A atualidade de Florestan Fernandes
- Opinión
Quero também ressaltar que para mim é um privilegio partilhar esta mesa com a professora Heloisa Fernandes, que fez uma sua rica e densa apresentação nos apontando os inúmeros caminhos e possíveis leituras.
Eu não sou expertise
Durante os anos 60, quando éramos – professores e alunos – freqüentemente interpelados pelo então chefe da Política Federal do Ceará, Laudelino Pereira, de triste memória, pelo simples fato de havermos optado pelo curso de Ciências Sociais. Laudelino, além de “acompanhar” pessoalmente os nossos seminários de preparação para implementação do curso e, em sua obsessão contra a sociologia Florestan Fernandes e sua obra amiúde, aparecia nos argumentos do chefe da polícia federal sobre o perigo da reflexão sociológica.
– Você lê esse comunista? Indagava ele segurando o programa do curso de Sociologia.
Curiosa, busquei no Instituto de Antropologia do Ceará os livros tão perigosos e comecei a lê-los atentamente. Um dos livros, recordo bem da aridez e da densidade e enquanto eu lia não entendia o porquê de tanto medo e de tanto rancor do chefe da Polícia Federal. Outro se intitulava “Organização Social dos Tupinambá”. Laudelino talvez considerasse que Florestan Fernandes estava nos ensinando como poderíamos nos organizar. O que não representava de todo uma inverdade pois sua monografia nos ensinava a entender a relação dos “seres humanos” consigo mesmo e com os outros.
Cláudio Severino, meu orientando e amigo recentemente, me delegou a incumbência de cuidar de seus livros Florestan Fernandes enquanto viajava e buscava novo um novo lar. Foi a oportunidade para reencontrar, dentre outras coisas, a famosa monografia sobre a “Organização Social dos Tupinambá”. Comecei a relê-lo e as recordações daquela época afloraram. Lembrei-me, por exemplo, que havia descoberto Durkheim – sociólogo proibido porque estaria tão somente preocupado com a coesão social e não com o conflito – nas páginas do Organização. Como as interdições enunciam uma pobreza de espírito, pensei. Ainda bem que Pompeu, nosso professor de antropologia, ignorou as proibições e nos trouxe um Durhkeim das “Formas Elementares da Vida Religiosa”.
Hoje, ao reler o livro de Florestan Fernandes redescubro a riqueza e o rigor epistemológico da noção de organização social por ele desenvolvida. E percebo que poderíamos retomá-la como referência para pensarmos os processos sociais. Diz o autor: “Quanto ao conceito de organização social adotado de fato na interpretação da sociedade Tupunambá, lembro ao leitor de que precisa ser suficientemente amplo e compreensivo, a ponto de permitir uma exploração tão extensa quanto profunda dos dados históricos disponíveis” (Fernandes, 1949:19)
Ou seja, o conceito está em diálogo com os dados históricos. Não é algo fechado, distante e de costas para a realidade, ao contrário encontra-se visceralmente relacionado às situações de vida da população estudada bem como às possibilidades do pesquisador. Florestan Fernandes continua: “Em se tratando de uma tentativa de reconstrução histórica, o número de situações de vida suscetíveis de receberem explicação científica torna-se uma questão de capital importância metodológica” (Fernandes, 1949:19).
Como vimos, o conceito é também construído segundo o ponto de vista adotado pelo pesquisador, no caso, a reconstrução histórica.
A partir do estabelecimento desses pressupostos metodológicos e epistemológicos e de acordo com o ponto de vista adotado no trabalho, Florestan Fernandes, então, define o que entende por organização social. Diz ele:
“(...) encaro a organização social como o conjunto das atividades, de ações e de relações sociais dos sêres humanos em condições determinadas. Tal conceituação abrange todos os tipos de comportamento: a) os comportamentos ligados às formas grupais de adaptação ao meio natural circundante, ao adestramento das capacidades biopsíquicas herdades e à educação dos sentidos; b) os comportamentos subordinados às formas estandartizadas de controle e de ajustamentos recíprocos; c) os comportamentos vinculados aos modos preestabelecidos de pensamento, determinados em grande parte por interêsses coletivos, restritos a certas, restritos a certas categorias, camadas ou classes sociais. Em outras palavras, a organização social de uma sociedade em um momento dado é definida como o conjunto de atividades, de ações e de relações humanas, de caráter adaptativo ou integrativo, ordenadas em uma configuração social de vida” (Fernandes, 1949:19-20)
Quanta riqueza na definição de organização social. Organização é ação, é atividade, é relação social em condições determinadas. Somos nós aqui reunidos hoje neste Encontro. Organização nos remete às nossas heranças, integração, adaptação e também aos nossos interesses coletivos. Organização é “configuração social de vida”.
Em meados dos anos 80, durante a Nova República, retornei a leitura de Florestan Fernandes em especial os seus artigos para a Folha de S. Paulo e o livro “A Revolução Burguesa no Brasil”, como orientação para reflexão sobre a conjuntura da Nova República e sobre a reação e a mobilização dos grandes proprietários de terra e empresários agroindustriais[2]. Foi também quando tive a grata oportunidade de conhecê-lo, em uma de minhas idas à Brasília.
Aprendi, com a leitura sobre a revolução burguesa, uma noção de processo histórico extremamente instigante e rica – porque não cristalizada e dinâmica – e a reflexão sobre o entrelaçamento entre o conservadorismo e a modernidade; entre a antiga e a nova ordem; entre a tradição e a modernidade como “traço” constitutivo da realidade brasileira.
Sobre a concepção de história, diz Florestan Fernandes:
“O que é ou não é histórico determina-se ao nível do significado ou da importância de certa ocorrência (ação, processo, acontecimento, etc.) possua para dada coletividade. O histórico tanto se confunde com o que varia, quanto com o que se repete, impondo-se que se estabeleçam como essenciais as polarizações dinâmicas e que orientem o comportamento individual ou coletivo dos atores” (Fernandes, 2000:1509)
Portanto, histórico é aquilo que uma determinada coletividade considera como tal. Ou seja, são os seres humanos e as pessoas; é o grupo social e a sociedade quem define o que é e o que não é histórico. Histórico, por sua vez, é o que orienta o comportamento de indivíduos e da coletividade.
Com relação ao entrelaçamento entre tradição e modernidade – uma idéia-mestra e fio condutor que perpassa quase toda a obra de Florestan Fernandes – é possível resgatarmos alguns supostos do autor:
- Em primeiro lugar, a idéia de incompletude dos processos históricos e de incompletude dos papéis sociais das classes sociais no Brasil e na América Latina;
- Em segundo, a idéia de lentidão da historia. “Uma história que não caminhou depressa demais”, diz ele em “A Revolução Burguesa”;
- Em terceiro lugar, a noção de uma sociedade “(...) portadora de processos sociais que o passado implica onde as classes e grupos dominantes são particularmente empenhados em manter e em renovar ou modificar para melhor manter” (Fernandes, 1981:17);
- E, por último, o suposto de que “o atraso é produzido e reproduzido pelas próprias condições do desenvolvimento. Nesse sentido, ele é estruturante, isto é, possui um certo significado e tem sustentação social e econômica” (Fernandes, 1981:17).
“Manter, renovar e modificar para melhor manter”, eis um dos fundamentos da dominação e do poder na sociedade brasileira. Fundamento da incompletude dos processos históricos.
Em “Circuito Fechado”, ele nos fala de uma América Latina que:
“(...) luta não só com as seqüelas de estruturas herdadas da era colonial ou da escravidão. E de como o capitalismo competitivo e em seguida o capitalismo monopolista revitalizaram muitas dessas estruturas, requisito essencial para a intensidade da acumulação de capital ou a continuidade de privilégios que nunca desaparecem e de uma exploração externa que sempre muda para pior” (Fernandes, p.4-5).
Ou seja, ele nos fala de uma tradição ressignificada – requisito da acumulação e da manutenção de privilégios.
Em outros momentos, Florestan Fernandes retoma a reflexão sobre o arcaico e o moderno, desta feita trazendo para o debate a idéia de “conciliação” e de “simultaneidade” dos processos históricos diferenciados e complementares.
Segundo ele, nós nos defrontamos com uma história:
“(...) que se recompõe simultaneamente a partir de dentro (pela dominação burguesa) e a partir de fora (pela dominação imperialista), produzindo, constantemente novos modelos de desenvolvimento capitalista que exigem a conciliação do arcaico, do moderno e do ultramoderno. Ou seja, a articulação de antigas estruturas coloniais bem visíveis a novas estruturas coloniais disfarçadas”. (Fernandes, ver).
E adverte, “(...) a crítica sociológica não pode permanecer impassível e ‘neutra’, como vem fazendo, sistematicamente, a analise histórica. É preciso desmistificar esse processo, desvendando-o”.
Por sua vez, encontrei nos textos e artigos de Florestan Fernandes sobre a Nova Republica uma reflexão consistente, densa e rica sobre a transição e a conjuntura daquele momento histórico. Uma reflexão que já anunciava alguns elementos fundantes para compreendermos a conjuntura e a sociedade brasileira hoje, porque apontava para o potencial e os possíveis limites do processo de democratização da sociedade brasileira e ressaltava a permanência de um agir e de determinados traços sociais e políticos, estruturantes.
Florestan Fernandes foi um dos poucos pensadores que se posicionava na contracorrente ao otimismo geral. Para ele, a sociedade brasileira vivia “um momento de ilusão coletiva”[3]. No entanto, considerava compreensível, pois, segundo ele, o movimento das diretas havia desdobrado “o leque de esperanças nas complexas relações do presente com o futuro”[4].
Ao mesmo tempo, ele avaliava que vivíamos um o “momento rico e desafiador”. Uma conjuntura que “torna mais difícil regredir ao arbítrio e à opressão como técnica de conformismo d.irigido [5]“. Contudo, ele não se cansava de denunciar a natureza das alianças políticas então constituídas e mostrava-se cético quanto à possibilidade de a Nova República “minorar” as desigualdades sociais e econômicas. Diz ele:
“Nenhuma República foi gestada tão perversamente na ordem existente – inclusive pela ditadura que entrega os pontos – como esta que agora emerge. Nenhuma República foi tão negociada e tão cupulista, no fino prato da politiquice e do politicismo, que amalgama e revitaliza hábitos políticos que marcaram a Velha República, a malícia varguista do Estado Novo e a atuação do PSD, da UDN, do PTB e de outros partidos de menor expressão que vieram a seguir, e cozido em águas frias às artimanhas dos políticos profissionais[6]”.
Uma de suas principais preocupações foi procurar identificar, naquela conjuntura de mudança e de transição, quais oportunidades poderiam se abrir para a luta política dos grupos sociais “alijados da cena histórica – as classes trabalhadoras do campo e da cidade”[7]. É a partir desta perspectiva que a burguesia aparece no horizonte da reflexão de Florestan Fernandes. Ele identificava dois principais problemas inibidores do poder burguês na Nova República: a) o fortalecimento político das “classes exploradas e subalternas” e b) a ausência de uma sólida base partidária burguesa“[8].
Ele avaliava, corretamente, que o grau de desenvolvimento do capitalismo e a diferenciação de classes
“conferiram peso e voz a estratos sociais que antes eram ignorados ou excluídos (...) que nos últimos vinte anos cresceram em surdina e agora lutam por adquirir expressão forte, pela via de institucionalização de seus meios de ação (sindicatos, partidos, organizações de vários tipos), e a burguesia precisa enfrentá-los em vários terrenos”[9].
Ao mesmo tempo, considerava que a burguesia, apesar do apoio dos militares, se via privada de meios institucionais devido à ausência de uma sólida base partidária[10]. Com base nestes dois pressupostos, ele avaliava que o espaço de manobra da burguesia seria “acanhado” e a retaguarda militar pouco poderia fazer para “aliviar as classes burguesas de seus sobressaltos”.
Além disso, havia uma dificuldade adicional que dizia respeito às relações entre o capital nacional e estrangeiro. “Com o fim do regime militar”, declara Florestan, a burguesia “nacional” perdeu a sua fonte de segurança política diante da “comunidade internacional de negócios”. Como o “estado parlamentar” não garante e não dispõe de mecanismos institucionais para protegê-la com eficácia, temos então uma burguesia “exposta” a um dilema: “ou sai de sua concha estatal autoprotetiva e se torna politicamente ofensiva diante do capital estrangeiro ou se fortalece por vias econômica, transferindo para si as grandes empresas estatais”[11].
Por último, avalia o professor, como a ditadura interrompeu o fluxo de renovação institucional do poder burguês, as elites e estratos dominantes estariam perplexos, pois o estado “herdado da república institucional é deficiente e fragmentado em varias direções políticas” e não mais dispõe da violência repressiva que lhe dava unidade. Desta forma, só resta aos estratos burgueses “ganhar tempo para costurar os diversos apetites que assaltam o estado e restabelecer depressa a normalidade do estado, o que os torna amantes ardorosos da democracia, da legalidade, da constituição, etc.”[12]
Portanto, na conjuntura de transição, “os donos do poder depararam-se com a dura exigência de se reciclarem para novos tempos, nos quais terão de disputar passo a passo a hegemonia de que gozam: chegou a hora e a vez da burguesia aprender a dormir e a acordar com as suas inquietações”, arremata Florestan, para quem a técnica de luta da burguesia deverá apresentar duas frentes: a do poder e a do patronato.
Na primeira, ela buscará “ganhar tempo e simpatia, absorvendo os golpes para devolvê-los mais tarde, (...) enquanto o estado se equipa para conviver com as turbulências e se apresta para se impor como agente da preservação da ordem acima das classes”. Na frente patronal, ela deverá ceder onde for possível, mas “arreganha os dentes e maneja impiedosamente o cacete onde entende que isso se torna estrategicamente necessário ou compensador”[13].
Enfim, tanto no primeiro como no segundo momento em que tive contato com o pensamento de Florestan Fernandes, percebo seus ensinamentos permanecem atuais e se constituem
É comum ouvirmos: “nada mudou!”. O que vivemos é simplesmente a recorrência do passado. Ou então, “tudo mudou!”. Vivemos uma nova configuração social, econômica, política e cultural.
O professor Florestan Fernandes nos ensina superar essa tendência à dicotomia sobre a realidade brasileira que pouco explica e a entender o entrelaçamento entre a tradição e a modernidade como constitutivos de um mesmo processo histórico.
Florestan Fernandes é um clássico e seu pensamento é atual porque ultrapassou o tempo histórico no qual foi elaborado. Rompeu as fronteiras paradigmáticas e os pressupostos a partir dos quais se assentou e nos ensina a entender os processos sociais hoje. Ensina-nos, por exemplo, a compreender a ambivalência da sociedade brasileira e de suas elites econômicas. Entender o oficial e o oficioso, de que nos fala o affaire Renan Calheiros. O discurso sobre a responsabilidade social das elites do agronegócio e a prática do trabalho escravo. O entrelaçamento entre a visão de propriedade como direito absoluto, como se situasse acima da sociedade convivendo com o uso de uma tecnologia moderna e sofisticada no processo produtivo. O lobby e a violência como prática de classe.
Para finalizar gostaria de trazer uma avaliação que ele fez sobre processos históricos em seu livro “Circuito Fechado”. Ao explicar o porquê do título do livro, o professor Florestan Fernandes declarou:
“A historia nunca se fecha por si mesma e nunca se fecha para sempre. São os homens, em grupos e confrontando-se como classe em conflito, que ‘fecham’ ou ‘abrem’ o circuito da história” (Fernandes, 1976:5).
É nossa tarefa como cidadãos e cidadãs que somos contribuir para a abertura do circuito da história.
Obrigada.
Bibliografia
Fernandes, Florestan (1949). Organização Social dos Tupinambá. São Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A (Coleção Tropico, 1).
_______________. (1976). Circuito Fechado. Quatro ensaios sobre o ‘poder institucional’ São Paulo: Hucitec.
_______________. (1981). A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores.
_______________. (1985). Nova República? Rio de Janeiro: Zahar (Coleção Brasil: os anos de autoritarismo).
_______________. (1985). Brasil: Em compasso de Espera. Escritos Políticos. São Paulo: Hucitec.
_______________. (2000) A Revolução Burguesa no Brasil. Ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, (Coleção Intérpretes do Brasil, volume 3).
- Regina Bruno é Socióloga. Professora do CPDA/UFRRJ.
Apresentação proferida na mesa-redonda sobre A Atualidade de Florestan Fernandes durante a Primeira Conferência Vozes de Nossa América realizada em 25 de outubro de 2007 na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
[1] A pesquisa serviu de base para elaboração de minha tese de doutorado intitulada “O ovo da serpente. Monopólio da Terra e Violência na Nova República”. Unicamp, 2002.
[2] Bruno, Regina “O ovo da serpente. Monopólio da Terra e Violência na Nova República”. Tese de doutorado. Unicamp, 2002.
[3] Folha de S. Paulo, 04.02.85. “Novos rumos” (Florestan Fernandes).
[4] Folha de S. Paulo, 16.10.84. Ainda as Diretas (Florestan Fernandes).
[5] Folha de S. Paulo, 21.03.85. O Brasil na encruzilhada (Florestan Fernandes).
[6] Folha de S. Paulo, 21.03.85. O Brasil na encruzilhada (Florestan Fernandes).
[7] Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
[8] Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
[9] Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
[10] Segundo ele, a composição partidária garantira uma retaguarda militar “discreta, mas persistente” à atuação do governo, mas nada tinha a oferecer aos estratos dominantes da burguesia: a ditadura havia cortado a evolução natural dos partidos engendrando um quadro institucional por ele considerado fictício, que contaminara os partidos da ordem (tanto o oficial como o de oposição). Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
[11] Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
[12] Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
[13] Folha de S. Paulo, 24.06.85. Inquietações burguesas (Florestan Fernandes).
Del mismo autor
- A atualidade de Florestan Fernandes 19/11/2007
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