O ditador e o poeta

18/12/2006
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Não é só depois de 2001 e do ataque às Torres Gêmeas que o dia 11 de setembro é sinônimo de medo e terror. No dia 11 de setembro de 1973, o golpe militar comandado pelo general Augusto Pinochet derrubava Salvador Allende, presidente do Chile. Seguiram-se, além da morte do presidente, uma série de outros atos violentos e ditatoriais que transformaram o que hoje conhecemos como o culto e desenvolvido Chile na sede mundial do medo e da repressão.

 O poeta, compositor e cantor Victor Jara foi uma das primeiras vítimas do regime de Pinochet. Preso juntamente com outros 600 estudantes na Universidade onde trabalhava, foi levado para o Estádio Nacional em Santiago. Nesse mesmo dia foi torturado e assassinado pelos militares. Antes disso lhe cortaram as mãos que tocavam violão, acariciavam, trabalhavam e compunham. Uma testemunha relata que ao cortar as mãos de Victor Jara, seus algozes lhe teriam dito: “Agora pode tocar violão.”

Dias depois, sua mulher, Joan Jara, identificou o corpo do poeta, fuzilado e com as mãos amputadas. No estádio, Victor ainda escreveu seu último poema, no qual transparece toda a sua dor e sofrimento, a um passo da morte, contemplando com profunda tristeza o que acontecia com seu país:

É este o mundo que criaste, meu Deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?...
Como me sai mal o canto quando tenho que cantar o espanto! Espanto como o que vivo.
como o que morro, espanto.

 O mundo inteiro agora contempla o general Pinochet morto em um caixão, de velhice, aos 91 anos. As milhares de vítimas de sua violenta e implacável ditadura até hoje esperam por justiça. O general, após tomar alguns sustos quando o detiveram na Espanha por crime contra a humanidade, conseguiu voltar ao Chile alegando doença e morreu cercado de conforto e do carinho da família.

 Diante do cadáver do ditador, o Chile mostrou-se dividido. Enquanto parentes, familiares e advogados de vítimas protestavam indignados; enquanto fiéis seguidores do ditador morto esperavam o cortejo fúnebre sob sol abrasador e o aclamavam como grande estadista, a ministra da Defesa do governo de Michele Bachelet, filha de uma vítima da ditadura, comparecia ao enterro. Entre choros e desmaios aconteceram então também insultos contra a ministra, a qual, enquanto titular do Exército, compareceu à cerimônia.

 Em vida Pinochet se auto-concedeu todas as honras possíveis. Morto, não teve honras de chefe de Estado, apenas honras militares. A morte do general certamente não trará de volta à vida nem um só dos milhares de "desaparecidos". Tampouco poderá mudar o rumo da vida dos milhões de exilados que saíram do Chile por esse mundo afora. O passado não se pode mudar. Mas o futuro se pode construir. E os advogados dos direitos humanos tentam agora que os cerca de cem colaboradores de Pinochet já processados na justiça possam ser efetivamente condenados e que a família do general seja co-responsabilizada na restituição de verbas fraudulentamente apropriadas.

 Este é o ensinamento que o general talvez não tenha tido tempo de aprender. As ditaduras passam, cedo ou tarde, fazendo mais ou menos estragos e deixando um rastro mais ou menos profundo de dor e morte. Mas os ideais e a arte não morrem. Enquanto o general Pinochet jaz aos pés da cordilheira, o canto cheio de espanto e gênio de Victor Jara enche os pulmões e as bocas de muitos que continuam sua luta pela paz e a justiça. E o Criador contempla sua obra na poesia de Victor Jara e de todos os artistas que como ele cantaram o amor e a dor, a vida e o espanto. E vê que tudo que criou é muito bom.

- Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, autora de "Violência e Religião" (Editora PUC-Rio/Edições Loyola), entre outros livros. (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)

https://www.alainet.org/es/node/118751
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