Elogio da conscientização

09/02/2007
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Conscientização deriva de consciência, ter ciência ou conhecimento de algo. O termo introduziu-se na linguagem dos setores progressistas da América Latina através das obras do professor Paulo Freire (1921-1997),

educador brasileiro que desenvolveu a pedagogia do oprimido – método de alfabetização que favorece o aprendizado da leitura e da escrita através da contextualização das “palavras geradoras”. Assim, pai está na raiz de país, pátria, abrindo à consciência do alfabetizando a percepção da conjuntura sociopolítica e econômica em que se situa.

Uma obra imprescindível, radiografia completa da vida e da pedagogia de Paulo, chega agora às livrarias: “Paulo Freire – uma história de vida” (São Paulo, Villa das Letras, 2006), assinada por Ana Maria Araújo Freire, educadora e viúva do renomado professor pernambucano. Com farta documentação, o livro esmiuça a trajetória de vida do biografado, a evolução e aplicação de seu método, os anos de exílio, bem como os efeitos de seu trabalho em vários países e as homenagens merecidas.

Impelido pelo método Paulo Freire, na década de 1970 intensificou-se, na América Latina, o “trabalho de base” com setores populares, assessorados por equipes de educação popular empenhadas em “conscientizar” camponeses, operários e pessoas de baixo poder aquisitivo. O verbo implicava tornar o educando “consciente” politicamente, ou seja, crítico ao sistema capitalista, às ditaduras, à opressão social e, ao mesmo tempo, adepto do projeto de construção de uma sociedade socialista.

Aos poucos, percebeu-se que não basta “conscientizar”, dotar o militante de noções políticas de matiz crítico. A cabeça pensa onde os pés pisam. Ainda que se adquira “consciência” dos problemas sociais e desafios políticos, o risco de idealismo é superado na medida em que o militante mantém vínculos orgânicos com os movimentos sociais. Sem prática social não há teoria que transforme a realidade, ensinou Paulo Freire.

Nas últimas décadas, o “trabalho de base” ampliou o significado de conscientização. O conhecimento não deriva apenas da razão ou dos conceitos que trazemos na cabeça. Resulta também da fatores não-racionais ou transracionais, como a emoção, a intuição, o senso estético etc. Na Bíblia, conhecer é experimentar. Quando se diz que “Sara conheceu Abraão”, significa mais do que ser apresentado a uma outra pessoa. É fazer a experiência daquela pessoa, tocá-la física e subjetivamente, amá-la.

Com a introdução, no trabalho político, das relações de gênero e da preservação do meio ambiente, conscientizar ganhou um significado mais amplo, articulando consciência e subjetividade, atuação efetiva e relações afetivas, prática social e solidariedade individual. Descarta-se, assim, a figura do militante maniqueísta, que advoga a transformação da sociedade sem se empenhar na mudança de si mesmo. Agora, conscientizado é o militante que conjuga, em sua atividade social e política, princípios éticos e compromisso com a causa libertadora dos pobres.

A cabeça do oprimido, reza um princípio marxista resgatado por Paulo Freire, tende a ser “hotel” de opressor. Ela hospeda idéias e atitudes inoculadas em nós através dos meios de comunicação, da cultura vigente, dos modismos. Pois o modo de pensar e agir de uma sociedade tende a refletir o modo de pensar e agir da classe que domina essa sociedade.

Conscientizar é propiciar aos oprimidos e aos militantes políticos um distanciamento crítico dessa ideologia dominante, de modo que assumam práticas inovadoras e renovadoras, rejeitando, na medida do possível, influências que possam induzi-los a – em nome de uma nova sociedade – adotar práticas típicas dos opressores, como é o caso do guerrilheiro que tortura o soldado inimigo para obter informações. Uma das causas da queda do socialismo no Leste europeu foi o descrédito de dirigentes políticos que reproduziam em seu comportamento o que era próprio de tiranos e caudilhos que haviam derrubado e tanto criticavam.

Na América Latina, o avanço dos movimentos sociais e da mobilização por mudanças estruturantes depende, hoje, da intensificação do trabalho de base. Este muitas vezes vê-se ameaçado pela síndrome do “eleitoreirismo” que contamina partidos de esquerda, mais interessados em se manter no poder do que em promover as transformações sociais, políticas e econômicas acentuadas em seus programas e reivindicadas por sua base social de apoio.

Dois critérios devem nortear, agora, essa conscientização: o vínculo pessoal e orgânico com as diferentes formas em que os pobres se mantêm organizados, e o aperfeiçoamento da democracia pelo compromisso irredutível com a promoção da vida em toda a sua amplitude, desde a defesa do meio ambiente à luta por reformas estruturantes - como a agrária -, que reduzam a desigualdade social e assegurem a todos uma existência digna e feliz.

- Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Paulo Freire e Ricardo Kotscho, de “Essa escola chamada vida” (Ática), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/119225
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