver este assunto banido
da mídia e da política. Mas ele retorna a cada vez com a força de água
represada, ocupando amplos espaços nos noticiários nacionais e
internacionais.
O dilema, aliás, não é novo. Na história do Brasil, passada e
recente, sempre que se mexe na propriedade fundiária, os ânimos se
alteram. Os conflitos têm sido recorrentes e contam-se às centenas o
número de mortos, a começar pelas populações indígenas. Mortos que,
infelizmente, permanecem como cadáveres insepultos, dada a impunidade
de que se revestem os crimes ligados à luta pela terra.
O fato é que, no dizer dos estudiosos clássicos do Brasil, Caio
Prado Júnior entre outros, a questão fundiária faz parte do tripé que
sustenta a economia desde seus primórdios: latifúndio, monocultura de
exportação e trabalho escravo. Hoje as três bases do tripé podem ser
consideradas não apenas fundamentos, mas símbolos ou metáforas de uma
política econômica historicamente viciada. Não seria de todo estranho,
por exemplo, falar do latifúndio da comunicação ou da água, da
agroindústria voltada para o mercado externo e da precariedade
crescente das relações de trabalho como equivalentes que assinalam a
continuidade do referido tripé.
Assiste-se nestes dias a um recrudescimento da pressão sobre a
concentração fundiária. A bandeira da reforma agrária ergue-se com
ímpeto redobrado. Não estamos falando somente do Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), mas da organização do conjunto
dos movimentos sociais no campo. Guiando-nos pela análise de
conjuntura apresentada na última reunião do Conselho Permanente da
CNBB (embora não seja um documento oficial da entidade), vale a pena
fazer uma retrospectiva dos últimos acontecimentos.
"Primeiro foi o Grito da Terra, em maio, quando a Contag
mobilizou na Esplanada dos Ministérios milhares de trabalhadores
rurais. Naquela ocasião o governo prometeu destinar recursos
consideráveis para o financiamento da agricultura familiar. De fato,
acaba de ser divulgado o 'Plano de safra 2003-4', com aumento de 25%
sobre o que foi destinado ao PRONAF no ano passado (mas para o qual só
foi efetivamente gasta a metade)".
"Depois foi o ato de lançamento da Carta da Terra, ocorrido no
Senado Federal, no dia 11 de junho. Elaborada por 43 organizações que
compõem o Fórum Nacional pela Reforma Agrária e Justiça no Campo, o
texto da carta, em defesa da reforma agrária e da agricultura
familiar, representa um marco histórico em termos de convergência dos
movimentos sociais e entidades que atuam no campo. Entre os pontos
convergentes destacam-se a desapropriação dos latifúndios e o limite
de tamanho das propriedades rurais; o respeito aos direitos humanos do
campo, o combate à violência e à impunidade; a demarcação da terras
indígenas e de remanescentes de quilombos; o estímulo da agricultura
familiar; a proibição da produção, uso e comercialização de sementes
transgênicas; o fomento de técnicas agrícolas não agressivas ao meio
ambiente e à preservação e democratização do acesso à água; a
elaboração de políticas para cada região, em especial para a
convivência com o semi-árido brasileiro".
"O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) não ficou atrás:
no período de 9 a 13 de junho realizou um Encontro Nacional com a
presença de aproximadamente 1000 delegados de 22 estados. O objetivo
era 'reforçar a organização de base e a articulação em nível nacional
e internacional, como também discutir política para a implantação de
um novo modelo energético'".
A 27ª Assembléia do Conselho Indigenista Missionário - CIMI
Regional Sul - realizada em Registro/SP, de 9 a 12 de junho, alerta
para o fato de que "vivemos um momento extremamente delicado e de
fortes angústias frente à conjuntura nacional e, particularmente,
frente à política indigenista do Governo Luiz Inácio Lula da Silva".
Após analisar o contexto atual, pede a 'imediata homologação da TI
Raposa Serra do Sol, em Roraima', bem como a 'definição e execução de
uma política indigenista com forte respaldo presidencial, com recursos
suficientes e com a clara finalidade de defender todos os povos e
territórios indígenas do Brasil'".
A essa agenda de lutas, somam-se as recentes mobilizações do MST
(ou de grupos que assim se denominam), incluindo uma audiência com o
presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no dia 2 de julho. Os
fazendeiros, por sua vez, ameaçam criar e/ou fortalecer milícias
próprias, estando em evidência o caso de São Gabriel/RS, onde, de lado
a lado, o confronto parece inevitável.
"A verdade é que, de uma forma ou de outra, o tema da reforma
agrária se impõe no cenário nacional. Aí reside a verdadeira reforma
estrutural na sociedade brasileira", conclui a análise citada. Por
quê? Porque ela representa, no fundo, a dívida mais antiga de um
Brasil de "tanta terra sem gente e de tanta gente sem terra", como
lembra a canção popular.
Brasília/DF, 2 de julho de 2003
SETOR PASTORAL SOCIAL. Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
https://www.alainet.org/es/node/107851
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