Os desafios do movimento pela democratização da comunicação
- Opinión
É certo que nunca se discutiu tanto comunicação como se discute hoje no país. O cenário, no entanto, não pode ser considerado favorável para aqueles que lutam pelo direito à comunicação. Ele pode ser resumido nas seguintes características:
1) Ausência de regulação e políticas de comunicação: o cenário legal e institucional da defesa do direito à comunicação no Brasil é de terra arrasada. Não há legislação atualizada sobre a radiodifusão (a atual data de 1962), não há limites à propriedade cruzada, não há sistema público de comunicação, as rádios comunitárias são reprimidas diariamente (fecham-se mais rádios do que se autoriza) e o setor privado dita as suas próprias regras. Além disso, não há nenhum tipo de política de incentivo à pluralidade e à diversidade de mídias. Nessas condições, sem a regulação do século XX, o país ainda se vê na necessidade de estabelecer a regulação do século XXI, num cenário de convergência tecnológica e empresarial.
2) Esquizofrenia governamental: desde a entrada de Lula na presidência da República, mas especialmente depois da entrada de Hélio Costa no Ministério das Comunicações, vive-se uma realidade esquizofrênica nas políticas de comunicação. Enquanto o ministério de Costa trabalha com políticas conservadoras em sintonia com o interesse dos radiodifusores, outros órgãos do governo, como o Ministério da Cultura, de Gilberto Gil, e a Radiobrás, presidida até o início de 2007 por Eugênio Bucci, busca a implementação de políticas democráticas. Ainda assim, até o final do mandato, as “bolas divididas” sobraram para o lado do Ministério das Comunicações e dos radiodifusores.
3) Ofensiva da mídia conservadora: do ponto de vista do conteúdo, a grande mídia, que se posicionou contra o Governo Lula nas eleições, continua operando para determinar a sua pauta política, confirmando seu papel como o grande partido político organizador da agenda da direita. A agenda recente inclui, entre outros pontos: o apoio a flexibilização dos direitos trabalhistas, a defesa do corte de gastos públicos e das reformas da previdência, além do embate constante com os movimentos do campo (agravado pela recente ofensiva contra os quilombolas). No último período, acentuou-se a ação reacionária nos temas da comunicação, numa campanha contra as rádios comunitárias e contra o fechamento da RCTV venezuelana.
4) Isolamento da pauta: os movimentos de comunicação não têm conseguido fazer de sua agenda democrática uma luta de todos os movimentos sociais. Como veremos mais à frente, isso é fruto de uma combinação de características, entre elas a dispersão dos próprios movimentos da comunicação e a ausência de direitos consolidados que permita a defesa de uma pauta unitária.
Assim, o momento atual da luta pela democratização das comunicações no Brasil é hoje marcado por três desafios principais: 1) busca de convergências entre movimentos com características e prioridades diferentes, em vez de privilegiar as divergências; 2) a necessidade, em um momento de ofensiva conservadora da grande mídia, de viabilizar a implantação da agenda do século XXI ao mesmo tempo em que luta pela agenda não realizada do século XX; e, ligado a esse segundo ponto, 3) a imposição de se trabalhar por uma agenda positiva em um cenário de terra arrasada, em que não há direitos a serem defendidos, com o agravante de que os movimentos sociais vivem um momento de descenso.
Esses desafios não necessariamente constituem a agenda política dos movimentos, mas são os principais nós críticos a serem desatados. Para examiná-los, este texto irá se focar menos no detalhamento da conjuntura política, e mais na diversidade de atores que lutam pela democratização da comunicação (ou pelo direito à comunicação) no Brasil, buscando compreender suas propostas, lutas, pontos de convergência, logros e retrocessos e as articulações. Para isso, é fundamental fazer um repasse rápido da história desses movimentos no Brasil.
Um breve histórico
A origem da luta pela democratização da comunicação no Brasil está ligada ao momento político em que o mundo discutia, na década de 1970, as propostas discutidas no âmbito da UNESCO – propostas, que, alguns anos depois, apareceriam no Relatório McBride. Até ali, a pauta do combate à censura e a defesa da liberdade de expressão ocupavam um espaço central na luta dos diversos movimentos anti-ditatoriais, mas não existia uma ação organizada pela democratização da comunicação.
Naquele momento, entidades como a União Cristã Brasileira de Comunicação Social (UCBC) e um setor da academia brasileira impulsionaram no país a discussão sobre a necessidade de políticas democráticas de comunicação. O país vivia uma ditadura militar e os impérios privados, especialmente a Rede Globo, cresciam em aliança com os governos ditatoriais. Ali, as propostas não encontrariam nenhuma reverberação no governo, mas pautariam o tema nos setores progressistas, indicando que a democratização da sociedade e a democratização da comunicação eram (como seguem sendo) mutuamente dependentes. Surgem nessa época dezenas de iniciativas de comunicação alternativa, especialmente jornais, que chegam a atingir grandes tiragens.
Na década de 80, os movimentos de rádios livres e comunitárias e a perspectiva de uma nova Constituição (aprovada finalmente em 1988) impulsionam o movimento e fazem ele se organizar, tanto local como nacionalmente. Em 1984, durante a transição do regime ditatorial para o regime democrático, foi formada a Frente Nacional por Políticas Democráticas de Comunicação, que reunia a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), a Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais (Abepec) e várias universidades. A criação da Frente marcava a migração de um movimento que antes trabalhava pela mobilização popular e criação de uma rede de comunicação alternativa para um movimento que passava a atacar pelas vias institucionais centrais, tentando atingir os grandes meios.
Esse movimento, com altos e baixos, seguiria organizado até a Constituição de 1988. Naquele ano, travou-se uma verdadeira batalha na definição do capítulo sobre Comunicação, em que o movimento teve alguns avanços, mas amargou derrotas significativas, como a não aprovação de um Conselho Nacional de Comunicação com caráter deliberativo e os limites impostos para a não-renovação de concessões ou para o cancelamento de outorgas de rádio e TV.
Em 1991, fruto da articulação da Frente, surge o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação, que abarcou entidades acadêmicas, profissionais, estudantis e representações de outros segmentos, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), tendo, durante todo esse período, a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) capitaneado a organização da sociedade civil.
Na década de 90, o Fórum se marcaria como o principal ator na luta institucional pela democratização das comunicações no Brasil. A despeito do fortalecimento do neoliberalismo no país, nesse momento a luta institucional lograria alguns êxitos importantes, como a lei da TV a cabo, em 1995, que garantiu espaço para canais de acesso público – comunitários e universitários – e propôs a infra-estrutura baseada em uma rede pública e única.
Logo após essa pequena esperança, o movimento se desarticulou. No Brasil, as políticas neoliberais tiveram na segunda metade da década de 1990 o seu auge, e a privatização das telecomunicações deu mais munição e contingente para o lado do empresariado (com o tempo, as contradições do sistema de produção capitalista levariam ao embate entre empresas de telecomunicações e radiodifusores, que permanece hoje, ainda que eles cultivem interesses comuns). O FNDC passou alguns anos desestruturado, e a agenda “século XX” começou a se mostrar insuficiente para enfrentar as novas questões.
O final dos anos 90 e começo dos 2000 viu a retomada do movimento a partir da reorganização do FNDC e do surgimento de iniciativas sob diferentes perspectivas, como a Campanha pela Ética na TV – que passou a trabalhar a denúncia dos telespectadores sobre a violação de direitos humanos na mídia –, diversas entidades políticas e acadêmicas que retomaram a bandeira do direito à comunicação[1], ampliando a pauta da democratização da comunicação, e iniciativas de produção independente e autônoma, em especial o Centro de Mídia Independente (Indymedia).
Ao final de
O quadro atual
A esquizofrenia do governo Lula na área da comunicação acabou levando a uma reorganização do movimento e de iniciativas conjuntas, mas encontrou uma resistência conservadora igualmente fortalecida. Frente a esse quadro, é relevante localizar as diferentes iniciativas e relacioná-las com os desafios e nós críticos listados no início a fim de compreender a atual agenda dos movimentos do campo da comunicação.
O papel histórico do FNDC faz dele uma referência fundamental, embora nos últimos anos a articulação não tenha demonstrado a mesma capacidade de mobilização de anos anteriores. Formado em grande parte por entidades sindicais e representativas, o Fórum depende da mobilização desses setores para dar impulso a suas lutas, e tem enfrentado o mesmo problema de desmobilização que afeta movimentos da mesma natureza. Além disso, com a ampliação da pauta, o FNDC passou a não abarcar toda a diversidade do campo que se mobiliza pela democratização da comunicação. Nos últimos anos, a pauta central da articulação foi o processo de digitalização, e ao final de 2006 apontou-se a realização de uma Conferência Nacional de Comunicação[2] como o principal objetivo a ser trabalhado em 2007.
Desde o início da década, tem ganhado força movimentos não representativos, que organizam militantes na luta pelo direito à comunicação. Nesse campo, tem destaque o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, que reúne ativistas de 14 dos 27 estados brasileiros e grupos de atuação mais local, como o Comunicativistas, no Rio de Janeiro, e o Fopecom,
Também têm se fortalecido processos de acompanhamento da programação e controle público da mídia, especialmente com a denúncia de violações sistemáticas de direitos humanos na mídia. A principal iniciativa nesse sentido é a Campanha pela Ética na TV, que reúne a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados e entidades da sociedade civil, como o Conselho Federal de Psicologia. A Campanha, conhecida como “Quem financia a baixaria é contra a cidadania” elabora um ranking mensal com as denúncias recebidas, e tenta atuar diretamente com os anunciantes dos programas, visando convencê-los a não apoiar programas de baixaria ou que violem direitos humanos. Embora tenha perdido um pouco de sua força com a não eleição de Orlando Fantazzini (deputado criador da campanha e membro da Comissão de Direitos Humanos), a campanha permanece tendo importância central.
Já o movimento de rádios comunitárias sofre de uma enorme dispersão, com várias entidades representando diferentes perspectivas e com dificuldades para trabalhar
Além dessas iniciativas, várias outras se juntaram ao campo que luta pela democratização das comunicações por conta do processo de convergência tecnológica, num processo que cria novas questões e demandas. Nesse campo situam-se entidades da área de inclusão digital, como a Rede de Informações para o Terceiro Setor (Rits), da cultura, como o Congresso Brasileiro de Cinema e a Associação Brasileira de Produtores Independentes e de propriedade intelectual, como o Centro de Tecnologia Social da Fundação Getúlio Vargas, que representa o Creative Commons no Brasil. Além disso, multiplicam-se coletivos de iniciativas autônomas, como o Centro de Mídia Independente, que foca na produção colaborativa e compartilhada e vários outros pequenos grupos com a mesma filosofia, ainda que com temáticas distintas.
Os desafios da atuação convergente
Nos últimos anos, o processo de implementação da TV digital no Brasil possibilitou a retomada de iniciativas convergentes entre as diversas iniciativas. No momento em que a pauta passou a ocupar lugar central na agenda do governo, foi criada a Frente por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, reunindo mais de uma centena de entidades, entre elas praticamente todas as com atuação na área da comunicação. A Frente conseguiu pautar o debate na sociedade, fazendo com que o debate não ficasse restrito a questões tecnológicas. Ainda assim, um ponto forte da Frente foi justamente a participação de entidades com perfil técnico, com participação de sindicatos da área, como a Federação Interestadual de Trabalhadores em Telecomunicações (Fittel), que possibilitou que se travasse uma batalha técnica de igual para igual com os radiodifusores. Depois da publicação do decreto que definiu pelo padrão japonês, a Frente perdeu fôlego, por conta da ausência de um horizonte estratégico de curto prazo.
Ainda assim, independentemente do tema da digitalização ter perdido força, nos últimos meses tem havido vários esforços para que as entidades não se dispersem e trabalhem
Já o envolvimento dos movimentos de massa com a pauta da comunicação continua tímido. Embora os principais movimentos (em especial o MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) dediquem vários esforços à construção de meios próprios de comunicação, eles ainda não dão peso à luta por políticas democráticas. Esse fato se deve especialmente a duas questões, de naturezas distintas:
1) A primeira é que o próprio movimento de comunicação não tem tão clara uma pauta comum, o que dificulta a apropriação dessa agenda pelos movimentos que não têm na comunicação sua principal ação. Isso não exime os movimentos sociais de responsabilidade, mas cria um quadro mais difícil para que essa apropriação da pauta se efetiva.
2) A segunda e maior dificuldade para que essa pauta seja apropriada pelos movimentos parece estar no conjunto de algumas características do campo da comunicação e no momento político que vivemos. A Via Campesina avalia que tem havido na história brasileira ciclos de ascensos e descensos no movimento de massas, que em geral antecipam os ciclos de ascensos e descensos da esquerda. Para eles, desde o final da década de 80, estamos numa etapa de descenso dos movimentos, momento em que os movimentos ou lutam contra a redução de direitos (em relação às reformas trabalhistas e previdenciária, por exemplo) ou se baseiam em leis atuais satisfatórias para exigir sua aplicação (reforma agrária e questão indígena, por exemplo). O grande desafio na comunicação é que o cenário é de terra arrasada, e simplesmente não há direito sendo atacado porque não há nenhum direito garantido. Nesse cenário, a pauta é a briga pela positivação do direito e por políticas públicas que viabilizem a sua fruição, enfrentando os gargalos econômicos, políticos, sociais e culturais que impedem sua realização. Entretanto, no momento em que os movimentos estão tendo que se agarrar no que já têm garantido, trabalhar ‘pela positiva’ se torna muito difícil. Uma das poucas lutas ‘de resistência’ possível hoje é a das rádios comunitárias, que têm sido fechadas em ritmo acelerado, e que sobrevivem a despeito da lei limitante.
Esses dois fatores – em especial o segundo – explicam a dificuldade de a pauta do direito à comunicação ganhar a sociedade. Isso não significa que ela não continue sendo central. Apenas indica que, enquanto durar esse período de descenso no Brasil, é provável que não haja engajamento efetivo dos movimentos sociais na luta por políticas democráticas. De qualquer forma, a perspectiva deve ser de manter essa luta e manter o diálogo permanente com os movimentos no sentido de intercambiar pautas e construir ações conjuntas, buscando impulsionar também as lutas sociais gerais.
Para o próximo período, define-se para o movimento de comunicação brasileiro uma agenda que inclui pontos como a necessidade uma nova regulação para as comunicações – que dê conta da agenda perdida do século XX e da nova agenda da convergência do século XXI –, a defesa e o incentivo aos veículos comunitários, a implantação de um sistema público de TV e rádio, a digitalização (especialmente a questão do rádio, ainda em aberto), a democratização do processo de concessão e renovação de outorgas, a constituição de espaços de participação popular na definição das políticas públicas (como uma Conferência Nacional de Comunicações), e a classificação indicativa da programação, além de temas como inclusão digital e flexibilização da propriedade intelectual. Motivos de sobra para o movimento dar conta de suas diferenças e trabalhar de maneira convergente sobre o nós críticos que se apresentam.
* João Brant é membro do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, formado em Rádio e TV pela Universidade de São Paulo, com mestrado em regulação e políticas de comunicação pela London School of Economics and Political Science (LSE).
- Artigo publicado em tradução ao espanhol na revista América Latina en Movimiento, ALAI, No. 421, junho 2007. http://alainet.org/publica/421.html
[1] Entre elas o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, grupo do qual faço parte.
[2] No Brasil, o processo de conferências nacionais tem tradição democrática, como um instrumento de viabilização da participação popular na formulação e decisão sobre políticas públicas. Historicamente, o setor da Saúde foi um dos primeiros a implantá-las e até hoje elas são espaços deliberativos em que a sociedade civil tem a maioria dos delegados.
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