A CPMI da terra e a mídia

05/12/2005
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Vivemos na era dos ilusionistas da notícia. Esses sabem que, nesses tempos, o conteúdo perde cada vez mais espaço para a forma, em qualquer veículo de comunicação. É a alienação elevada ao extremo, chegando a desvirtuar acintosamente o senso de realidade individual e coletiva. Ao mesmo tempo, essa artimanha é tão bem-vinda quanto confortável para o cidadão comum - aquele que está preocupado apenas com sua rotina trabalho-casa-televisão-trabalho. Ou trabalho-casa-rádio-trabalho. Ou ainda trabalho-casa-jornal-trabalho, não importando o veículo que preencha essa variável, desde que ele provenha informações com este mesmo nível de superficialidade. O cidadão comum agradece, pois ele precisa acreditar que está bem informado tanto quanto os que precisam acreditar no horóscopo para seguir vivendo. Ontem à noite os jornalões, em suas versões eletrônicas, vieram com as mesmas notícias: o relatório do deputado Abelardo Lupion (PFL-PR) foi aprovado e CPMI da Terra pede que "invasão de terra seja considerado ato terrorista e crime hediondo". Infelizmente, a realidade é cruel: não há como ser bem informado sobre uma decisão política apenas tendo por base o noticiário da mídia dominante. Menos por uma questão ideológica e mais por uma questão de tempo. O tempo da notícia corporativa é outro; está atrelado ao departamento comercial, está submisso a ele. De modo que a prioridade não é, de maneira alguma, fornecer ao público informações suficientes para que ele compreenda, com profundidade, qualquer tema. Nesse caso específico da CPMI da Terra, não parece razoável supor que em alguns segundos o cidadão compreenda um trabalho de dois anos e, menos ainda, compreenda a complexa questão dos conflitos agrários no Brasil. Para se ter uma idéia do que está em jogo por trás dessas manchetes, seria preciso, no mínimo, assistir todo o debate dessa última reunião que rejeitou o relatório do deputado João Alfredo (PSOL-CE) e aprovou o relatório do deputado Abelardo Lupion (PFL-PR). E aqui, não tenho dúvidas em afirmar: o dia em que o sinal da TV Câmara e da TV Senado estiver aberto à população, chegando com qualidade aos lares brasileiros, certamente o país começará a recuperar sua história. Durante esta última reunião da CPMI da Terra, por exemplo, havia 12 deputados e 12 senadores, sendo que a maioria pertencia à chamada bancada ruralista, incluindo o presidente da comissão (senador Álvaro Dias, PSDB-PR) e o vice-presidente (deputado Ônyx Lorenzoni, PFL-RS). E aí deu pra ver o desrespeito pelo interesse público com que nos brinda a direita brasileira. O relatório aprovado, ao que parece, possui míseras 19 páginas! Em dois anos de trabalho o senhor Abelardo Lupion produziu 19 páginas. Será isso mesmo? Uma média de produção de uma página a cada 39 dias. Ao passo que o relatório do deputado João Alfredo possuía mais de 400 páginas. É óbvio que não se trata de dizer que um relatório é melhor que o outro a julgar pelo tamanho. Não é isso. Acontece que não é racional supor que o conflito agrário brasileiro se resuma a 19 páginas. Isso a mídia não destaca. Assistir a esta reunião também serviu para entender como a direita brasileira é profissional, competente, fria e calculista. Mesmo diante dos discursos inflamados dos deputados do PT e do PSOL a favor da vida, a favor dos direitos humanos, os parlamentares de direita nem sequer esboçaram reação. Isso ficou claro no momento em que a senadora Heloísa Helena deu seu depoimento emocionado de quando participou de uma ocupação de terra, relatando o que é dormir debaixo de lonas pretas com "o frio parecendo que iria lhe arrancar os ossos e com os tiros zunindo no seu ouvido", ao que o deputado Ônyx Lorenzoni deu de ombros, como se pensasse algo do tipo "e eu com isso?". Outro momento marcante aconteceu quando a senadora Heloísa Helena praticamente implorou para poder fazer um aparte, diante do olhar "de cima" dos três parlamentares que comandavam a mesa (Dias, Lorenzoni e Lupion). É visível o desprezo que eles têm pela esquerda e por qualquer um que lute por ideais, como ficou claro numa das falas do deputado Lorenzoni: "O povo brasileiro deve agradecer a esta CPI por ela ter identificado que não existe uma luta pela terra no Brasil, mas uma meia dúzia que fala em fazer revolução. Graças a Deus a maioria dos brasileiros não pensa assim". Por diversas vezes os deputados direitistas afirmaram que o MST não existe, que se trata apenas de uma estratégia eleitoral do PT, negando assim a luta de classes e a própria história do país, que pelo menos desde a Lei de Terras, passando por Canudos, registra a disputa pela terra. Enfim, a aprovação desse relatório é também, como disse o deputado João Alfredo, "uma agressão à memória de todos os trabalhadores mortos no campo". Mas, mais que isso, é uma demonstração cabal de como a direita ainda está muito à vontade no Congresso Nacional. Marcelo Salles é jornalista e editor do http://www.fazendomedia.com Fonte: Revista Novae, 01/12/05 Ref. http://www.novae.inf.br/pensadores/terra_midia.htm
https://www.alainet.org/es/node/113722
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