O futuro em nossas mãos

19/05/2005
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"Não vamos falar falsamente agora,
A hora já se faz tarde"
All along the watchtower, Bob Dylan.
O governo Lula avança para a segunda metade do seu mandato. Passados mais de dois anos, talvez seja este um momento propício para a tentativa de compreensão do sentido desta experiência, de suas características e de suas contradições. A partir daí, poderemos entender o momento atual e suas perspectivas. O presidente Lula foi eleito como esperança de milhões de brasileiras e brasileiros, fartos de décadas de marginalização social e de oito anos de destruição do Estado e da própria nação, pela mescla de conservadorismo arcaico e neoliberalismo pró-imperialista de Fernando Henrique Cardoso. Aconteciam, porém, dois fenômenos seriamente limitantes na gênese deste governo: o movimento social organizado se encontrava em refluxo e a aliança política que assumiu o poder não tinha um programa definido. Como resultado, acabamos vivenciando -- e sofrendo -- nestes dois anos, um processo extremamente contraditório, com sinalizações políticas opostas, com idas e vindas em políticas compensatórias, com discursos políticos que se anulavam mutuamente. No coração do governo Lula, na sua política econômica, instalou-se uma concepção assumidamente continuista do governo FHC, inclusive com os mesmos economistas, situados na cúpula do ministério da Fazenda e do Banco Central. Emerge daqui a imagem, criada por Antonio Palocci e utilizada por Lula, do país como um grande Titanic, um imenso navio que deve ser dirigido com o máximo de precaução, sem nenhum movimento de mudança, para não trombar com os icebergs: os credores internacionais; o capital especulativo; as agências de avaliação do risco-Brasil; a grande mídia; o imperialismo norte-americano; as multinacionais; o FMI. Esse é o único poder que conta para os formuladores da política econômica atual; estar bem com ele significa que a economia vai bem, significa que os icebergs estão distantes do casco. Para estes formuladores, nada significa a existência de milhões de desempregados ou vivendo abaixo da linha da pobreza; a miséria das cidades; as mortes no campo; a falta de qualquer perspectiva de vida para os povos indígenas; as denúncias dos movimentos sociais, fragilizados e minoritários.O desespero dos excluídos do campo e da cidade não é um iceberg, não ameaça o rumo do Titanic, é apenas a realidade cotidiana e aceitável de um país como o Brasil, que sempre teve pobres e miseráveis- e sempre os terá. A política do possível A "realpolitik", que já havia conquistado corações e mentes dos economistas tucanos, foi assumida alegremente pelos petistas: não há nada de novo a ser feito em política econômica, basta introjetar as exigências do FMI, cumpri-las exemplarmente e se deliciar com a polêmica de qual seria a melhor meta de inflação para o próximo ano. Se há fome, sofrimento e morte, não importa. Uns vinte anos da mesma política econômica poderá, talvez, suavizar esta realidade. Talvez não, dependerá do comportamento do mercado. Contudo, o governo Lula não é só a sua política econômica, portanto deve dar respostas a uma infinidade de outras áreas: a política externa; a reforma agrária; as cidades; a saúde; a educação; o trabalho e o emprego; o meio-ambiente; a segurança; a cultura; a justiça; a infra-estrutura e os povos indígenas. É importante notar que, para os diferentes ministérios, principalmente da área social, foram alguns dos melhores quadros dos movimentos sociais, das universidades e da esquerda, com as melhores intenções. Acontece que estes quadros foram atuar em uma realidade de recursos quase inexistentes (tudo teve que ser sacrificado pelo superávit primário, exigido pelo FMI) e com um Estado quase totalmente destruído, sucateado, depauperado, inoperante, para a grande maioria da população.Os melhores planejamentos são feitos, as melhores idéias são propostas, mas muito pouco pode ser realizado, devido a escassez de recursos e a falta de instrumentos de intervenção na realidade social. Os formuladores da estratégia política do governo Lula, no início da gestão, quando cobrados em mais ousadia na intervenção política, principalmente com relação a programas e ações de alcance social, em benefício de setores populares, adoravam responder: "não há correlação de forças" ou "é necessário garantir a governabilidade". Para, em seguida, defender a ortodoxia econômica, o conservadorismo político e as alianças sempre e cada vez mais à direita. Mesmo abrir os arquivos da ditadura, para descobrir onde estão os desaparecidos políticos, cumprindo ordens da Justiça, ameaçava a governabilidade, não tinha correlação de forças. Passados dois anos, a direita ideológica e classista, porta-voz das elites oligárquicas e financeiras, se organizou mais e mais e passou a paralisar o governo no Legislativo e no Judiciário- e o governo não conta com a sociedade organizada para defendê-lo,pois foi sempre surdo para as suas cobranças e propostas.Ou seja, agora sim, por obra das comedidas estratégias governamentais, sempre concedendo à direita, que a correlação de forças ficou realmente desigual- em favor da direita. O Horizonte Nesta segunda metade do mandato do presidente Lula, temos uma situação insólita: um governo com escassa base social organizada; hostilizado pela direita e por setores da mídia que tentou seduzir; criticado pela esquerda e pelos movimentos sociais onde tem sua origem; bem aceito pelo grande capital financeiro e por parte da mídia; bem aceito pelo imperialismo norte-americano e pelas multinacionais e um presidente com boa performance junto à opinião pública, aos pobres e aos miseráveis, que não estão organizados e não são politizados. Ou seja, nesta ante-sala de 2006 e da disputa por um segundo mandato, tudo é possível, tudo é imponderável. Do ponto de vista do governo, dada esta imponderabilidade, é necessário cuidar de todos os flancos: de repente, uma questão antes tão insignificante para o grande navio do país, como a morte de crianças indígenas ou a falta de demarcação de terras indígenas, pode fazer um furo respeitável no casco do Titanic. O Titanic volta como imagem, mas desta vez não como algo que navega em meio a pressões maiores -- do capital financeiro -- e bem menores -- dos setores populares; mas volta como algo que navega rumo ao mar oscilante dos milhões de votos de 2006, que poderá ou não reconduzir ao comando o capitão do navio. Vemos, portanto, neste transcorrer de 2005, por um lado, o crescimento da insatisfação popular e sua correspondente organização e mobilização. Cansados da frustração, da perplexidade, da indignação, os movimentos sociais retomam as articulações e retomam as ruas com greves, com marchas, com manifestações. Por outro lado, vemos um governo que durante dois anos ignorou, por "irrealistas" e "fantasiosas" as reivindicações e propostas destes mesmos movimentos, devido às razões da "grande política", das "razões de Estado", da "realpolitik", se dispor a ouvi-los, a abrir uma interlocução e a dar visibilidade a esta. Talvez esteja nas mãos dos movimentos sociais a tarefa de ocupar ao máximo, nesta segunda metade do governo Lula, as ruas, as praças, as estradas, os latifúndios, a mídia, as escolas e universidades, as fábricas, os prédios e o Congresso Nacional, para exigir que esta interlocução vá além de um aperto de mãos fotogênico, para fotógrafos e cinegrafistas, para os programas eleitorais de 2006. É necessário reconstruir um movimento de massas poderoso, capaz de exigir um novo rumo para a política econômica e novas e verdadeiras políticas públicas, já em 2005. Um movimento que também aponte para um projeto de poder popular, claro e consistente, para a disputa presidencial de 2006. Nunca mais Não nos esqueçamos que os setores mais atrasados das oligarquias e as elites mais comprometidas com o imperialismo norte-americano estão buscando pescar nas águas turvas de hoje e estão se preparando, com discursos, dinheiro e com alianças políticas, para o embate de 2006, quando pretendem recuperar plenamente o seu poder de 505 anos, que deixaram escapar fugazmente nos últimos 2 anos, embora tenham se mantido vigilantes para que, de fato, não escapasse. Hoje, as elites tramam intensamente, diariamente,em todas as frentes, buscando reapropriar-se, sem mais intermediários,de todos os controles e instrumentos, políticos e econômicos, do governo e do Estado, pondo fim a esta "aventura da esquerda" chamada governo Lula. Por fim, não nos esqueçamos que, nestes 60 anos do fim do nazismo e do fascismo no mundo, com o fim da II Guerra Mundial (1945), e nestes 20 anos do fim da ditadura militar no Brasil (1985), "continua fértil o ventre que gerou a coisa imunda". Só a mobilização e a organização popular, com um projeto claro de nação, poderá resgatar a esperança num futuro de justiça e igualdade. - Paulo Maldos é assessor político do CIMI, -Conselho Indigenista Missionario-, organismo vinculado a CNBB
https://www.alainet.org/es/node/112003
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