Barão, 100 anos

24/08/2006
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Caso raro: meus pais e os oito filhos estudaram no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, em Belo Horizonte. Ali fomos alfabetizados. Tempo de evocações líricas, pássaros em revoadas sobre mangueiras frondosas, e redações chamadas pelo significativo nome de ‘composições’. Professoras tinham salário digno e status, o que despertava as vocações formadas pelo Instituto de Educação. Fui feliz no Barão, onde pobres e ricos trajavam o mesmo uniforme e mereciam igual tratamento. O que me torna, hoje, convicto de que todo o ensino fundamental deveria ser público. Ali estudei na primeira metade da década de 1950, após cursar o Jardim da Infância Bueno Brandão, que fica do outro lado da Avenida Getúlio Vargas, outrora Paraúna, em homenagem à nação indígena. O Barão era alheio à segurança. Os muros eram baixos e limpos, e jamais tive notícia de que ali dentro houvesse um roubo. Guardava-o o porteiro, seu José, homem de sorriso fácil e afável no trato. No entanto, havia rigor disciplinar: perfilados no pátio, os alunos ingressavam em classe ordenados em fila ao som de hinos marciais dos EUA, moda naquele pós-guerra aquecido pelo conflito que provocou a fratura da Coréia. Os fartos bigodes de José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, metalizados no bronze que lhe esculpia o busto, à entrada principal, imprimiam-nos respeito e veneração. Trajávamos sapatos pretos (os meus, com solas de pneu, inacabáveis), meias brancas, calça curta azul de brim e camisa de algodão com o escudo da escola cerzido no bolso sobre o coração. Nossas pastas de couro preto continham o estojo de lápis, apontador, régua e borracha. Todo o material era adquirido numa única loja no centro da cidade: Ao Mundo Colegial. Encapávamos com papel pardo nossos cadernos e livros. Com a ajuda da régua, marcávamos, em cada folha do caderno, as margens com lápis vermelho. O risco vertical repetia-se nas folhas de papel almaço utilizadas nas provas. Ali aprendi a ler e escrever a partir da cartilha “Lalau, Lili e o Lobo”, de Rafael Grisi, adotada pela professora Derci Passos, minha heroína de toda a vida, por sua dedicação e competência. Foi a primeira pessoa a valorizar minha vocação literária ao elogiar minhas composições, advertindo aos colegas que não deveriam recorrer aos pais, mas eles mesmos redigirem seus textos, “como faz o Carlos Alberto”. A única diferença social entre os alunos consistia na cantina que, à hora do recreio, oferecia merenda aos mais pobres, quase sempre um mingau açucarado servido em prato de sopa. Os demais, como eu, levava o lanche de casa. Embora laicos e públicos, os grupos escolares tinham por obrigação comparecer à missa pascal na Igreja da Boa Viagem. Ano a ano o conflito se repetia: alunos do Barão do Rio Branco e do Afonso Pena se atracavam nos jardins da igreja, sem outro motivo senão comprovar a superioridade do braço… Retórnavamos à casa exibindo hematomas, o uniforme sujo e rasgado, às vezes descalços, carregando o único pé que sobrara do par de sapatos. Anjos pascais convertidos em diabinhos travessos… Havia tamanha qualidade no Barão e, em geral, em todas as escolas públicas, que as famílias de Belo Horizonte disputavam ardorosamente o privilégio de ali matricularem seus filhos. Dói no peito saber que, hoje, o ensino público encontra-se sucateado e os professores mal pagos. Não vejo futuro para o Brasil – onde 65% dos jovens entre 14 e 24 anos não trabalham nem estudam – sem melhoria da educação, incluída a permanência das crianças 8 horas na escola. - Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – autobiografia escolar” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/116712
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