Fidel, com os pobres da Terra
24/08/2006
- Opinión
Quando tomei conhecimento da triste notícia da enfermidade de
Fidel, estava pondo as últimas vírgulas de um ensaio sobre a
política exterior de Cuba nas décadas de 1960 e 1970. Este é o meu
ofício, sou historiador, e faz 15 anos que venho estudando a
política externa da Revolução Cubana. Pus-me a pensar: o que
representa Fidel para mim?
Imagens esparsas, fragmentos de frases que conheço de memória. As
palavras de um amigo, Nelson Mandela, quando visitou Havana em
julho de 1991: “Viemos aqui com o sentimento da grande dívida que
contraímos com o povo de Cuba. Que outro país tem uma história de
grande altruísmo que Cuba manifestou em suas relações com a África?
E as palavras de um inimigo, Henry Kissinger, no último volume de
suas memórias, quando se perguntava por quê Cuba enviou seus
soldados a Angola, no final de 1975, desafiando Brezhnev, que se
posicionava contra; desafiando a África do Sul que tinha invadido
Angola e cujas tropas estavam se acercando da capital Luanda; e
desafiando os Estados Unidos que permaneciam em impudico
contubérnio com Pretoria. Kissinger assinalava que Fidel “era
talvez o líder revolucionário no poder mais genuíno daqueles
momentos históricos”. Fidel enviou seus soldados porque sabia que a
vitória do Eixo do Mal – Washington e Pretória – teria significado
a vitória do apartheid -, o reforço do domínio branco sobre os
povos da África austral.
A voz de uma mulher em Guiné-Bissau, recordando os médicos cubanos
que conheceu há mais de 30 anos: “Eles realmente realizaram um
milagre”, observava. “Fico-lhes eternamente agradecida. Não só
salvaram vidas como arriscaram as suas. Eram verdadeiramente
generosos”. Compunham as brigadas médicas voluntárias nas zonas
guerrilheiras de Guiné-Bissau, de 1966 a 1974 – até que Portugal
colonial fosse vencido – e se encarregaram da atenção médica na
região.
Uma tarde em Conakry, faz muitos anos, conversava diante do
Ministério da Agricultura, com um amigo cubano que ali vivia. Os
agrônomos que dali saíam se aproximavam dele falando um espanhol
fluente – tinham estudado, assim como dezenas de milhares de outros
estudantes africanos, em Cuba, com bolsas de estudo fornecidas pela
Revolução. Que outro país atuou alguma vez com tanta generosidade?
Que outro país tem a história da Ilha da Juventude, onde estudaram
tantos jovens africanos e latino-americanos?
O presidente Nyerere da Tanzânia ao visitá-la disse: “Não há lugar
mais bonito debaixo do sol” Que outro país tem hoje em dia algo
como a Escola Latino-americana de Ciências Médicas, onde milhares
de estudantes de países do Terceiro Mundo, e até jovens pobres dos
Estados Unidos, estudam gratuitamente? O desafio de Cuba é criar
uma cadeia de solidariedade e que a generosidade e os valores que
recebem da Revolução Cubana os devolvam e multipliquem, em futuro
não muito distante, aos pobres de seus países. José Marti dizia:
“Com os pobres da Terra quero minha sorte lançar”. Esta é a
bandeira da Revolução Cubana.
Há nos arquivos norteamericanos um documento muito interesante, as
notas taquigráficas de uma longa conversação de Fidel, em dezembro
de 1978, com dois emissários do presidente Carter. Tinham vindo
exigir-lhe, da parte do presidente estadunidense, que Cuba
retirasse suas tropas de Angola – ameaçada pelos racistas de
Pretória – e deixasse de ajudar os movimentos de libertação de
Zimbábue, Namíbia e África do Sul. Se Cuba acatasse, então os
Estados Unidos poderiam afrouxar suas políticas contra Cuba.
Fidel respondeu: “Cremos que é profundamente imoral que os senhores
utilizem o embargo como uma maneira de pressionar Cuba. Estamos
profundamente irritados, ofendidos e indignados pelo fato de que
durante 20 anos os senhores terem usado o bloqueio para nos
pressionar e exigir coisas de nós (...) Talvez deva acrescentar
algo mais. Quero que os senhores não se equivoquem – não nos podem
pressionar, corromper ou comprar (...). Talvez por serem os Estados
Unidos uma grande potência, pensem que podem fazer tudo o que lhes
dá na gana, tudo o que parece de seu interesse. Parecem estar
dizendo que existem dois tipos de lei, dois tipos de lógica, uma
para os Estados Unidos e outra para os demais países. Talvez seja
idealismo de minha parte, porém nunca aceitei as prerrogativas
universais dos Estados Unidos, nunca aceitei e jamais aceitarei a
existência de leis diferentes e regras distintas”. E concluiu:
“Espero que a história seja testemunha da vergonha dos Estados
Unidos que durante 20 anos não permitiram a venda de medicamentos
necessários para salvar vidas. (...) A história será testemunha de
vossa vergonha”.
Uma imagem me assalta, algo que nunca presenciei, mas li tanto na
imprensa sulafricana, Namíbia ou norte-americana daquele tempo que
quase parece havê-la vivido: os tanques cubanos avançando no sul de
Angola em direção à fronteira com a Namíbia, na primavera de 1978,
para expulsar os sulafricanos de uma vez para sempre de Angola, com
apoio das tropas cubanas, dos combatentes namíbios e unidades
angolanas. Os generais do apartheid , a imprensa do apartheid
lançavam ameaças e alaridos de dor. Cruzariam os cubanos a
fronteira, entrariam na Namíbia ocupada pelos racistas de Pretória?
Foi para saber isto que o Secretário de Estado adjunto de Reagan
para assuntos africanos procurou Jorge Risquet, o homem de proa de
Fidel para a África. “Uma pergunta que surge é a seguinte – disse –
Cuba tem a intenção de deter seu avanço na fronteira entre Namíbia
e Angola, porque suas tropas não estão muito longe dessa fronteira?
Risquet, transmitindo com precisão a resposta de Fidel, replicou:
“Eu não lhe posso dar essa resposta. Não lhe posso dar um sedativo
nem ao senhor nem aos sulafricanos. (...) Não disse que não vão se
deter nem que não vão deixar de se deter. Disse que não estão
limitadas por nada e que somente podem ser limitadas por um acordo.
Entenda-me bem, não estou ameaçando. Se lhe dissesse que não vão se
deter, eu estaria proferindo uma ameaça. Se lhe dissesse que vão se
deter, eu lhe estaria dando um sedativo, um tylenol e eu não quero
nem ameaçar nem quero dar-lhe um calmante. (...) O que eu disse é
que apenas os acordos (sobre a independência da Namíbia) podem dar
as garantias”. A África do Sul cedeu. Sob pressão das tropas
cubanas, retirou-se de Angola e aceitou, em dezembro de 1988, a
independência da Namíbia a que tanto tinha aversão.
Há uma canção de Silvio Rodríguez que diz: “A Nicarágua lhes causa
dor porque o amor lhes causa dor ...” Aos Estados Unidos Cuba causa
dor e muito. Dói-lhes porque os venceu, os humilhou. Por certo, não
foram agressões cubanas Baía dos Porcos, Angola, eram agressões dos
Estados Unidos, contudo o império soberbo nunca a perdoou. E se
vinga como pode, é a vergonha do covarde: com o infame bloqueio,
para destruir as conquistas da Revolução Cubana - a saúde, a
educação ...- e tratando de reescrever a história, mentindo,
manipulando, a fim de apagar o papel de Cuba.
Eu não conheço nenhum outro país para quem o altruísmo tenha sido
um componente tão essencial de sua política exterior. Eu não
conheço nenhum outro país além de Cuba que por tantos anos, contra
ventos e tempestades, tenha demonstrado tanta generosidade e
valentia em sua política exterior.
Para mim, isto é o que Fidel representa.
Tradução de Max Altman
- Piero Gleijeses, professor de Política Exterior da Universidade
Johns Hopkins, Estados Unidos
https://www.alainet.org/es/node/116727
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