Entrevista exclusiva com Fernando Lugo

O Paraguai subsidia as indústrias de São Paulo”

29/05/2007
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Curitiba

A novidade política no Paraguai se chama Fernando Lugo. O seu nome surgiu recentemente no cenário político paraguaio e já lidera as pesquisas para as eleições presidências no país vizinho que acontece daqui a um ano. Engana-se quem pensa que ele seja apenas mais um desses personagens efêmeros na política. Lugo tem raízes sólidas. Por detrás da sua candidatura está o movimento popular Tekojoja que reúne os principais movimentos sociais do Paraguai.

Fernando Lugo emociona-se quando comenta o abaixo-assinado de 100 mil assinaturas que o fez aceitar o desafio da candidatura. Como a Constituição paraguaia proíbe candidatos vinculados a qualquer instituição religiosa, Lugo apresentou a sua renúncia da condição de bispo ao Vaticano.

Em sua breve passagem por Curitiba, Fernando Lugo concedeu uma entrevista exclusiva para Cesar Sanson, membro do Conselho editorial do jornal Brasil de Fato e do site do Instituto Humanitas Unisinos. Na entrevista, Lugo fala da sua família, da sua vida de estudante, da opção pela vida religiosa até a decisão de assumir a luta política. Expõe o temor de que sua candidatura seja impugnada e o seu desejo de mudar radicalmente o Paraguai. Fala do programa de governo e da necessidade de se rever o contrato com a Itaipu. Lugo, comenta ainda a conjuntura política latino-americana.

Confira a sua entrevista.

Quem é Fernando Lugo?

Fernando Lugo: Eu nasci numa localidade muito pequena, San Solano, local onde moravam no máximo umas 60 famílias. No ano em que nasci, toda a minha família precisou se mudar para uma cidade maior em função da necessidade dos meus irmãos seguirem estudando. Somos seis irmãos - cinco irmãos e uma irmã -, e eu sou o último dos irmãos. A minha educação primária se deu em uma escola religiosa, ao mesmo tempo em que trabalhava nas ruas de Encarnación vendendo coisas, empanadas, alimentos, café Cabral – um café do Brasil – ou seja, o trabalho foi uma das características da família. Quando chegou o momento de decidir-me pelo curso universitário, meu pai queria que eu fosse advogado. Ele sempre quis que algum dos seus filhos fosse advogado, tentou com os maiores e não conseguiu e tampouco conseguiu comigo. Eu queria ser professor e então entrei no magistério e com 17, 18 anos já estava lecionando em uma localidade, Hohenau 5, para mais de cem alunos, cinqüenta pela parte da manhã e cinqüenta pela parte da tarde e creio que ali foi que Deus me tocou - nessa experiência como professor em Hohenau 5. Em 1971, decidi entrar no Seminário na Congregação do Verbo Divino.

 Seus pais acolheram bem a sua decisão?

Fernando Lugo: Não. Não aceitaram. Minha família não é uma família religiosa. Eu nunca vi o meu pai ir a uma Igreja, mas ao mesmo tempo sempre foi uma família muito justa, muito generosa, muito solidária. Não eram praticantes da religião e foi um golpe para eles a minha decisão de ir para o seminário. Mas quero destacar que a minha família sempre foi muito perseguida pelo regime de Stroessner. O meu pai esteve por vinte vezes na prisão...

Vinte vezes?

Fernando Lugo: Isso mesmo. Três dos meus irmãos foram presos e torturados e expulsos do país porque faziam oposição a Stroessner. Eles participavam de uma dissidência do Partido Colorado que não aceitava a ditadura. Meus irmãos foram expulsos em 1960 e apenas 23 anos depois fui encontrar-me com eles, no natal de 1983. Digo isso porque em meu sangue há um sangue da política que foi canalizada para a vida missionária.

Quando decidiu ir para o seminário, qual era a sua idade?

Fernando Lugo: 19 anos. Com o tempo reconciliei-me com o meu pai, um homem de caráter muito forte, ao contrário de minha mãe, uma mulher de um caráter mais doce, suave, carinhosa.

Mas a sua motivação para a vida religiosa vem de onde, considerando-se que a sua família não era religiosa?

Fernando Lugo: Vem de Hohenau 5. Em 1970, quando comecei a lecionar e a ler os evangelhos. O povo dessa localidade era muito religioso e não tinha sacerdote. O sacerdote vinha uma vez ao mês, às vezes a cada dois, três meses, mas as pessoas religiosamente se reuniam todos os domingos e eu participava com eles das celebrações dominicais, leitura da palavra de Deus, comentários, orações, cantos e foi daí que surgiu a minha motivação para a vida religiosa. Foi em Hohenau 5 que Deus tocou em minha vida e ali uma série de questionamentos surgiu, até que no final do ano decidi ir para o Seminário.

Como foi a sua vida de estudante, universitária, na Teologia?

Fernando Lugo: A minha vida universitária se caracterizou muito pela participação no movimento estudantil. Quase sempre fui presidente do centro acadêmico de Teologia em articulação com os centros de outros de outras faculdades, de direito, de engenharia que eram os grupos estudantis aguerridos em Assunção. Após terminar a Teologia fui para o Equador onde fiquei por cinco anos.

O sr. foi ordenado sacerdote em que ano?

Fernando Lugo: Em 1977. Nesse mesmo ano vou para o Equador, trabalhar em paróquias, colégios, nos presídios, com as pessoas do campo e creio que aí acontece a segunda etapa da minha formação, porque no Paraguai nunca tínhamos estudado Teologia da Libertação. No Equador, de 1977 a 1982, se conformou, em 1978, por ocasião da Conferência Episcopal de Puebla – uma coordenação da Igreja dos pobres, do qual eu fiz parte e isso complementou a minha formação, o meu ideal, a minha opção de trabalhar no campo social.

E o Sr. é ordenado bispo em que ano?

Fernando Lugo: Em 1994. Em 1982 eu volto do Equador e por um ano trabalho em uma paróquia no Paraguai. Em fevereiro de 1983 recebo uma ordem de expulsão do Paraguai. A Polícia paraguaia pede ao bispo de Encarnación que, pela segurança do país, eu deveria sair do Paraguai...

Por que razão?

Por sermões altamente subversivos, por atentar contra a paz social e por falar contra o governo... Então nessa conjuntura saio do país e vou para Roma estudar. De 1983 a 1987 fico em Roma até retornar ao Paraguai e então passo a dedicar-me à docência, ensinando, sobretudo Ensino Social da Igreja. Aí já estamos em outra conjuntura. Nessa época trabalhei muito com a Conferência Episcopal paraguaia, como assessor teológico e também como assessor teológico do Celam.

Considerando-se a sua trajetória, não surpreende que o senhor já ligado à Teologia da Libertação seja ordenado bispo? Como se explica a sua ordenação?

Fernando Lugo: Eu tinha uma excelente relação com o episcopado paraguaio, como sacerdote estive trabalhando como assessor do Celam na área do Ensino Social da Igreja. Havia uma garantia institucional do meu trabalho que me deu credibilidade e legitimidade.

O Sr. é ordenado bispo e assume uma diocese...

Fernando Lugo: A diocese mais pobre o país, San Pedro, uma diocese na qual há muitos problemas sociais e econômicos. Até 1994, quando assumi a diocese, em todo o Paraguai houve 112 ocupações de Terra. Dessas 112, 52 foram em San Pedro. Por um lado, é o Departamento de maior número de latifúndios e de outro, o trabalho pastoral social que organizou os camponeses sem terra. Essas ocupações de terra continuaram acontecendo porque os caminhos legais, institucionais, para se conquistar a terra são ineficientes no Paraguai. Para que os camponeses tenham terra no Paraguai, é preciso ir para as estradas, ocupar as terras, morrer dois ou três, para que depois algo seja conquistado. Assim é o processo de luta pela terra em nosso país.

Na sua diocese, muitos conflitos agrários, pobreza...

Fernando Lugo: Quando eu cheguei havia 650 comunidades eclesiais de base; quando saí havia mil. Fizemos lá o primeiro Encontro Diocesano de Comunidades Eclesiais de Base, o primeiro Encontro nacional e o 5º Encontro latino-americano e caribenho de comunidades eclesiais de base em 1997. San Pedro foi notícia eclesial pelo tipo de organização eclesial que mantínhamos dentro da Igreja, de estrutura laical, horizontal, de assembléias diocesanas com muita participação de leigos.

Na seqüência o Sr. assume um novo momento em sua vida que é a luta política institucional. Qual foi o momento decisivo para que o Sr. se decidisse pela política?

Fernando Lugo: Saio da diocese em 2005 e fico pensando que os grandes esforços que se fez através da Igreja, com as pastorais sociais não obtiveram o êxito desejado e me dei conta que as mudanças reais na economia, no social, vêm da política. Então, reunido num grupo de amigos de 12 pessoas, no dia 03 de janeiro de 2006 - um grupo de estudo, de análise, do qual participavam artistas, intelectuais, camponeses, estudantes, pessoas de Igreja para pensar o país - esse grupo foi crescendo, crescendo e se converteu, em 17 de dezembro, no movimento popular Tekojoja que se tornou o movimento político de maior crescimento no país em um tempo tão pequeno. Este grupo é um dos grupos que propugna a minha candidatura para a presidência da República. O grupo coletou um abaixo-assinado de cem mil assinaturas que me foi apresentado em 17 de dezembro de 2006 para que eu me dedicasse à política. Este grupo se converteu hoje, no Paraguai, num dos grupos mais fortes na dinâmica da política do país.

O Sr. renunciou à sua condição de bispo ou o Vaticano o expulsou? O Sr. poderia esclarecer essa situação?

Fernando Lugo: No dia 22 de dezembro de 2006, eu apresento a minha renúncia ao ministério sacerdotal e episcopal na Nunciatura do Paraguai. No dia 25 de dezembro de 2006, eu anuncio publicamente o pedido de renúncia. No dia 04 de janeiro de 2007, a resposta do Vaticano é a de que não aceita a minha renúncia. Posteriormente, vem a suspensão de todo o meu ministério sacerdotal. Hoje, eu sou um bispo suspenso da Igreja Católica de acordo com o Direito Canônico. Por outro lado, o que diz a Constituição Nacional? A Constituição nacional diz que nenhum ministro de qualquer religião ou culto pode se candidatar à presidência e foi em função desse artigo que apresentei a minha renúncia. O fato da renúncia como um ato livre garante, segundo a interpretação dos constitucionalistas, a validez para uma candidatura e, também o artigo 42 da Constituição nacional afirma que nenhuma pessoa pode pertencer a um grupo se livremente renuncia a ele. O gesto da renúncia feito livremente já garante a habilidade para a candidatura.

Mas porque então continua havendo riscos para a impugnação de sua candidatura?

Fernando Lugo: Porque a Igreja Católica, canonicamente, diz que eu continuo sendo bispo. Por quê? Porque o sacramento da ordem imprime “caráter” indelével. Eu jamais deixarei de ser sacerdote mesmo deixando o ministério. Trata-se de um argumento teológico. Porém, em qualquer jurisprudência de qualquer país do mundo, o argumento teológico não tem peso político. O risco é que a justiça paraguaia dê peso jurídico a um argumento teológico. Então eu posso dar peso a um argumento teológico do judaísmo, do islã, do cristianismo? Qualquer estudante do 1º ano de direito sabe que no conjunto de leis de um país, primeiro o que vale é a Constituição Nacional, segundo são os tratados internacionais e terceiro são as leis do país. A lei de uma determinada Igreja não entra nisso. Por isso um argumento teológico não pode ter peso jurídico.

Uma eventual impugnação jurídica de sua candidatura poderia então ser interpretada como um “golpe”?

Fernando Lugo: Sim. E mais do que um “golpe”, uma desqualificação com um argumento equivocado.

E o Sr. avalia que a Suprema Corte pode lhe impugnar?

Fernando Lugo: Sim. É possível e não improvável.

Agora, uma decisão dessas teria conseqüências?

Fernando Lugo: Conseqüências que não se podem medir. Poderia haver uma reação da população, da comunidade internacional. Quando dizem que irão impugnar a minha candidatura eu digo que quero saber com que argumentos, uma vez que os constitucionalistas dizem que estou habilitado.

O sr. não confia na justiça?

Fernando Lugo: Não.

Por quê?

Fernando Lugo: Porque a composição da justiça no Paraguai é resultado de um pacto político e os partidos políticos indicam os seus representantes. Hoje a Corte Suprema da Justiça do Paraguai tem nove membros. Desses nove, cinco são do partido oficialista e quatro são da oposição. Então, não se trata de um problema jurídico, mas sim político, e “politicamente” pode ser decidido num 5 a 4.

O que então pode impedir uma eventual e possível impugnação de sua candidatura.

Fernando Lugo: Exato, associando o fato de que se utilizem do argumento teológico no lugar do argumento jurídico...

E vocês o que pensam em fazer?

Fernando Lugo: Há vários caminhos em que estamos pensando. Um deles é que não se pode prever a reação popular. Eu não posso dizer “isso não vai acontecer” [a reação popular]. Uma esperança foi colocada em marcha, há uma expectativa por grandes mudanças e as pessoas estão conscientes dessa possibilidade de se mudar de governo e se iniciar mudanças a partir das estruturas.

Quem faz parte do movimento Tekojoja?

Fernando Lugo: O movimento Tekojoja nasce quando os movimentos sociais se dão conta de que as suas grandes reivindicações, do ponto de vista social, não são atendidas, não avançam. Quando os sem terra que querem terra vêem a sua luta social sendo criminalizada. No momento em que se processam mais de quatro mil camponeses. Aí, o que se percebe é que ao contrário de conquistarem o que desejam, apenas vêem processos, repressão, expulsões. Isso vai debilitando a luta social. Nesse momento, esses grupos começam a pensar politicamente os seus movimentos sociais e pensam em conformar um movimento político. Nesse movimento político, Tekojoja, a grande maioria são líderes sociais, jovens estudantes, artistas, políticos que não são originários dos partidos tradicionais. Há intelectuais, operários, camponeses...

O sr. será candidato por esse movimento, não necessariamente por um partido?

Fernando Lugo: Ofereceram-me a candidatura tanto a Democracia Cristã, como o Partido Revolucionário Febrerista, mas posso ser candidato pelo Tekojoja, bem como pelo PMAS – Partido Movimento ao Socialismo, um partido novo, de jovens...

Esses partidos não fazem parte do movimento político Tekojoja?

Fernando Lugo: Não, mas fazem parte do que se chama Bloco Social e Popular. Dentro do Bloco Popular está o Tekojoja, a Democracia Cristã, o Partido Revolucionário Febrerista, PMAS, centrais sindicais, estão grupos de bairros...

Todos esses apoiarão a sua candidatura?

Fernando Lugo: Todos apóiam a minha candidatura. São 27 movimentos.

Tivemos informações que alguns desses grupos teriam retirado o apoio à sua candidatura. Isso é um fato? E por que ocorreu?

Fernando Lugo: De retirar o apoio a minha candidatura?

Correto. Informações da imprensa dão conta que dentro desse Bloco grande de apoiadores à sua candidatura teriam ocorrido divergências internas e alguns grupos teriam falado em se retirar. Isso confere?

Fernando Lugo: Há dois grupos grandes. Um grupo é o Bloco Popular do qual participam os partidos de esquerda e, o outro, é a Concertación Nacional, no qual também participam grupos sociais e oito partidos políticos, alguns tradicionais que estão organizando a Concertación Nacional. A Concertación Nacional também me convidou para que fizesse parte dessa articulação. A Concertación Nacional unida teria o poder de garantir o controle eleitoral. Porque o Partido Liberal é um partido centenário, o Partido Pátria Querida, o Partido Unase, Encontro Nacional, País Solidário... são partidos com representação parlamentar que podem oferecer duas coisas: garantir a correta “fiscalização” do processo eleitoral e também governabilidade porque têm muitos parlamentares. O grupo Bloco Popular em alguns aspectos se encontra irreconciliável com a Concertación Nacional. Mas estamos buscando pontos de união. Eu estou me reunindo com a Concertación e também com o Bloco Popular. Hoje, o ponto de concordância entre os dois é a minha candidatura. Eu quero, desejo, que possamos avançar para assegurar a vitória e a governabilidade.

O Paraguai, por um lado, caracteriza-se como um país agrícola e por outro, como um país entreposto de produtos “made in China”. Porém, há indústrias no país. Como o sr. pensa a questão industrial? Qual é o seu projeto?

Fernando Lugo: Nós estamos elaborando o nosso projeto de governo com a participação popular, mas também com a colaboração de empresários, profissionais liberais e uma série de outros grupos sociais. Existem dois grandes grupos industriais que hoje, no Paraguai, vão muito bem. A indústria têxtil, que exporta muito bem, e a indústria farmacêutica. Esses grupos desejam um país sério. Os outros elementos da economia não estão bem. O desemprego é alto, a corrupção é galopante, a administração do Estado é ineficiente. Esses são aspectos que precisam ser corrigidos. Precisam ser corrigidos com um projeto diferenciado. O que queremos economicamente? Passar de uma economia agrária a uma economia industrial? Desejamos um modelo econômico diferente, baseado também na economia camponesa, ou seja, fortalecer as pequenas e médias indústrias, algumas familiares como já existem. Outro desafio é como utilizar os recursos naturais de forma responsável em favor de uma industrialização. O Paraguai tem importantes recursos naturais como a energia, acreditamos que podemos nos tornar num país hidroelétrico, e também a água. Grande parte do aqüífero Guarani está em subsolo paraguaio e neste momento existem pesquisas em busca de petróleo no Chaco paraguaio, ou seja, temos a possibilidade da descoberta de poços petrolíferos que podem impulsionar economicamente o país.

Qual é a participação da Itaipu no PIB nacional?

Fernando Lugo: A Itaipu é um caso especial por ser uma empresa binacional. Os recursos da Itaipu não fazem parte do orçamento nacional. Conforma-se quase como se fosse um superministério. A Itaipu faz escolas, estradas, portos... praticamente se sobrepõe aos outros ministérios...

Constitui-se quase em um poder paralelo?

Fernando Lugo: É um poder paralelo no qual não há intromissão, nem fiscalização de nenhuma outra instituição. Por isso acreditamos que a transparência da administração pública terá que ser um dos elementos diferenciados num provável governo futuro.

O sr. fala em rever os contratos da Itaipu...

Fernando Lugo: Sim. Começamos uma campanha de recuperação da soberania energética. Hoje o Paraguai subsidia os industriais que utilizam a energia da Itaipu, especialmente em São Paulo. 98% da energia é utilizada pelo Brasil que representa quase 20% de toda a energia que o Brasil necessita. Acreditamos que o tratamento dos benefícios da energia não tem equidade e cremos que isso precisa mudar. Isso se pedirá seguramente no futuro para que o governo brasileiro reconsidere os tratados da Itaipu. A energia precisa ser vendida ao seu preço de mercado e não de custo.

Já houve alguma reação do lado brasileiro a essa sua afirmação de se rever o contrato com a Itaipu?

Fernando Lugo: Há duas posturas. De um lado, a reação dos grupos sociais e dos partidos progressistas com quem estive reunido recentemente em Porto Alegre que acolheram com bastante serenidade essa proposta. De outro lado, o Itamarati através do ministro [Celso] Amorim que afirmou que o tratado está bom e que não precisa de nenhuma mudança. Agora, reconhecemos que qualquer mudança do tratado precisa ser discutida por ambas as partes.

O sr. fala em preço de mercado, em preço justo, é isso?

Fernando Lugo: O preço de custo não convém ao Paraguai. Atualmente, o Paraguai recebe US$ 250 milhões ao ano e se a nossa energia fosse vendida ao preço de mercado por apenas 50% do seu real valor, isso renderia US$ 1,8 bilhão ao ano.

Isso se a energia fosse vendida a 50% do preço de mercado?

Fernando Lugo: Sim. Porque se fosse vendida ao real preço de mercado poderia chegar a US$ 3,5 bilhões o que equivale à dívida externa paraguaia e a 50% do orçamento anual paraguaio.

Então é uma briga que vale a pena comprar?

Fernando Lugo: (risos) Sim, mas acredito que depende muito da vontade do governo brasileiro e também dos acordos a que se pode chegar.

E sobre o debate latino-americano das matrizes energéticas. Por um lado, Chávez insiste - em articulação com a Bolívia - num grande gasoduto, por outro lado o Brasil insiste no etanol. Como o Paraguai se posiciona e entra neste debate?

Fernando Lugo: Eu creio que o tema energético é um tema de primeiro nível em todo o planeta. Eu penso que é preciso pensá-lo não apenas do ponto de vista econômico, mas também inserir no debate a questão ambiental. O que significa isso? Há vários problemas, creio eu, que no mundo moderno, o sistema liberal não conseguiu abordar. E um deles é o meio ambiente. Como garantir que o desenvolvimento econômico não se faça em detrimento e deterioração do meio-ambiente? O problema no Paraguai é que apenas a partir de 1996, as leis contemplam delitos sobre o meio ambiente. Anteriormente não era delito ecológico arrasar o meio ambiente. Como garantir que as empresas multinacionais respeitem o meio-ambiente que é um grande tema planetário, especialmente relacionado à geração de energia limpa? Eu acredito que é necessário ir gerando e observando criativamente novos métodos em relação à geração de energia, mas que não vá em detrimento à ética humana e de agressão ao meio ambiente para que tenhamos um planeta mais habitável.

Na América Latina, nós percebemos que após o vendaval do neoliberalismo dos anos 90, novos ventos políticos sopram no continente. Como o sr. interpreta essa “nova” América Latina politicamente?

Fernando Lugo: Nós vemos com bons olhos o fato de que não exista um determinado fundamentalismo de esquerda que caracterizou a década de 60 e 70. Eu creio que existe uma esquerda mais inteligente, uma esquerda que não acredita em mudanças radicais, senão nos processos de mudança gradual e creio que é isso que está acontecendo nos países. Por mais que alguns movimentos sociais tenham as suas críticas, eu acredito que as mudanças na América Latina estão acontecendo, como no governo de Tabaré Vázquez, com Lula no Brasil, Evo na Bolívia... Governos que avançam em mudanças. Mudanças que caminham na perspectiva das grandes maiorias.

Eu vou propor ao sr. um pingue-pongue e gostaria que dissesse o que pensa de algumas lideranças políticas latino-americanas. Pode ser?

Fernando Lugo: Sim.

Chávez?

Fernando Lugo: Um cidadão venezuelano “embandeirado” por Bolívar, a de construir a grande Pátria latino-americana. Com a sua reeleição demonstra que é um líder muito aceito dentro do seu país.

 Lula?

Fernando Lugo: É o líder do maior país da América. Eu penso que a sua trajetória, o seu testemunho, a história de um metalúrgico que chega à presidência... e a sua reeleição é também a garantia da solidez de sua liderança dentro das condições críticas que não faltam sempre em qualquer governo.

Evo Morales?

Fernando Lugo: Apresenta um novo paradigma, um novo ingrediente na política, o étnico, que é um elemento ideológico que aponta para o desejo da Bolívia incluir os que foram esquecidos historicamente.

Michelle Bachelet?

Fernando Lugo: Uma mulher que rompe com o paradigma de liderança machista dentro da política com o ingrediente de gênero e, que ao mesmo tempo, tem a capacidade intelectual e de liderança política para levar adiante o seu país.

Rafael Correa?

Fernando Lugo: Interessante quem é Correa. Cria um novo modo de governabilidade. Eu sempre digo que no Paraguai, no Brasil, o presidente sempre governa com o parlamento, que Chávez de alguma maneira governa com o parlamento e assume o poder em sua pessoa, Correa sem ter parlamentares governa com o povo. Eu creio que é um novo modelo de governabilidade dando participação real e decisão à maioria equatoriana.

Néstor Kirchner?

Fernando Lugo: Para Kirchner, o seu primeiro período não foi muito fácil porque teve que tomar grandes decisões em favor da maioria do povo argentino contrário a grandes forças econômicas mundiais como o Banco Mundial e o FMI e, atualmente também demonstra que a Argentina pode ser diferente com uma liderança forte, sobretudo com medidas econômicas e sociais que tem tomado em favor das maiorias populares em seu país.

Muitos consideram o movimento indígena latino-americano o novo protagonista de mudanças significativas na região, muito mais que o movimento operário. O sr. concorda?

 

Fernando Lugo: O movimento operário, o movimento dos trabalhadores, pelo menos no Paraguai foram cooptados pelo sistema e foram     debilitados. O movimento operário está muito debilitado. As centrais sindicais que já foram determinantes, hoje já não o são. Sem dúvida, o elemento étnico protagonista é o movimento indígena, sobretudo nos países andinos.

 Qual é a sua impressão sobre o EZLN e o MST?

Fernando Lugo: Eu creio que o movimento zapatista é um movimento histórico, “embandeirado” em Zapata, grande revolucionário da Reforma Agrária no México. O zapatismo assume um protagonismo político no México, especialmente em 1994, naquele 1º de janeiro em San Cristobal de Las Casas para se fazer perceber no mundo que é uma região marginalizada historicamente. O que é lamentável são as forças repressivas que agem de forma muito dura contra os zapatistas. Mas eu creio que o movimento revolucionário armado... não sei se tem futuro hoje na América Latina. Eu creio que os elementos de paz hoje são mais fortes para as mudanças. Creio que cada um tem a sua lógica, as suas razões, os seus argumentos para realizarem as suas lutas, mas eu creio que na América Latina, hoje, movimentos revolucionários não têm futuro.

 E o MST?

Fernando Lugo: O MST no Brasil eu penso que é um movimento que acolhe as bandeiras dos excluídos. Creio que em toda a América Latina não é possível falar em mudanças sem ter em conta a Reforma Agrária, o problema escandaloso da concentração de terras, como no Paraguai, por exemplo. Eu penso que o movimento sem terra coloca em debate não apenas elementos reivindicativos, mas sim propostas por mudanças reais e creio que isso é muito positivo.

As eleições no Paraguai acontecem daqui a um ano. Como o sr. está se preparando para essa disputa?

Fernando Lugo: Estamos em um processo de conversa com a população. O que nós queremos é que se Lugo chegar ao governo, o povo tenha o poder, que o povo seja protagonista, que o povo elabore o programa e eu me coloco a disposição desse povo. Eu creio que pode ser uma utopia, mas gostaria que o povo recuperasse o seu protagonismo de poder. A mudança real tem que vir do povo.

Caso o Sr. seja eleito, qual seria a sua primeira medida de governo?

Fernando Lugo: A primeira medida seria tornar a justiça independente, autônoma e soberana e não resultado de um pacto político, dependente dos partidos políticos. Outra, é adotar uma administração honesta dentro do país em todos os grupos sociais, poder também trabalhar um pacto social amplo e poder desenhar um crescimento econômico com equidade social.

Será possível sem rupturas? A elite aceitará mudanças profundas?

Fernando Lugo: As mudanças violentas não garantem paz social duradoura. Queremos que grupos sociais antagônicos possam se sentar e, olho no olho, possam discutir o Paraguai que sonhamos e que é possível construirmos juntos.

O Sr. aposta na mobilização popular como um fenômeno de pressão para fazer as mudanças?

Fernando Lugo: Eu creio que as mobilizações populares, os grupos de pressão, sempre foram uma ferramenta importante e válida na construção de uma democracia duradoura. Não se descarta que as grandes maiorias possam defender os seus direitos de participar e decidir através das mobilizações populares.

Como o Sr. se define ideologicamente?

Fernando Lugo: Em primeiro lugar, creio que a minha formação cristã marca a minha concepção de vida, o desejo de equidade, de igualdade social, de justiça, a busca pelo verdadeiro Reino de paz, de amor. Creio que também carrego elementos de identidade socialista, de alguma maneira sou socialista, assumo elementos do socialismo moderno, sobretudo, aquele que busca a equidade, a igualdade, a não discriminação, a participação social de todos os grupos sociais.

Fonte: Brasil de Fato
http://www.brasildefato.com.br

https://www.alainet.org/es/node/121436
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