O direito à informação: quem financia o preço da mentira na medicina?
14/11/2003
- Opinión
Medicina e saúde não dependem primeiro de liberação de recursos
financeiros, SE a medicina e seus profissionais não possuírem
compromisso com a verdade e capacidade de enfrentar seus erros com
transparência.
Constatei nos últimos dias que o apelo médico da frase "A verdade
faz bem à saúde" não é para prescrição médica verdadeira. É para uso
de políticas questionáveis e oportunistas.
Na questão do tráfico de órgãos e do erro declaratório de morte,
assim como a "placidez" dos órgãos institucionais diante de tudo
isto é patético saber que "eles não tiveram tempo para responder",
como noticiado hoje pela Folha de São Paulo (texto abaixo).
Como as pessoas menos esclarecidas, leigas, poderão processar
informações tão específicas sobre a questão do erro declaratório,
sem levá-las ao plano pessoal do médico que apenas cumpre
protocolos?
Como a população vai reagir a tanto descaso, a tanta dívida dos que
sabiam com os que não sabiam?
Ficará difícil à opinião pública saber distinguir entre o ato
injusto voluntário e o ato injusto involuntário.
Ou seja, entre médicos que agiram injustamente, declarando a morte
encefálica do paciente por meio do mortal teste da apnéia, mas
voluntariamente, sabendo dos efeitos letais desse teste, e médicos
que agiram também injustamente, mas involuntariamente, apenas
seguindo protocolos, como robôs que repetem algoritmos, enquanto
seus órgãos representantes restringem-se a reclamar de falta de
verbas para explicar todo e qualquer problema de saúde pública.
E mesmo os que agiram involuntariamente, não poderiam ter
questionado o fato de apenas cumprirem protocolos sem questioná-los?
Tudo isto é muito complexo de explicar às pessoas, quanto mais de
fazê-las entender. Muito mais ainda para aquelas que foram induzidas
a erro para doar órgãos vitais dos seus parentes que estavam vivos.
Em um primeiro momento viverão um drama de culpa e depois
direcionarão toda a sua revolta sobre os médicos e suas graves
omissões em pensar e informar, pois a omissão persiste por opção
consciente entre eles de forma predominante. Quem não é omisso é
alvo de represálias e também nisto os demais médicos se omitem em
assumir uma postura ética, cobrando ética de seus representantes e
respeito à informação devida à sociedade.
Os gestores da medicina não estão percebendo, mesmo com a síndrome
de divindade que lhes é característica, que o descaso com a vida e
com a saúde, sempre buscando associar saúde à liberação de recursos,
que a responsabilidade que lhes sobra é uma impagável dívida com a
verdade que vai recair sobre a medicina que optou pela mentira para
"proteger" uma imagem esfarrapada de algo que sequer como mentira é
arremedo do que a medicina deve ser?
Estamos, de novo, no terreno da velha ética aristotélica (o Livro V
da Ética a Nicômacos, que trata da Justiça como a ética mais
perfeita entre "as éticas"). Por isto que sempre penso que mais vale
aprender a pensar do que a decorar protocolos e que, no fundo, toda
essa questão tem em sua raiz o problema da formação do médico ou de
qualquer profissional.
Estamos numa era de racionalidade teleológica suprema, em que
fazemos sempre coisas para um "por vir", sempre pensando num bem
futuro, mas não as fazemos para um bem presente.
Um pensador chamado Emanuele Severino, em carta para Umberto Eco,
contrapondo-se à fé laica deste último, escreveu, certa vez, no
Corriére de La Siera, que as pessoas podem ter boa-fé e assim mesmo
matar porque têm boa-fé, e que podem não ter boa-fé e agirem de
forma ética, e que o que importa é a convicção que se tem ao agir, e
que, por isto, _"a técnica é o ocaso da boa-fé"_, pois a técnica sem
ética sempre visa a algo diferente dela mesma no futuro.
Assim, a gestão da saúde médica sempre visa à racionalidade
econômica do sistema, que é um bem futuro ( _ter dinheiro para a
saúde_ ) necessário, mas não a uma racionalidade final em si mesma
( _curar o paciente_ ), o que é pertinente com não censurar,
informar, dizer a verdade. Nada disso vem sendo feito, apenas
apontam a falta de racionalidade econômica.
Não é de estranhar, portanto, que a declaração fictícia de morte
para fins de transplante concebida em 1968 nos EUA, possuísse
exclusivamente um conteúdo de _"relação custo benefício"_, como
disse o neurologista paulista Alberto Alan Gabbai ser a razão do
"diagnóstico" que ajudou a redigir para o Brasil, em 1997.
Toda essa "história" da morte encefálica e seus critérios
declaratórios, no fundo, têm uma base filosófica e antropológica
ainda a ser descortinada, que poderia, resumidamente, reportar-se ao
problema do bem último a que visa a medicina, bem como do bem último
a que visa a informação.
Esse episódio na medicina foi uma ruptura epistemológica trazida
pela força da ganância (e não por uma convicção científica
comprovada) para que a medicina não perdesse _"o trem da história da
evolução tecnológica"_ (estava-se no ufanismo norte-americano da
era da conquista da Lua, outra provável mentira), pois foi
necessário _reinventar a morte_, conceituá-la dentro de certos
padrões controláveis, para que se pudesse mostrar para o mundo que
TAMBÉM a medicina poderia controlar pontualmente nossa anatomia,
intercambiando partes do corpo de um indivíduo no corpo de outro,
assim como um serviço de reposição de peças, de forma que nossa
validade vital, julgada por critérios econômicos e não pelos
biológicos, se prolongasse por mais alguns anos, assim como a
extensão da Terra estava se prolongando para a Lua, na tal conquista
espacial que ocorreu sob a mesma falsidade do "espírito" e época
dessa declaração.
Tudo isso é questionável. A validade e padronização dessas
"conquistas" que se colocam acima dos valores fundamentais para o
convívio social. Esse convívio, -- nas questões básicas --, nas
quais a medicina perpetua dolosamente um débito com a verdade e com
a informação, que vem somando homicídios ao longo do tempo, é
assunto jurídico.
Diante de tudo isso, o CFM "não teve tempo para responder", sequer
tendo a percepção de que essa já foi a sua resposta, que vai gerar a
proibição do teste da apnéia.
Celso Galli Coimbra
OABRS 11352
Porto Alegre
https://www.alainet.org/es/node/108806
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