Sem sepultura
16/10/2013
- Opinión
Desde a semana passada a Itália é agitada por uma discussão inusitada: a recusa de dar sepultura em território italiano a Erich Priebke, ex-oficial nazista e capitão das SS. Após a guerra, Priebke conseguiu fugir para a Argentina, com identidade falsa. Menos de um ano depois, no entanto, voltaria a usar seu nome verdadeiro. Ele conseguiu permanecer na obscuridade por décadas, trabalhando como professor na cidade de Bariloche, até ser localizado por uma equipe de jornalistas americanos, em 1994. Acabou sendo extraditado para a Itália.
Priebke, que morreu aos 100 anos, vinha cumprindo pena de prisão perpétua em regime domiciliar, em um apartamento em Roma, desde 1999. Após ser extraditado para a Itália, foi condenado pela participação no massacre das Fossas Ardeatinas: 335 civis, entre eles 70 judeus, foram mortos. A chacina, que ocorreu em 24 de março de 1944, foi ordenada pessoalmente por Adolf Hitler, enfurecido com a morte de 33 soldados alemães em um ataque de guerrilheiros na região de Roma.
Como represália, para cada alemão morto dez civis teriam que ser executados. Os túneis de uma antiga pedreira próximo da via Ardeatinas, nos subúrbios de Roma, foram o local escolhido e as vítimas selecionadas, em sua maioria, em prisões da região, inclusive os judeus. Ao todo, 335 civis (todos homens e totalizando cinco a mais do que o determinado originalmente) foram recolhidos pelos guardas da SS, liderados por Priebke e por outro oficial, Karl Hass.
Todas as cidades italianas e o próprio estado do Vaticano recusam-se a dar sepultura ao nazista morto. Negam-se a abrigar em seu solo seus restos. Nem a Argentina, onde ele viveu vários anos, nem a Alemanha, sua terra natal. Há uma semana o corpo espera um lugar para ser sepultado.
A grande preocupação é que o enterro de Priebke represente uma oportunidade para manifestações de neonazistas que existem em abundância na Itália e em outros países da Europa. Qualquer desses atos alimentaria o clima de tensão na capital italiana, já que em 16 de outubro se comemora o 70º aniversário da deportação de mil judeus do gueto de Roma para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, dos quais apenas 16 sobreviveram. Entre eles encontra-se o famoso filósofo Primo Levi que escreveu depoimentos pungentes sobre sua experiência no campo.
Efraim Zuroff, diretor do centro Wiesenthal - organização que zela para que os criminosos nazistas respondam por seus crimes - declarou que "o melhor é enviar o corpo para a Alemanha para que seja cremado. A Alemanha tem as leis adequadas para evitar que os funerais e a incineração se transformem em uma festa de neonazistas". A cremação do capitão das SS "é uma solução eficaz", acrescentou, após lembrar que o corpo de Hitler também foi cremado. "Com esse gesto se destrói tudo o que representa o nazismo", avalia Zuroff.
Tudo isso faz recordar o terrível genocídio que manchou para sempre a história da humanidade. E traz à memória, igualmente, o testemunho de pessoas que viveram o horror da tragédia e em meio a ela conservaram sua dignidade humana. Mais ainda: pessoas que, em meio ao horror do holocausto, nos ajudam a recordar que o ser humano é maior do que todos os horrores que sobre ele possam se abater.
Uma delas é Etty Hillesum, jovem judia holandesa, morta na câmara de gás em Auschwitz, aos 29 anos de idade. Bonita e sedutora, inteligente e culta, Etty tinha diante de si um brilhante futuro brutalmente interrompido pela perseguição nazista. Enquanto sobre ela se fechava o cerco que os nazistas impunham a seu povo ela, mergulhada em uma intensa experiência de Deus, crescia interiormente e sentia-se cada vez mais livre. Via que os nazistas estavam cegos pela loucura de um ditador e de um sistema enlouquecido. A tal ponto que eram eles próprios que estavam presos pelas cercas de arame farpado. Não seus prisioneiros.
Havia nessa jovem mulher uma completa ausência de posturas artificiais e visões maquiadas e disfarçadas das coisas. Sua visão se desenvolveu em meio às mais grotescas e desumanizantes circunstâncias. E nesse cenário tão doloroso e negativo, viu lucidamente que os alemães planejavam o extermínio sistemático de seu povo. Mas sustentou que “se pudesse ser encontrado um só alemão decente, haveria razões de sobra para não odiar a totalidade do povo. Apesar de todo o sofrimento e injustiça, eu não posso odiar os outros”.
Embora seja perfeitamente compreensível o desconforto do povo italiano em dar sepultura em seu solo àquele que comandou o assassinato de tantos de seus filhos, a atitude de Etty Hillesum, feita de compaixão e piedade para com tanta cegueira, é mais fecunda. Não esquecer, mas perdoar. Dar sepultura porque é um ser humano. Mesmo que seja um nazista e um genocida. Aí está o caminho da liberdade e da redenção.
- Maria Clara Lucchetti Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, teóloga é autora de “O mistério e o mundo – Paixão por Deus em tempo de descrença”, Editora Rocco.
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