Ela os precederá no reino
30/06/2007
- Opinión
Jovem, honesta e trabalhadora, Sirley tem um filho de três anos. É ele a razão do seu viver, de sua alegria. Por ele trabalha, luta, enfrenta a dura vida de doméstica em condomínio de classe média na Barra da Tijuca. O nome do condomínio onde trabalha remete a filmes de Hollywood: Summer dream. No entanto, não é absolutamente um sonho de verão a vida de Sirley.
No sábado 23 de junho, o sonho se transformou em pesadelo. Enquanto esperava o ônibus para ir ao posto médico foi violentamente agredida por um grupo de jovens habitantes do bairro onde trabalha. Estudando em bons colégios, filhos de famílias abastadas, os moços não aprenderam nem decência, nem boas maneiras.
Agrediram violentamente a jovem mulher que seguia o curso de sua honesta e esforçada vida: do trabalho para casa, de casa para o trabalho e, naquele dia, para o posto médico a fim de cuidar da saúde e poder continuar sustentando o filho. A brutalidade e a intempestividade da agressão deformaram e machucaram gravemente o rosto de Sirley. Seus olhos foram tomados por um terrível inchaço e sua pele adquiriu coloração roxa.
A um certo momento a moça pensou que ia morrer. Tomados por verdadeira excitação fruto da própria violência, os rapazes não paravam de bater, de chutar seu rosto, de agredi-la incessantemente. Sirley não compreendia o motivo daquela agressão. Desnorteada, quando enfim eles se foram, voltou à casa dos patrões para pedir ajuda. No rosto, o carimbo doloroso da violência com suas marcas assustadoras.
Alguém com a consciência ainda não totalmente adormecida – um motorista de táxi – anotou a placa do carro dos rapazes e denunciou-os. A polícia conseguiu prendê-los. Interrogados, não tiveram nada mais consistente a dizer senão que pensaram que era uma prostituta e por isso a espancaram.
Talvez fosse melhor que silenciassem. O ato de vandalismo seria menos cruel e provocaria menos indignação. Após essa declaração, ele se inscreve no triste rol dos inúmeros atos de barbárie que o Brasil vem presenciando nos últimos tempos. Aproxima-se em termos de absurdo e maldade descabida da declaração dos jovens da gangue de classe média de Brasília que, ao incendiar um índio pataxó deitado num banco de praça, alegaram pensar que se tratava de um mendigo.
Caros jovens, por onde anda a escala de valores de vocês? Mendigos não são seres humanos, então? Prostitutas não são gente, que têm o direito à vida assegurado e não podem ser agredidas e espancadas impunemente? Se Sirley fosse uma prostituta e não uma empregada doméstica o ato de vocês seria justificável?
Quem são vocês, quem somos nós todos, para apontar o dedo e julgar implacavelmente uma pobre mulher que se encontra no submundo da prostituição? Que descaminhos, que dores, que amores a levaram a vender seu corpo, às vezes para pagar a refeição do dia? Por trás de sua vida está certamente um homem que a explora e fica com a maior parte daquilo que ganha.
Um ser humano que cai na mendicância ou na prostituição não tem de ser espancado, agredido ou queimado vivo. Pelo contrário, deve ser ajudado a recuperar sua dignidade e sair da situação em que se encontra, fruto muitas vezes da injustiça humana da qual somos todos cúmplices.
Assim pensava, assim fazia o rabbi de Nazaré, acusado muitas vezes de sentar-se a comer com prostitutas e pecadores. Naquelas mulheres desprezadas e usadas por tantos, seu olhar compassivo e misericordioso via uma enorme capacidade de entrega, de amor, de solidariedade. Por isso disse aos homens muito religiosos de seu tempo: “As prostitutas vos precederão no Reino de Deus”. Ele certamente também corria o risco de ser espancado pelos jovens vândalos de nossa triste classe média.
- Maria Clara Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
No sábado 23 de junho, o sonho se transformou em pesadelo. Enquanto esperava o ônibus para ir ao posto médico foi violentamente agredida por um grupo de jovens habitantes do bairro onde trabalha. Estudando em bons colégios, filhos de famílias abastadas, os moços não aprenderam nem decência, nem boas maneiras.
Agrediram violentamente a jovem mulher que seguia o curso de sua honesta e esforçada vida: do trabalho para casa, de casa para o trabalho e, naquele dia, para o posto médico a fim de cuidar da saúde e poder continuar sustentando o filho. A brutalidade e a intempestividade da agressão deformaram e machucaram gravemente o rosto de Sirley. Seus olhos foram tomados por um terrível inchaço e sua pele adquiriu coloração roxa.
A um certo momento a moça pensou que ia morrer. Tomados por verdadeira excitação fruto da própria violência, os rapazes não paravam de bater, de chutar seu rosto, de agredi-la incessantemente. Sirley não compreendia o motivo daquela agressão. Desnorteada, quando enfim eles se foram, voltou à casa dos patrões para pedir ajuda. No rosto, o carimbo doloroso da violência com suas marcas assustadoras.
Alguém com a consciência ainda não totalmente adormecida – um motorista de táxi – anotou a placa do carro dos rapazes e denunciou-os. A polícia conseguiu prendê-los. Interrogados, não tiveram nada mais consistente a dizer senão que pensaram que era uma prostituta e por isso a espancaram.
Talvez fosse melhor que silenciassem. O ato de vandalismo seria menos cruel e provocaria menos indignação. Após essa declaração, ele se inscreve no triste rol dos inúmeros atos de barbárie que o Brasil vem presenciando nos últimos tempos. Aproxima-se em termos de absurdo e maldade descabida da declaração dos jovens da gangue de classe média de Brasília que, ao incendiar um índio pataxó deitado num banco de praça, alegaram pensar que se tratava de um mendigo.
Caros jovens, por onde anda a escala de valores de vocês? Mendigos não são seres humanos, então? Prostitutas não são gente, que têm o direito à vida assegurado e não podem ser agredidas e espancadas impunemente? Se Sirley fosse uma prostituta e não uma empregada doméstica o ato de vocês seria justificável?
Quem são vocês, quem somos nós todos, para apontar o dedo e julgar implacavelmente uma pobre mulher que se encontra no submundo da prostituição? Que descaminhos, que dores, que amores a levaram a vender seu corpo, às vezes para pagar a refeição do dia? Por trás de sua vida está certamente um homem que a explora e fica com a maior parte daquilo que ganha.
Um ser humano que cai na mendicância ou na prostituição não tem de ser espancado, agredido ou queimado vivo. Pelo contrário, deve ser ajudado a recuperar sua dignidade e sair da situação em que se encontra, fruto muitas vezes da injustiça humana da qual somos todos cúmplices.
Assim pensava, assim fazia o rabbi de Nazaré, acusado muitas vezes de sentar-se a comer com prostitutas e pecadores. Naquelas mulheres desprezadas e usadas por tantos, seu olhar compassivo e misericordioso via uma enorme capacidade de entrega, de amor, de solidariedade. Por isso disse aos homens muito religiosos de seu tempo: “As prostitutas vos precederão no Reino de Deus”. Ele certamente também corria o risco de ser espancado pelos jovens vândalos de nossa triste classe média.
- Maria Clara Bingemer, teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio, é autora de "Deus amor: graça que habita em nós” (Editora Paulinas), entre outros livros.
https://www.alainet.org/es/node/121996
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