Encanto e cautela com o PT
01/09/2003
- Opinión
A grande vitória de Luiz Inácio Lula da Silva e do PT nas eleições
presidenciais de 2002, bem como o expressivo aumento de sua
representação no Executivo e no Legislativo em quase todos os
estados da União parecem indicar que o Brasil e o povo brasileiro
acharam afinal o partido de esquerda que os possa representar para
si e para o mundo. Na história Republicana outros partidos almejaram
e lutaram com igual destemor e até maior sacrifício para alcançar o
que o PT vem de obter em apenas 22 anos de exercício político.
Tempos diferentes, não se duvida, mas tal não é feito inglório, ao
contrário, merece o louvor de todos os partidos de esquerda da
atualidade, especialmente daqueles que não se coligaram com o PT no
primeiro turno, defendendo projetos próprios. O PPS, cujo projeto
foi esboçado e apresentado pela candidatura Ciro Gomes, alcançou em
certo momento da campanha (30/07 a 20/09) até 30% de intenções de
votos, i.e., da empatia imaginária do povo brasileiro, quando Lula
estava com 34%. A candidatura Ciro Gomes, entretanto, desmoronou
para 12%, enquanto Lula subia até alcançar 46,4% dos votos válidos
depositados em 6 de outubro, para, ao final, chegar à marca recorde
de 52.793.261 votos, ou 61,3% dos votos válidos, no segundo turno.
Ao que indicaram as pesquisas, grande parte dos votos intencionados,
mas perdidos, de Ciro Gomes, ainda no primeiro turno, migraram para
o PT, e igualmente no segundo turno. Por sua vez, a candidatura
Garotinho, abrigada no vetusto PSB, também acenou ao povo brasileiro
um laivo de opção de esquerda, embora fortemente temperada com um
linguajar salvacionista e um estrepitoso comportamento para-
religioso, à moda americana de evangelização. Seus votos se
dividiram entre Lula e Serra no segundo turno.
De modo que, no cômputo geral e à primeira vista de uma análise
política exclusivamente funcionalista e quantitativa, em cima do
eixo de representação partidária, o Brasil teria chegado, após oito
anos de governo neoliberal, ao seu máximo de esquerdismo: no total,
cerca de 75% de votos foram dados a representantes nacionais ditos
de esquerda no primeiro turno. No segundo, polarizado entre Lula e o
candidato da situação, José Serra, essa porcentagem caiu bastante
(61,3%), indicando, ou o reconhecimento de que o candidato Serra não
era necessariamente de direita, ou a opção Lula não preenchia a
visão de muitos eleitores dos demais candidatos.
Por tudo isso, poder-se-ia perguntar: o Brasil ficou, para o gáudio
e felicidade geral dos sonhos nossos utopistas, rouge? Pergunta que
deixamos no retórico e resposta que se queda vazia. Seria demasiado
pretender discorrer sobre a visão e a atitude política do povo
brasileiro e as suas circunstâncias atuais em tão pouco espaço de
tempo, e sobre números de votos. Importa aqui a preocupação de
analisar o vencedor, o PT, sua formação e sua essencialidade para
que possamos reconhecer seu papel na história brasileira recente e
para podermos nos situar perante o governo Lula, que se inicia em
2003. O fato de uma outra proposta, a do PPS, ter tocado no
imaginário político-cultural de quase um terço da população
brasileira nos leva a crer que o povo brasileiro reserva uma cautela
ao PT, apesar de o ter consagrado nas urnas. Tal cautela tem sua
razão de ser, e este é o sentido das considerações que se seguem.
Nossa análise político-cultural é fruto de muitos anos de reflexão
sobre o formato de ser do PT, sua origem nos estertores da ditadura
militar, sua reificação da organização sindicalista, sobretudo de
classe média, como meio de veicular sua mensagem e suas atitudes
políticas, sua mistificação a-histórica do povo brasileiro, e sua
pretensão de ser o legítimo representante do sentimento de
brasilidade.
I
Há mais de 20 anos o povo brasileiro tem ouvido os discursos e
experimentado as práticas políticas do Partido dos Trabalhadores.
Auto-intitulando-se o representante de todos que trabalham, por
suposto em oposição aos que vivem do capital, o PT ganhou uma aura
de legitimidade popular como poucos partidos ou movimentos sociais
jamais conseguiram no Brasil. A glorificação em vida de um ex-
operário, homem do povo sofrido, migrante nordestino a São Paulo,
impoluto e ilibado, só fez consolidar esse carisma. Para este
partido, depois de quatro eleições presidenciais, chegou a hora de
provar o gosto do pudim. Muita gente vai se aproximar e querer estar
junto. Entretanto, um momento de reflexão e cautela não faz mal.
Sejamos diretos: há inúmeros motivos políticos, culturais e
filosóficos para não se confiar que o PT é o partido que melhor pode
representar os anseios do Brasil e as necessidades de ascensão do
povo brasileiro. Em cada estado brasileiro onde esse partido tem
visibilidade e posicionamentos políticos definidos, e até naqueles
onde ele nunca chegou a se erguer com viabilidade político-
eleitoral, despontam marcas de negatividade no seu comportamento
político. O PT tem demonstrado ser autocentrado, totalizante,
manipulador de eventos políticos, crítico de oportunidade, infirme
para com parceiros, internamente divisionista e ilusionista para com
os anseios populares. Sua visão político-cultural do Brasil tem como
fulcro o ideal pequeno-burguês da classe média urbana, nas suas
modalidades sindicalista, radical, moralista e narcísica.
Simbolicamente, basta observar as letras de suas canções e vinhetas
eleitorais (exemplos, "sem medo de ser feliz" e "é só você querer")
para que isto se evidencie. Politicamente, basta um único exemplo da
atuação negativa do PT, no caso em relação ao programa educacional
do Rio de Janeiro nos dois governos Brizola (1983-87; e 1991-94)
para esclarecer o sentido desse comportamento. Em muitos outros
estados exemplos semelhantes podem ser lembrados.
Em 1982 a eleição de Leonel Brizola reavivou a possibilidade de
retomada do movimento nacionalista-trabalhista - nem comunista, nem
liberal -, que vinha sendo construído desde a década de 1920, com o
Movimento Modernista, com a Revolução de 1930 e durante toda a
década de 1950 até o golpe de 31 de março de 1964. O Brasil crescia
economicamente, desafiava sua estrutura classista e racista com
atividades sociais e culturais e parecia estar consolidando um
caminho de formulação cultural autônoma. O golpe de 1964 e o supra-
golpe do AI-5, de dezembro de 1968, obstruíram esse caminho e
abriram uma dupla vereda de ilusão econômica e desencantamento
cultural. Aumentando o fosso entre povo e classe média, alienou
ainda mais esta última, que só foi se dar conta do embuste quando
começou a sentir sua renda caindo, a partir de 1978. Pois então, em
1982, com as eleições diretas para governador um caminho novo se
abria, não se sabia ainda para onde, sob que condutor ou que
condições, mas trazia esperanças. Darcy Ribeiro, intelectual e homem
público com raízes na cultura brasileira, na antiga militância
comunista e então no trabalhismo, chamou esse movimento de
"socialismo moreno".
Entre os principais projetos do governo Brizola estava a criação de
um novo modelo educacional para o ensino fundamental. Idealizado por
Darcy Ribeiro, o sistema cognominado CIEP pretendia realizar os
propósitos de uma linha histórica de educadores brasileiros que
começara com o Movimento dos Pioneiros de 1929, passando pela Escola
Modelo de Anísio Teixeira e pelo experimento de Ensino Médio criado
nos primeiros anos da Universidade de Brasília. Adicionava-se a isso
uma metodologia de ensino que partia do respeito às culturas locais
do alunado, por inspiração do Método Paulo Freire e de idéias
construtivistas, incluía um espaço físico amplo para a prática de
esportes, a permanência dos alunos durante oito horas na escola, a
alimentação integral, o cuidado médico e odontológico, e ainda a
presença de tutores para jovens carentes cujas famílias não os
podiam sustentar, especialmente aqueles que estavam vivendo nas
ruas. Os prédios, desenhados por Oscar Niemeyer, eram de concreto
armado, construído em larga escala em fábricas, fáceis de montar em
qualquer lugar, portanto, resultando em custos relativamente baixos.
Darcy conclamou partidos políticos e a sociedade civil para apoiar
esse projeto, que podia abrir caminho para um modelo mais generoso
de educação para o povo trabalhador excluído, diminuindo com isso o
fosso entre este e a classe média, já àquela altura totalmente
entregue à escola particular. Darcy convocou o professorado superior
e de ensino fundamental para ajudar a conceber melhor o projeto e a
realizá-lo na prática.
Como respondeu o PT a esse projeto? Apesar do apoio dado em diversas
ocasiões por Paulo Freire, que então vivia em São Paulo já
incorporado às hostes intelectuais do PT, este partido montou uma
avassaladora campanha de críticas sobre todos os aspectos do
projeto, arregimentou o sindicato de professores para boicotar,
chantagear e obstaculizar a sua implementação, jogou pesado para
cooptar o professorado ainda jovem para uma retórica e um
comportamento de feroz resistência, enfim, fez eco multiplicado das
críticas que a imprensa conservadora vinha veiculando por interesses
políticos. Nessa ocasião é que Darcy Ribeiro cunhou a frase "o PT é
a esquerda que a direita gosta". Pois bem, o projeto dos CIEPs
fracassou e com isso o PT teve uma vitória inegável do ponto de
vista político, pois desnorteou do eleitorado fluminense a visão
generosa e revolucionária desse projeto. Em conseqüência, os
seguintes governos deixaram de manter e dar continuidade a esse
projeto de escola integral, e o resultado é que empacou a entrada de
milhares de jovens de famílias pobres no circuito de conhecimento
necessário à obtenção de trabalho dignificante. A educação que
existia, que servia, como ainda serve, para manter o status quo
desigualitário, continua a impedir a elevação do nível educacional.
Assim, ao cabo de 20 anos de balanço, o baixo nível educacional, a
desmotivação do professorado, a alienação dos pais e o baixo
rendimento dos alunos no Rio de Janeiro alimentam a exclusão social
dos jovens da classe trabalhadora, insuflam a existência de
alternativas marginalizantes, retrai, como já disse Dante Aleghieri,
"qualquer esperança" de mudança a curto e médio prazos. Resta agora
nos apegarmos ao mote dos últimos dias da campanha eleitoral do PT,
segundo o qual a esperança vence o medo, e torcermos para que as
críticas então feitas possam agora ser norteadas para uma atitude de
inovação e de realização na área educacional que recupere a
esperança criada por Darcy Ribeiro em 1983.
Creio que esse exemplo é bastante cruel, mas certamente se equivale
a tantos mais em outros estados onde o PT tem mostrado sua garra
para impedir cada e toda mudança real que não venha de sua
incipiente e limitada criatividade político-cultural. Ultimamente o
filósofo Denis Rosenfield tem com muita coragem desmascarado a
administração petista no Rio Grande do Sul, demonstrando seu caráter
autocentrado, exclusivista e ilusionista. O propalado "orçamento
participativo", estabelecido na prefeitura de Porto Alegre, tem
demonstrado ser nada mais do que um aliciador de jovens para se
transformarem em quadros petistas nos bairros periféricos, sem
nenhuma melhora sensível nas condições de vida das populações que lá
vivem. Por sua vez, a interferência partidária em instituições como
a Polícia Militar demonstram o caráter totalitário do PT naquela
administração. A pergunta é: Por que o PT fez o que fez no Rio de
Janeiro, e por que continua a fazer toda vez que algum partido
congênere, de esquerda, sem falar nos partidos de centro e de
direita, cria alguma coisa fora dos padrões a que se restringe sua
concepção do mundo e sua capacidade de trabalho político? A resposta
não é curta, nem circunstancial. A razão desse comportamento é
estrutural, está no ADN do PT e deve ser buscada na própria
configuração de seu surgimento.
II
O surgimento do PT está contado em seus manuais de propaganda e nos
livros analíticos escritos quase sempre por simpatizantes, dos mais
científicos aos mais ideológicos. O PT teria nascido do movimento
operário do ABC paulista nos estertores do regime militar, quando o
crescimento econômico que suportara durante uma década o sistema
político, o operariado das grandes indústrias e a satisfação da
classe média, apresentava de súbito sinais de rápida e incontida
desaceleração. Nesse momento os sindicatos de operários e da classe
média, cujas direções até então estavam aquietadas, começaram a
vociferar seu descontentamento de classe, o qual foi logo amoldado
em discurso político contra o regime militar. Surgia de súbito um
líder jovem, com pouco mais de 30 anos, cuja voz e cujo porte se
elevavam à estatura de líder carismático. Em torno dele se agregaram
os sindicatos da grande indústria automobilista, das estatais e de
funcionários públicos, a Igreja Católica, suas pastorais e suas
comunidades de base, o jovem segmento da classe média frustrada nos
últimos anos pelas perdas salariais, em busca de recomposição
social, enfim, muitos potenciais políticos que advinham de atuações
políticas desenganosas, seja como participantes de guerrilhas, seja
como membros desgarrados dos partidos de esquerda que haviam sido
banidos pela ditadura militar. Um ou outro membro da elite econômica
ou da tradição política também se incorporou, ainda timidamente.
Para esta composição inicial, bastante díspar em suas posições de
classe e visões de mundo, os ideólogos do PT procuraram estabelecer
as bases filosóficas e políticas que amalgamassem uma identidade
comum. Os principais formuladores dessa concepção foram dois
professores da Universidade de São Paulo: Francisco Weffort e
Marilena Chauí. Eis como esses dois intelectuais justificaram o PT.
Weffort é cientista político, aluno de Florestan Fernandes e
Fernando Henrique Cardoso. Entrou na discussão política ainda
durante o período que ele e outros daquela academia convencionaram
chamar de "populista", escrevendo um artigo em que considera
populismo toda atuação político-partidária e de Estado que se
apresenta como sendo em prol do povo, como tendo uma identidade
popular, quando, na verdade, seria um movimento da elite e para a
elite. O mecanismo dessa atuação procederia através da aparente
concessão de alguns benefícios e garantias políticos, econômicos e
sociais, os quais, por suas naturezas limitadas, não afetariam
substancialmente a equação social existente. Para que os
trabalhadores se sentissem partícipes, o mecanismo envolveria a
cooptação, ao custo de favores pessoais ou de grupo, de líderes
trabalhadores que para tanto teriam que trair os interesses maiores
de sua classe. O populismo seria, portanto, nada mais que uma
enganação da elite - rural ou burguesa - sobre o trabalhador, ainda
não consciente de seu potencial revolucionário, e do povo, ainda
insciente sobre as causas sociais de suas condições de vida. Para
Weffort e seus epígonos, tudo que acontecera no Brasil desde a
Revolução de 1930 não passara de populismo, de Getúlio Vargas a
Ademar de Barros, a Jânio Quadros e João Goulart, e, por que não,
também o período de Juscelino Kubitschek. No limite também Plínio
Salgado teria apelos populistas. Apressado em não perder a ocasião,
um outro professor da USP, Otávio Ianni, publicou nos primeiros anos
da ditadura um livro que teve grande repercussão pelos anos
seguintes, com o título "O Colapso do Populismo", que consolida as
teses de Weffort e iria dar sentido político à atuação política
posterior das esquerdas pós-ditadura. O governo Goulart teria sido o
ápice e ao mesmo tempo o fim de um período e de um modo de fazer
política que havia se destruído por suas próprias fraquezas e
contradições. Nem era preciso falar em militares cooptados pela
guerra fria, empresários avessos a dar concessões salariais e
participação nos lucros, elite política e social com receio de
perder poder, o imperialismo americano financiando o golpe com medo
de possíveis desdobramentos da revolução cubana no maior país da
América Latina. O que ficou marcado na sociologia uspiana desde
então é que o populismo passou a ser encarado como um anátema
político, um câncer que fora extirpado e que não podia voltar. Nos
primeiros anos da década de 1980, Weffort ficou encarregado de
demonstrar em todas as ocasiões possíveis, analíticas ou
ideológicas, acadêmicas ou jornalísticas, que o PT nascera contra o
populismo, sobretudo porque nascera do primeiro movimento autóctone
do trabalhador brasileiro. Em certo momento Weffort chegou a dizer
que a única coisa positiva que havia acontecido desde a Abolição da
Escravidão era o PT. Tudo mais teria sido enganação da elite, à
revelia do povo, e para mantê-lo sempre sob rédeas curtas. Perante
essa retórica, que se tornou senso comum nos meios universitários e
em seguida no professorado escolar, muitos se surpreenderam quando,
na primeira oportunidade, a eleição de seu professor Fernando
Henrique Cardoso, Weffort, que estivera no âmago do PT, como membro
de sua Executiva e seu principal ideólogo político, se bandeou para
o barco do PSDB tornando-se ministro da cultura. Mais adiante
entenderemos por que a surpresa é ingênua.
Marilena Chauí é filósofa da USP, tendo incorporado em seu modo de
pensar a visão socialista-estruturalista francesa, especialmente do
cientista político Claude Lefort. Em fins da década de 1970 ela
escrevia intensamente contra a idéia de "competência", alegando que
tal conceito não passava de uma arma ideológica da elite burguesa,
pois servia unicamente para encobrir um discurso de poder, de classe
superior. Augurava, quem sabe, como poeta-filósofa, o surgimento de
quem, por essa análise, devia por princípio negativo ser considerado
competente. Escreveu também criticamente sobre o uso ideológico de
conceitos de cultura popular e cultura erudita, sem esclarecer sobre
suas incompatibilidades ou não. Em 1985, Chauí foi secretária de
cultura da prefeitura petista de Luíza Erundina, onde se esmerou
para criar uma cultura de leitura nos bairros e defender minorias.
Em novembro de 1989, no segundo turno da eleição presidencial, ela
iria defender por que o PT seria o verdadeiro e talvez o único
partido de esquerda, do povo e para o povo, a existir no Brasil. Sua
definição do PT seria elaborada por uma lógica de exclusão daquilo
que ele não era. O PT teria surgido em contraponto a outros
movimentos político-culturais que deram origem a partidos de
esquerda tradicionais. Os principais contrapontos ao PT seriam:
a. O velho PCB, na medida em que o PT recusa o
leninismo, isto é, a concepção e a prática do centralismo
democrático por ela ser autoritária, exclusivista de iluminados,
refutadora da participação dos militantes, que seriam passivos.
Ademais, o PCB estivera desde sempre dependente de influências
externas, que tendiam a obnubilar a visão crítica e analítica dos
seus quadros intelectuais. Por esses motivos é que o PCB teria se
envolvido numa aventura em 1935 e tinha ao longo dos anos dado
motivos para ser proscrito por tantos anos. Por conseguinte, ficava
revelado que toda a prática política do velho Partidão teria
resultado num atraso à autoconsciência do povo trabalhador
brasileiro.
b. O PTB, isto é, o partido trabalhista supostamente
criado à imagem e semelhança do populismo getulista, com viés para-
fascista, e que se prolongara na década de 1950 até o golpe de 1964.
Para o PT, segundo Chauí, o trabalhismo não passaria de um movimento
da elite política para preservar o capitalismo e rechaçar as
possibilidades revolucionárias do movimento operário que havia
surgido em São Paulo desde o início do século XX, que teria estado
em ascensão e que fora reprimido e suprimido de suas potencialidades
por concessões forçadas de interesses não totalmente legítimos, como
as medidas da CLT, a unicidade sindical e o papel interventor do
Ministério do Trabalho. O PTB tinha sido, sobretudo, um partido de
elite em pele de cordeiro para iludir os trabalhadores de que eles
estavam com o poder e tinha participação no seu destino econômico e
social.
c. A guerrilha, isto é, os movimentos de grupos armados
oriundos da perda de hegemonia dos partidos comunistas, que haviam
se insurgido voluntariosamente contra a ditadura militar, por fruto
de decisões equivocadas e por isso mesmo sem ter o respaldo nem de
trabalhadores organizados, nem da classe média insatisfeita (que
então estivera mais ou menos satisfeita), nem do povo em geral.
As três palavras chaves em itálico, autoritarismo, ilusionismo e
voluntarismo resumem o sentido máximo da crítica de Chauí a esses
partidos e movimentos de esquerda que antecederam o PT, e que lhe
poderiam fazer algum tipo de desafio intelectual. Urgia abrir-lhes
suas feridas e seus pontos fracos para que fossem rechaçados e em
conseqüência para se pudesse traçar o caminho para a caracterização
novidadeira do PT. Que seria contra tudo isso. Portanto, o PT era e
haveria de ser democrático e participante em suas decisões,
científico, isto é, não ideológico em sua concepção filosófica, e
organizado como estrutura com estratégia de curto e longo prazos. O
PT seria a culminância de toda a trajetória do povo trabalhador,
especialmente desde os românticos imigrantes anarquistas, trajetória
que passara por meios e modos que precisavam ser expurgados porque
estavam a conspurcar a pureza do novo.
A partir dessas concepções, todas nascidas do movimento político-
cultural da USP, que repulsava os movimentos anteriores, é que o PT
se fez discurso ideológico e prática política pelo Brasil afora.
Atraiu o operariado sindicalizado da grande indústria consolidado
pelo desenvolvimento econômico dos anos de chumbo da ditadura
militar, cujas lideranças anteriores haviam sido destroçadas; atraiu
uma juventude de classe média que estivera alienada e sem
participação e que vinha perdendo garantias e privilégios de classe;
atraiu conceituados segmentos da Igreja Católica e o sentimento
cristão de ação política em função da sua anterior negação aos
partidos de esquerda, mas que durante a ditadura estivera do lado
dos mais oprimidos e reprimidos; por fim, atraiu políticos jovens
advindos de experiências frustradas e de desencantamento com os
movimentos políticos acima vistos, especialmente da guerrilha. Estes
últimos foram, sem dúvida, os grandes organizadores do PT, compondo
atualmente parte de seus quadros superiores, embora alguns tenham
abnegado de suas visões mais radicais. Por outro lado, os estertores
finais da União Soviética já se faziam sentir nos países
periféricos, tal como a Polônia que, naquela conjuntura tinha um
papa, um líder operário de grande carisma e uma organização pré-
partidária, a Solidariedade. A imensa propaganda positiva que Lech
Walesa recebeu na Europa e daí para o Brasil foi integrada em
paralelo com o surgimento do PT e com a figura de Lula. Ambos
surgiam como grandes novidades, puras em sentimento e em ação, e
estariam batalhando contra regimes totalitários, autoritários,
enfim, contra o passado que precisava ser enterrado e superado.
No campo intelectual, a ideologia petista - emoldurada por
catedráticos da USP, que, aliás, por força do desmoronamento da
Universidade do Brasil e do ISEB (Instituto Superior de Estudos
Brasileiros), que até o golpe ainda constituíam baluartes do
pensamento de esquerda no Brasil, se tornara hegemônica no
pensamento social da época - se impôs nas universidades, sobretudo
pelo uso desenfreado que fazia do conceito de autoritarismo, com o
qual mesclava todos os movimentos políticos e culturais (exemplo, o
Conselho Popular de Cultura) prévios ao surgimento do PT.
Aqui, portanto, cabe uma palavra a mais sobre autoritarismo para que
fique bastante clara a importância do uso desse conceito na formação
e propagação do PT pelo Brasil.
III
O conceito de autoritarismo foi introduzido no cenário brasileiro a
partir de um artigo publicado no fim da década de 1960 pelo
cientista político espanhol radicado nos Estados Unidos, Juan Linz.
Usando de argumentos retirados da sociologia weberiana, Linz
propunha que o que se passara na Espanha franquista, em Portugal
salazarista, bem como aquilo que estava se passando no Brasil
dominado pelos militares era fruto de uma atitude política própria
de uma fase do capitalismo ainda dominado pelo patrimonialismo. O
autoritarismo seria o exercício do poder obtido por razões de
direito que antecediam um verdadeiro pacto político-social. Assim,
independente de estar vivendo num regime ditatorial, o Brasil de
1968 era antes de tudo um Estado autoritário por força do exercício
do poder sem participação do povo. Para os propugnadores da
aplicação do conceito de autoritarismo, o Brasil tinha sido
autoritário desde sempre, fosse no Império, na República Velha, no
Estado Novo e mesmo nos tempos do populismo. Desse modo, numa
cartada só esse conceito reuniu tudo que havia acontecido na
história política e social brasileira reduzindo-a a um denominador
comum.
Por sua vez, o autoritarismo político estava arraigado num modo de
ser social, numa psicologia e numa cultura. Por todos os seus poros,
o Brasil seria autoritário: na relação entre burguês e operário,
rico e pobre, brancos e pretos, professor e aluno, enfim, homem e
mulher, e por que não, amado e amada. Todos deviam se cuidar para
não serem autoritários, um germe epidêmico que precisava ser
extinto. Quanto mais tradicional na cultura brasileira, quanto menos
consciente do processo de mudanças multifacetadas pelas quais o país
passava, quanto menos enfronhado no novo discurso antiautoritário
que surgia com força nesses tempos, especialmente trazido por uma
filosofia francesa pessimista, cuja porta-voz principal era Michel
Foucault, mais autoritário a pessoa seria.
Mas quais seriam os critérios que poderiam definir o ser autoritário
e a atitude não autoritária? Quem estaria apto para aplicar esse
critério?
Nos estertores da ditadura militar, como se não quisesse cutucar a
onça de vara curta chamando-a por seu nome verdadeiro, os
intelectuais e os políticos com ares de democratas ou de
revolucionários passaram a chamá-la de autoritária. Ulysses
Guimarães, Franco Montoro, o iniciante Fernando Henrique Cardoso, os
cientistas políticos do IUPERJ e da USP, seguidos por seus epígonos,
enfim, os intelectuais que estavam fazendo o PT. Em seguida o
conceito de autoritário foi estendido para o passado mais recente.
Sofreram essa pecha sem piedade o cambaleante Partido Comunista, sem
quadros e sem discurso para se reestruturar no movimento operário ou
na jovem intelectualidade; o trabalhismo criador de líderes pelegos,
o insensato populismo piromaníaco. Para usar uma surrada imagem
política, jogaram lama em cima de todos aqueles que estavam voltando
do exílio achando que podiam retomar a história do ponto em que a
haviam deixado. Darcy Ribeiro exemplificou essa atitude negativa ao
dizer que os militares o haviam anistiado, mas não seus colegas da
academia!
O uso do termo autoritarismo se prolongou por uns bons vinte anos.
Ainda hoje se ouve ecos acusatórios, já menos intensos e dirigidos
com menos nitidez. O estrago já estava feito. O autoritarismo foi
usado para esvaziar o potencial de retomada da história brasileira
por aqueles cujas carreiras e pensamentos foram interrompidas pela
ditadura. Beneficiaram-se propositalmente aqueles que, de algum
modo, haviam preenchido o vazio deixado pelos exilados nas
universidades, nas instituições de produção de saber ou de
propaganda ideológica, nos partidos políticos. Os beneficiários
souberam espalhar nesses meios que os retornados eram de uma outra
era, que estavam defasados intelectual e politicamente, que não
poderiam voltar a ser o que eram antes porque seria uma volta ao
passado autoritário.
Quem soube se aproveitar melhor dessa conjuntura? O PT e o grupo do
PMDB, especialmente centrado em São Paulo, que mais tarde iria
formar o PSDB. Eis porque o PT está bastante vinculado tanto à
ideologia que emana de São Paulo quanto ao seu fraterno oposto, o
PSDB.
IV
Algumas palavras da relação entre PT e PSDB cabem aqui. Foi
mencionado de passagem que a USP tornou-se hegemônica desde a década
de 1970 sobre o pensamento sobre a sociedade brasileira. Apesar de
não ter apoiado o golpe, a USP não sofreu tanto quanto a
Universidade do Brasil e o ISEB, que até então faziam pesquisas e
produziam conhecimento paralelo ao da universidade paulista. As
mencionadas instituições fluminenses foram arrasadas, suas
principais lideranças exiladas. O ISEB se acabou de vez, tendo
recebido sua pá de cal pela feroz crítica que lhe foi feito por um
dos jovens próceres da USP, que o cognominou de "fábrica de
ideologia". Desse modo, a ciência estava preservada no pensamento
uspiano, os demais sendo produtores tão somente de má ciência, de
ideologia. Em nenhum momento desde sempre algum intelectual da USP
fez uma análise crítica do surgimento ideológico desta instituição,
e do seu papel político em elevar o pensamento burguês paulista à
condição de superior aos demais pensamentos. Uma análise sobre o
papel dos intelectuais franceses criando uma sociologia que induzia
a se pensar que até então o Brasil não tinha intelectuais e
pensadores, que o Brasil carecia de tradição de pensar, sobre
Florestan Fernandes afirmando seu método como científico (por ser
funcionalista e depois marxista), em oposição ao ecletismo dos
demais, sobre o CEBRAP, com o auxílio da Fundação Ford (assim como o
IUPERJ e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro) se impondo como arena
de discussão e crítica do período pré-golpe e, na medida do
possível, sobre as alternativas radicais ou negociadas dentro do
regime ditatorial. Essas novas instituições do saber sociológico se
impuseram não só academicamente, mas também político-ideologicamente
sobre as instituições similares em todo o país, especialmente porque
conseguiram recursos para pesquisa de fundações americanas, bem como
o domínio sobre os órgãos oficiais de fomento, tais como o CNPq, a
CAPES e a Fapesp. Algum dia é preciso fazer uma análise de por que,
como e por que meios as fundações Ford, Rockefeller e em seguida a
MacArthur foram tão pródigas no financiamento dessas instituições.
Para além da discussão propriamente acadêmica, de cunho teoricista,
a nova discussão sociológica se esparramou pela mídia a partir de
1976-77 através de revistas e jornais como Opinião e Movimento. Além
de autores estrangeiros revisionistas do marxismo, ligados a uma
tradição weberiana, com laivos de Hanna Arendt, que eram vistos como
os teóricos dos novos tempos, a discussão foi aplicada à atualidade
brasileira com vistas à busca de uma saída para o fim do regime
ditatorial, cognominado "autoritário". Duas saídas despontaram: uma
democracia light, sem radicalismo, sob a hegemonia burguesa
paulista, à la social-democracia européia; ou um "socialismo"
baseado no novo operariado paulista, que emularia os sindicatos de
classe média e por osmose a organização do povo insciente e
desorganizado. Isto é, as duas opções se concretizaram no PT e mais
tarde no PSDB.
Diferentemente do PSDB, o PT se tornou um partido nacional, e não
quase que exclusivamente paulista ou paulistocêntrico, não por causa
do seu operariado de fábrica, mas por causa da simpatia que lhe
devotou a jovem classe média frustrada, até então não participante e
confiante no projeto econômico do regime. Politicamente esse
segmento da classe média aparelhou-se nos sindicatos de funcionários
públicos, do professorado, nas incipientes associações da sociedade
civil, nos movimentos a favor de minorias e causas para-políticas,
como meio ambiente, homossexualismo, etc. Por sua vez, a Igreja
Católica apoiou a idéia de um partido que se posicionava contra as
ideologias comunista e trabalhista, que ela tanto atacara desde
sempre. Os ideólogos da teoria da libertação propuseram uma relação
mística dos vários segmentos oprimidos do povo com a divindade e a
idéia colou.
Portanto, na ruptura com a ditadura militar surgiram visões de um
novo mundo que rejeitavam a história brasileira (reificando aquela
famosa frase que diz que "brasileiro não tem memória") para criarem
novas instituições a partir da crítica específica ao tal regime
autoritário. O novo parecia surgir por si mesmo. O novo e sua
mística valeram para arrebanhar a imaginação daqueles que jamais
haviam participado de política e dos que no fundo tinham apoiado os
motivos que os golpistas de 1964 alegavam para ter derrubado o
regime democrático pregresso. Nisso o PSDB, contrapondo-se ao
udenismo, ao liberalismo e ao mais recente MDB, e o PT rejeitando as
políticas de aliança comunista-trabalhista-nacionalista do governo
Goulart, despontaram com o mesmo figurino de novidade, como as duas
faces de uma mesma moeda. Não é surpresa, portanto, quando se fala
que suas visões de Brasil e os seus quadros técnicos são
intercambiáveis.
V
Duas observações finais de dois luminares da atualidade darão a
medida exata da relação PT - PSDB e da semelhança de seus projetos
político-culturais. Um deles é Alain Touraine, professor de
Sociologia do Trabalho, da Universidade Sorbonne, amigo de Fernando
Henrique Cardoso. Antes ainda do primeiro turno, ele disse em
entrevista que o PT iria ganhar e deveria fazer por bem se aliar ao
PSDB, já que seus quadros advêm da mesma origem e têm pensamentos
comuns. O outro é o poeta Caetano Velloso que, um tanto reticente em
declarar seu voto para Ciro Gomes, falou em seminário na USP que
apenas Ciro representaria algo fora da USP e, portanto, carregava
maior representatividade para entender a complexidade cultural
brasileira. Caetano, obviamente, não menospreza a USP, ao contrário;
apenas não a sente capaz de dar conta do que é o Brasil. De modo
contrário, Alain Touraine sobrevaloriza o pensamento uspiano, e
despreza o que há de resto no Brasil. Tal qual o PT e o PSDB.
VI
O autocentramento do PT tem duas razões de ser. Uma é de
constituição de identidade e diz respeito à preservação de suas
características e imagem diante dos eleitores e das circunstâncias
políticas. O PT se consolidou como partido pela consistência de seu
posicionamento político perante a nação. Considerando o jogo
político como algo de legitimidade duvidosa, o PT estabeleceu seus
próprios princípios para jogar. Nos momentos em que lhe foi exigido
transigência a alguns desses princípios, o PT não transigiu. Isto
ocorreu durante acontecimentos que são considerados por muitos como
cruciais na história recente do país, a exemplo da eleição pelo
Congresso Nacional do presidente Tancredo Neves, em 1984, fato
simbólico para o fim da ditadura militar; a assinatura da nova
Constituição brasileira, em 1988, fato simbólico para o início de um
novo período de democracia; e a participação político-administrativa
no governo do vice-presidente Itamar Franco, após o impedimento de
F. Collor, fato de alguma relevância moral para o Brasil. Nessas
ocasiões, o PT se negou a participar e puniu membros que ousaram ir
contra essa determinação. Nesse sentido, o PT se considera o único
partido "puro" ou legítimo para representar o povo brasileiro, visto
como uma consolidada maioria oprimida.
A outra razão de autocentramento é estratégica. Refere-se à
necessidade de abrir um caminho próprio diante dos "percalços", não
de "acontecimentos" políticos. O PT considera que a política no
Brasil é uma farsa das elites para enganar o povo. Assim, todo
evento político não passaria de uma encenação, uma ilusão
enganadora, que, portanto, deve ser ultrapassada à luz do interesse
estratégico maior do partido, qual seja, o poder total. O PT rejeita
em princípio alianças de qualquer natureza. Só as tem feito, ou com
partidos que intrinsecamente não mais visam o poder, como o PC do B,
ou, nos últimos tempos, com partidos que lhe possam conferir uma
imagem nova, mas que não forcem mudanças vitais na sua concepção
política. O máximo que o PT e seus administradores concedem a esses
aliados de conveniência é negociação de pontos insignificantes em
programas de governo e participação subalterna no poder, nunca uma
simbiose de forças. Nesse sentido, o PT almeja ser o único partido
real, aquele que deve ter o poder ao final, idealmente como partido
único.
Que forças sociais dão suporte a esta visão e esta atitude políticas
do PT? Certamente não é sua base trabalhadora, já que se pode supor
que, no Brasil, como de resto no mundo desde o fim da Segunda Guerra
Mundial, os trabalhadores se posicionam, em relação ao capital, de
um modo relacional e negociador, não de confronto. A não ser por um
outro grupelho que professa a adaptação de um trotskismo canhestro
(o maoismo e a glorificação da Albânia já se foram) ao Brasil, os
trabalhadores e a maioria de brasileiros que desejam ser
trabalhadores sindicalizados apostam na negociação, o que implica de
algum modo em aceitação estratégica de sua posição social. Assim, a
força social que induz o PT ao autocentramento advém dos outros dois
segmentos que o compõem: o segmento radical da classe média, que
projeta o Brasil à sua imagem e semelhança, e o segmento de cunho
religioso.
Embora de visões diferentes, esses dois segmentos são liderados por
pessoas de idêntica extração social. Destituídos de historicidade,
eles apelam para a elevação de seus estatutos de classe como modelo
para todo o Brasil. Em outras palavras, elas acreditam que seu modo
de ser e viver é o que deve representar e ao mesmo tempo servir de
emulação para todo o povo brasileiro, especialmente os destituídos
de significação política e de sentido cultural.
VII
Uma idéia bastante propalada pelo PT, especialmente nos seus
momentos de baixa, é de que o PT, sua existência, faz bem ao Brasil.
Que o PT, pela honestidade de seus quadros e pela vigilância que
mantém sobre "os donos do poder", é imprescindível ao país. Que pelo
menos dá um peso contrário que ajuda a produzir um equilíbrio
político no Brasil. Ora, não existe monopólio de honestidade em
partido político, nem o PT teve experiências suficientes para
demonstrar que está vacinado contra o vício da corrupção e do
peculato. Ao contrário, suas experiências reiteradas no Rio Grande
do Sul, no Mato Grosso do Sul, em Belém, em Santo André e outras
cidades estão a desdizer essa alegação. Que outros partidos de
centro e de direita têm índices bastante mais altos de
desonestidade, não restam dúvidas, mas tudo indica que a inépcia
administrativa do PT provoca perdas igualmente altas ao erário
público, bem como atrasa o caminho do desenvolvimento socioeconômico
do país.
Por sua vez, o espaço cultural onde predomina a honestidade pessoal
e pública, isto é, o respeito ao dinheiro público, não surgiu com o
PT, nem é muito menos um evento recente. Ao contrário do que supõem
até bons intelectuais com tendências petistas, a honestidade pública
brasileira existe desde a incepção do espírito republicano, com os
positivistas, passa pela ética e pela moral pessoal dos comunistas,
por largos segmentos do trabalhismo, inclusive pelo próprio Getúlio
Vargas, e faz parte do caráter de uma boa parte da elite brasileira
de espírito público, que ajudou a produzir o desenvolvimento do
Brasil. Figuras como Arthur Bernardes (independente de sua atuação
política durante seu período de governo), José Maria Alckmin, Israel
Pinheiro, Barbosa Lima Sobrinho, o próprio João Goulart e seus
principais ministros, apenas para citar aqueles que fizeram política
e administraram o país antes do golpe de 1964, e tantíssimos outros
de porte político menor, são reconhecidos acima de qualquer
suspeita. Haverá muitíssimos mais exemplos que precisam ser
reconhecidos como sendo resultado de um espaço cultural que existe
no Brasil, sobre o qual é preciso se refazer a história política
brasileira diante da simplificação a que foi submetida por uma
sociologia apressada e ideológica que domina os centros de
conhecimento e pesquisa do país.
Independente do PT, a honestidade política e administrativa
brasileira é uma virtude real, com uma história e com um potencial
ainda maior para se expandir sobre a desonestidade, que todos
reconhecem. O que mais importa é encontrar os mecanismos e criar
instituições culturais e sociais que favoreçam essa expansão. E
estes não serão predominantemente jurídicos e contábeis, como supõem
os próceres da honestidade petista, corporativamente centrados,
herdeiros, junto aos bons burgueses do PSDB, da aflição legiferante
portuguesa para encobrir as realidades mais profundas e escamotear
as saídas culturais para resolver os problemas brasileiros.
Só um partido que respeita a história do Brasil será capaz de
reconhecer no brasileiro, pobre, remediado, médio ou rico, e na
nossa cultura como meio de formação de uma identidade maior, o nosso
potencial de honestidade pessoal e público.
VIII
Enfim, é nesse quadro de formação, de visão e de atuação políticas
que o PT toma o poder legitimamente para governar o Brasil. O que se
pode dele esperar? De uma perspectiva positiva e esperançosa, a
capacidade de liderar um momento de mudanças que a sociedade
brasileira vem exigindo com grande ênfase: mudanças na
macroeconomia, na qualidade da educação, na distribuição de
riquezas, na forma de vivência política, no posicionamento do Brasil
em relação à comunidade internacional. Uma tal agenda necessitará de
forças de apoio e de compartilhamento de responsabilidades. Governo
de coalizão efetiva. Dada a formação genética do PT, só por um
processo de superação dialética, movido pelo sentimento de
responsabilidade do poder, é que o PT, com Lula ao seu leme, poderá
constituir um governo nesses moldes.
Podemos dizer que o governo Lula terá três adversários a enfrentar:
um externo, que são as condições do imperialismo capitalista; um
interno que são as forças conservadoras brasileiras; e um mais
interno ainda, que são os dissensos e divergências dentro do próprio
PT. Os aliados de esquerda vão estar espremidos entre essas três
forças adversárias, certamente buscando meios de intermediar. Não
será tarefa fácil para Lula nem para seus aliados.
Por sua vez, há o povo, que espera. Em Lula o povo depositou sua
esperança, seu desejo de mudanças para melhorar sua vida. Alguns
dizem que o povo tem esperanças milenaristas, espera um salvador que
o redima da sua situação de pobreza e humilhação. Mas o povo sabe
também esperar por esperar, dando tempo a que as coisas aconteçam e,
se acontecerem, delas participará. Não será por uma propalada
organização das forças populares, de cunho comunista-leninista, ou
de cunho sindicalista-petista, que o povo participará. Não é assim,
nunca foi assim, que o povo alcançou em vários momentos da história
brasileira a autoconsciência de sua posição para poder agir
politicamente. Não podemos sucumbir aos apelos da reificação dos
sentimentos esquerdistas da classe média para sindicalizar as
relações sociais que se dão no seio do povão. É preciso encontrar
novos caminhos, de razão e lógica cultural, de vivência e
convivência, de experimentação de relacionamento e de atitudes
criativas.
A tarefa do governo Lula é estar ciente de que o povo tem suas
razões de ser e agir e que ele tem que estar atento a isso,
conduzindo seu partido e seus aliados a um caminho firme e seguro.
De nossa parte, nossa grande tarefa é nos mantermos fiéis à história
ascensional do povo brasileiro e de seguirmos na busca de elevar
esse povo, ainda recalcado como ser político e como agente cultural
autônomo, ao ponto de consolidação de uma nova cultura mundial.
Precisamos nos manter confiantes de que isto é possível e que assim
há de ser feito, por obra e graça da inteligência e do amor.
Resumo: O propósito do artigo é o de contribuir para um melhor
entendimento das coordenadas ideológicas e da trajetória histórica
percorrida pelo PT, da fundação a chegada do partido ao poder em
2003, para refletir sobre a sua pretensão de ser o legítimo
representante do sentimento de brasilidade e dos anseios populares.
Palavras-chave: Partido dos Trabalhadores, sociologia uspiana,
populismo, autoritarismo e autocentramento.
* Mércio Gomes é o novo presidente da Funai. Antropólogo, professor da UFF, autor dos livros O
índio na história (Vozes, 2002), The indians and Brazil (UPF, 2000)
e Darcy Ribeiro (Ícone, 2000).
https://www.alainet.org/es/node/108303
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- Encanto e cautela com o PT 01/09/2003
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