Ambigüidade
28/06/2004
- Opinión
Apesar da tragédia que continua acontecendo no Iraque, da disputa em torno do salário mínimo, que afeta a vida de milhões de trabalhadores brasileiros, e de tantos problemas graves e sérios que merecem atenção prioritária, o que polariza a atenção do brasileiro mesmo, neste momento, é o final da novela Celebridade. Não é novidade o fascínio que as novelas televisivas exercem sobre o brasileiro. E, aliás, não só sobre ele. No exterior, também, nossas novelas são um êxito nos canais de televisão, polarizando atenções e prendendo as pessoas em casa nos horários nobres em frente à televisão. No entanto, Celebridade traz um elemento que merece uma reflexão mais aprofundada. Trata-se do enorme, do imenso sucesso que a personagem de Laura, a má, a vilã, a sem escrúpulos, vem provocando entre os telespectadores, superando mesmo a personagem principal, Maria Clara, que a beleza de Malu Mader e o bom caráter da produtora musical que ela vive, não conseguiram colocar em primeiro lugar no coração dos telespectadores. Os psicólogos, inclusive neste mesmo jornal, já fizeram suas análises sobre o fenômeno, demonstrando que as pessoas projetam nos vilões e nos anti-heróis suas próprias pulsões negativas, sufocadas pelas exigências comportamentais que a sociedade coloca sobre seus ombros. Assim, sentados em suas poltronas diante da televisão, podem torcer pela bandida que vai prejudicar a mocinha, sem correr o risco de serem acusados, denegridos ou presos. Afinal, é só a ficção da telinha. E não a vida real. Penso que, pelo contrário, a ficção da telinha ou da telona, ou do palco, revela muito da vida real. Neste caso específico, revela a ambigüidade que habita no fundo de cada um de nós e que se disfarça e traveste de muitas fantasias, escondendo seu verdadeiro rosto sob muitas máscaras e muitos nomes. Caminha disfarçada com idéias bem articuladas, sentimentos luminosos e fomes inconfessadas. Maquiada de agudeza, de fineza de percepção, de capacidade de observação e até mesmo de evangélica perspectiva, instala-se astuta em nossas rotinas seguras, na pressa de nossas urgências e no sonho de nossas serenidades. Nossa ambigüidade começa a revelar-se por uma mão alheia fugidia no encontro, por um leve desajuste que aparece em um olhar, por um pequeno sabor amargo em meio ao aplauso, por um desconforto íntimo como resíduo de fadigas cotidianas. Ao ser surpreendida em suas armadilhas, encolhe-se novamente em nosso fundo mais escuro, onde a treva e a luz ainda não foram separadas. Ferida pela claridade e desmascarada pela luz, deixa um rastro de engano esvaindo-se em sangue na fuga. E mergulha, inacessível, aonde não chegam nem nosso olhar nem nossa análise. Toda essa ambígua trajetória de nosso coração vai sendo progressivamente por nós justificada e batizada com nomes outros que não o real. E ao cabo de algum tempo não nos interrogamos mais por que estamos avidamente sentados diante da televisão, assistindo à novela e torcendo por Laura. Da mesma maneira como assistimos a um filme de Tarantino e torcemos pelos bandidos que são - no cinema ou na vida - muito mais espertos e sedutores em geral dos que os mocinhos. Em nome e por causa dessa ambigüidade, jovens caem diariamente nas mãos de fascinantes e hábeis traficantes que os convencem a embarcar nos paraísos artificiais e nas viagens sem volta; mulheres acreditam em homens e homens acreditam em mulheres, apostam suas vidas em promessas que são rompidas subitamente, deixando afetividade e coração destroçados. Não é só o talento de Claudia Abreu que nos fascina em Laura. Laura, em verdade, nos revela nossas profundidades abismais e ignoradas, as quais descobrimos não estarem sequer ainda batizadas! Não é o caso, porém, de sentirmos culpa ou ansiedade. Mas sim de reconhecer humildemente que somos ambíguos porque humanos. E pedir ao Senhor, que é também o Criador, que, como no primeiro dia da criação, nos busque e liberte ali onde somos treva e engano. E consentir que seu Espírito nos ordene ali onde ainda somos caos originário e difusa ambigüidade. * Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga. VISITE O NOSSO SITE: wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape
https://www.alainet.org/es/node/110195?language=en
Del mismo autor
- Neto 114 14/08/2014
- Igreja profética em memória sombria 27/03/2014
- Sem sepultura 16/10/2013
- Papa Francisco: um pecador perdoado 26/09/2013
- Francisco e Gustavo: nova aurora para a teologia 22/09/2013
- La Moneda e as Torres Gêmeas: aniversário re-cordado 12/09/2013
- Gato e rato 08/09/2013
- Médicos cubanos: por que tanta gritaria? 29/08/2013
- A homilia do Papa em Aparecida e as três virtudes teologais 25/07/2013
- Realidade das ruas e euforia enganosa 26/06/2013