Os agrocombustíveis e a guerra pelos recursos

04/03/2008
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Razões para decisões

Os agrocombustíveis são hoje apresentados como uma medida capaz de reduzir a emissão de gases de efeito estufa, de modo a contribuir para o enfrentamento das mudanças climáticas globais.

Deles, os principais são: o etanol – obtido no Brasil, a partir da cana-de-açúcar e, nos Estados Unidos, a partir do milho – usado no transporte individual; e os óleos vegetais, de origem da soja, girassol, amendoim e mamona, que podem ser usados sozinhos ou mesclados ao óleo diesel fóssil, empregados predominantemente no transporte de passageiros e de cargas.

Vários países, especialmente os mais industrializados, estudam a adoção de metas para aumentar a quantidade desses produtos até antes de 2025. No caso do etanol, essas misturas são pequenas, variando seu percentual entre 5 e 10%. Assim, se for mantida a tendência atual de crescimento da frota de veículos automotores em todo o mundo, no balanço final haverá um aumento do consumo de combustíveis fósseis e, conseqüentemente, de emissão de CO2.

Ou seja, esses fatos indicam que a verdadeira intenção da medida é apresentar uma alternativa que possa justificar a continuidade de um modelo de transporte baseado na utilização de veículos automotivos, especialmente para o uso individual. A expansão da produção e o aumento dos investimentos apontam no sentido dos países do hemisfério sul se tornarem os principais fornecedores de etanol para o mercado internacional. Ou seja, as grandes corporações e os investidores querem aproveitar as vantagens oferecidas por esses países, entre os quais o Brasil, para a produção do etanol: terra e mão de obra baratas; abundância de recursos naturais; disponibilidade de recursos hídricos; clima favorável; e frágil controle institucional – especialmente no que diz respeito à proteção ambiental.

As principais causas e os conflitos

O argumento de que o etanol é um combustível neutro, uma vez que a fotossíntese das plantas utilizadas para sua produção absorve os gases emitidos na sua combustão[1], embora verdadeiro (se considerado isoladamente), acaba por esconder os enormes danos e prejuízos que a sua produção causa do ponto de vista econômico-social e ambiental.

Uma avaliação de sua sustentabilidade deve ter em conta todas as etapas do seu ciclo de produção e consumo, incluindo o modelo econômico e social agrícola, bem como todos os impactos gerados, considerando a quantidade de agrocombustível que se propõe a fornecer, e as experiências acumuladas até o presente. Em todas essas etapas, a guerra pelos recursos se manifesta na luta pela posse e uso da terra enquanto recurso natural essencial, destinado a assegurar a sobrevivência, o emprego e a renda daqueles que nela trabalham, além de atendimento das necessidades de abastecimento alimentar da população, e da produção de matérias primas para o País e exportação do excedente. Manifesta-se, também, na mudança das formas de uso e ocupação do solo, promovidas pela expansão crescente das áreas plantadas pelos agrocombustíveis (em especial no caso do etanol), que acabam pressionando e alterando as áreas de mata natural e áreas de preservação permanente, além dos biomas mais importantes do País, como o Cerrado, o Pantanal e a Floresta Amazônica.

Na área urbana, a luta pelos recursos se expressa na disputa dos espaços das vias públicas pelas diversas modalidades e tipos de transporte: veículos automotivos (incluídas as motocicletas), bicicletas e pedestres, além do conflito entre o transporte público e o privado. As cidades se expandem hoje numa lógica de urbanização baseada no automóvel, e na não priorização do transporte coletivo, aliada à concentração da renda imobiliária. Este modelo é caracterizado por uma contínua expansão urbana – que avança sobre as áreas agrícolas e de preservação – viabilizada tanto pelas camadas de melhor poder aquisitivo, com a construção de condomínios fechados nas áreas sub-urbanas, como pela população de baixa renda que é obrigada a se concentrar nas áreas degradadas e periféricas, desprovidas de infra-estrutura, e que são obrigadas a se deslocar em grandes distâncias, através de um transporte público precário e insuficiente.

Também faz parte desse modelo, a descentralização e fragmentação das atividades da industrialização neoliberal hoje em vigor, que se apropria do espaço público para escoar a sua produção, contribuindo para um tráfego urbano mais intenso.

Essa urbanização, que gera intensos deslocamentos de longas distâncias, é viabilizada pelo transporte automotivo, principalmente individual, sendo responsável pelo elevado consumo de combustíveis e aumento da frota de veículos, cujos efeitos do intenso trânsito (congestionamentos, aumento crescente de acidentes e conseqüências sobre a qualidade de vida e saúde) já superaram os limites suportáveis.

Os modelos

A guerra pela posse e uso da terra vem se agravando nos últimos anos, em conseqüência da existência de dois modelos de agricultura:

De um lado, o agronegócio, caracterizado pela monocultura; produção em grandes extensões; intensa exploração da mão de obra; presença de trabalho em regime de semi-escravidão; usos intensivos de fertilizantes, de origem fóssil e também emissor de CO2; agrotóxicos, venenos produzidos por matérias primas que não se dissolvem na natureza e aumentam a intoxicação dos  alimentos, água e o meio ambiente em geral; e emprego de sementes transgênicas, responsável por graves impactos negativos no meio ambiente.
No plano social, esse modelo gera poucos empregos, ao mesmo tempo em que expulsa da terra os pequenos agricultores tradicionais, em decorrência da expansão das culturas. Também fazem parte do modelo, as grandes propriedades de terra, conhecidas como latifúndios improdutivos, que cumprem o papel de reserva de valor e de especulação – ambos associados à expansão da fronteira agrícola.

No outro extremo, o modelo de agricultura da pequena e média propriedade, baseado na agricultura familiar, cuja produção está voltada para as necessidades alimentares da população e na diversificação dos produtos, orientada pela agroecologia e praticada por parcela importante de camponeses. A agricultura familiar é responsável pela maior parte dos alimentos consumidos pela população brasileira.

Na região amazônica, além do agronegócio – dedicado ao fornecimento de madeira, carne bovina e soja, responsáveis por intensos desmatamentos – há também o modelo de exploração extrativista dos povos da floresta, que se dedicam à pesca, extração da borracha, castanha e aproveitamento das essências naturais.

Tanto os agricultores dedicados à agricultura familiar, quanto os povos que se dedicam às atividades extrativistas na Amazônia estão sendo submetidos à expulsão de suas terras, sendo obrigados a se deslocar para as áreas urbanas periféricas de cidades desprovidas de qualquer condição de atendê-los do ponto de vista de emprego, habitação e infra-estrutura, contribuindo para uma precarização cada vez maior das condições de vida nas cidades brasileiras, e para a geração de graves crises urbanas. Os produtores familiares têm sofrido, nos últimos anos, uma intensa redução de sua renda. Além disto, entre 1985/1995[2], 960 mil pequenos proprietários com menos de 100 hectares foram expulsos de suas terras. É essa realidade que subjaz à luta pela reforma agrária, pela qual o MST tem se empenhado nas últimas décadas: existem hoje, no Brasil, cerca de 150 mil famílias acampadas em áreas próximas a rodovias, enfrentando precárias condições de vida, e permanentemente ameaçadas pelos grandes proprietários de terras e de grandes negócios – seja diretamente, seja através do Estado – levando a confrontos ou tocaias que não raro resultam em assassinatos dos acampados.

O complexo industrial canavieiro, responsável pela produção do etanol no Brasil, segue a mesma lógica e características do agronegócio. Tendo o Estado de São Paulo como seu maior centro produtor, encontra-se em acentuado processo de expansão para outras regiões do País. Suas unidades produtivas, ocupando grandes extensões de terras, concentram um conjunto de atividades integradas, desde o plantio da cana; produção de etanol e açúcar; energia da palha e bagaço da cana pelo sistema de cogeração, para uso próprio ou para serem injetadas nas redes de distribuição de energia elétrica. Sua meta é a de se transformar, progressivamente, em centros energéticos, apoiados também em recursos captados via Mecanismo de Desenvolvimento Limpo - MDL, e produção de agrodiesel.

Os principais impactos

O complexo industrial canavieiro é responsável por intensos e graves impactos que tenderão a se agravar com a expansão da produção do etanol.

Do ponto de vista econômico e social, já tem provocado uma redução das áreas de plantio de outras culturas, com reflexos no aumento dos preços de alimentos, constituindo-se em grave ameaça à segurança alimentar.

Seus trabalhadores vivem submetidos a condições degradantes de trabalho, registrando-se diversos casos de morte por exaustão. Esses trabalhadores são deslocados de regiões distantes do Estado de São Paulo, de onde já foram expulsos de suas terras pelas grandes propriedades.

A expansão das áreas de cultivo tem provocado com freqüência a ocupação e a degradação das áreas de proteção permanente, nascentes e matas naturais, avançando nos principais biomas do país, como a Floresta Amazônia, Pantanal e Cerrado.

O Cerrado hoje, o mais afetado, sofre um desmatamento de 22 mil km² por ano[3]. A região Amazônica, por sua vez, já produz 20 milhões de cana por ano. Cerca de 17% da floresta original não mais existe[4]. Ainda que o ritmo de desmatamento tenha diminuído, em 5 anos foi dizimada uma área equivalente à de Portugal[5]. Os efeitos desse desmatamento, no que diz respeito ao aumento das emissões de gases de efeito estufa, que poderão advir com a expansão do plantio da cana, superam de longe as vantagens que a substituição da gasolina pelo etanol poderão propiciar.

As queimadas de canaviais[6], principalmente no Estado de São Paulo, utilizadas como forma de facilitar e melhorar o rendimento dos serviços de corte durante a colheita, chegam a alcançar 22 mil km²,[7] provocando, durante as estiagens, emissões de poluentes que ultrapassam em muito os padrões de qualidade do ar, constituindo fontes de produção de óxidos de nitrogênio, que contribuem para a formação de ozônio e concentrações alarmantes de Hidrocarbonetos Policíclicos Aromáticos (HPA), reconhecidamente carcinogênicos, além dos riscos a que submetem a fauna e a flora.

A produção do etanol exige um elevado consumo de água (em média 210 litros para cada litro de etanol produzido), tendo provocado escassez em diversas regiões, obrigando à exploração de aqüíferos mais profundos, além de gerar grandes volumes de vinhaça ou vinasse (entre 10 a 15 litros por litro de etanol[8]) – efluentes com elevado potencial poluidor, que provocam contaminações do solo e dos recursos hídricos superficiais e subterrâneos. A alternativa de seu aproveitamento como fertilizante (fertirrigação) mediante técnicas de aspersão tem custos elevados para maiores distâncias e, em áreas reduzidas, aumentam os riscos de contaminação. São também significativos os impactos provocados pelos fertilizantes e agrotóxicos (na sua maioria originados do petróleo) no solo e nos recursos hídricos.

O controle desses impactos, até o presente, não tem sido satisfatório, devido à fragilidade institucional dos órgãos responsáveis pelos licenciamentos e fiscalização, e pelo enorme poder econômico e político do setor, que certamente tenderá aumentar com a expansão da produção.

Na realidade, o interesse dos países industrializados na produção de agrocombustíveis para abastecer os seus mercados é reveladora da continuidade de uma política de crescimento econômico, cujos principais benefícios e decisões concentram-se nos países desenvolvidos, cabendo ao terceiro mundo absorver os custos dos impactos ambientais e sociais.  

A expansão do etanol – a partir da aliança do capital local e estrangeiro, juntamente com o financeiro internacional –  tenderá a se desenvolver nas terras férteis do Cerrado, onde está prevista a construção de mais 70 novas usinas. Muitas dessas usinas serão financiadas pelo BNDES, banco público de desenvolvimento, com recursos de poupança dos trabalhadores. O monocultivo da cana poderá passar dos atuais 6 milhões de hectares,  para 12 milhões nos próximos 4 anos. Para viabilizar a sua exportação, o governo brasileiro, por intermédio de sua empresa Petrobrás e investidores internacionais, está construindo dois alcooldutos, ambos com mais de mil quilômetros. O primeiro, de Cuiabá, estado de Mato Grosso, até o porto de Paranaguá e, o segundo, da cidade de Senador Canedo, estado de Goiás – em pleno cerrado – até o porto de Santos, no estado de São Paulo.

5. A posição do MST

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, e a Via Campesina, que reúnem milhões de camponeses em todo o mundo, lutam por uma nova civilização, baseada numa relação de harmonia entre a humanidade e a natureza, na qual não prevaleça o consumismo e a lógica do lucro e do mercado, que devasta os recursos naturais, concentra a riqueza e o poder nas mãos de poucos, e gera pobreza e desigualdade social. Lutam por uma sociedade baseada na justiça social e ambiental, na igualdade, na solidariedade entre os povos assentada em valores éticos coerentes com uma sociedade voltada para a sustentabilidade de todas as formas de vida.
Tendo em vista esses propósitos, e frente aos dados expostos, O MST e a Via Campesina entendem que a ampliação do uso do etanol como alternativa para mitigar os gases de efeito estufa não constitui uma medida sustentável e, nas condições em que deverá ser produzido, levará a um agravamento dos fatores responsáveis pelo aquecimento global.

Seguem algumas propostas que orientam o MST para o setor[9]:

- que a terra, a água, o sol, o ar, o subsolo e a biodiversidade sejam conservados e utilizados de forma sustentável, prioritariamente para produzir alimentos, proporcionar trabalho e qualidade de vida;

- a produção de energia não pode, de modo algum, substituir ou colocar em risco a produção de alimentos. A agroenergia só deverá ser produzida de forma diversificada e complementar à produção de alimentos;

- combate a qualquer tipo de monocultura, propondo limite de tamanho para as propriedades rurais, bem como para as áreas destinadas à produção de agroenergia em cada estabelecimento, município e região;

- realização de uma reforma agrária de cunho popular, e implementação de um processo de democratização de acesso à terra, como via capaz de garantir a soberania alimentar e a soberania energética. O atual modelo do agronegócio é um processo de contínua concentração da propriedade da terra;

- soberania alimentar e energética baseada na agroecologia e na economia local, o que implica uma agroenergia produzida para garantir a soberania energética do povo, e não para ser exportada com o objetivo de abastecer os países ricos, gerar lucros para o agronegócio e para as grandes empresas privadas e transnacionais;

- um modelo energético sustentável, diversificado e contra o atual modelo de produção de agrocombustíveis que levará à degradação dos biomas brasileiros, principalmente a Amazônia e o Cerrado, pressionando a expansão das fronteiras agrícolas;

- por um novo sistema de transporte que integre suas diferentes formas (fluvial, ferroviário, rodoviário) e privilegie o transporte público e coletivo de qualidade, em vez do modelo insustentável e irracional dependente de petróleo e que privilegia o transporte individual.

 Além destas proposições oficialmente expostas pelo MST, entendemos que cabe ainda destacar:

1. A necessidade imediata de incorporar a produtividade do setor canavieiro nos salários e benefícios dos seus trabalhadores. 

2. Implantar na Amazônia uma política de desenvolvimento sustentável, baseada na conservação, preservação, uso equilibrado das florestas, e no avanço da viabilização das reservas extrativistas, impedindo a expansão da lavoura de soja, cana e a pecuária extensiva.  E adotar sistemas agroflorestais  de exploração de produtos nativos, sem derrubar a floresta, como frutas tropicais, guaraná, castanha da Amazônia, pesca, e o aproveitamento da biodiversidade para produção de remédios.

3. Rever o atual modelo exportador de ativos ambientais e de produtos agrícolas para países desenvolvidos, o que tem legado altos níveis de degradação ambiental, produtos tóxicos e exclusão social nos países do terceiro mundo e em particular no Brasil.

4. Quanto ao consumo de combustíveis, é necessário rever a matriz de transporte e a política de desenvolvimento urbano baseada na concentração fundiária e no transporte individual, implantando-se uma política de mobilidade urbana integrada ao desenvolvimento urbano, de modo a propiciar acesso amplo e democrático ao espaço urbano, contemplando especialmente, pedestres e ciclistas e modalidades de transporte coletivo.

Delmar Mattes
Geólogo, assessor do MST e da Via Campesina Brasil para assuntos de energia e recursos hídricos.



[1] Mesmo considerando, além reciclagem do CO2 , a redução das quantidades de gases de efeito estufa emitidos quando comparada com a gasolina e também, por não conter chumbo  adicionados para melhorar a octanagem. Por outro lado, a combustão do etanol aumenta a emissão de aldeídos, cujos efeitos para a saúde humana e para o meio ambiente, quando combinados com outros poluentes, precisam ser melhor pesquisados.

[2] IBGE,Censo Agropecuário,1995/1996, citado no Anuário Brasileiro de Agroenergia, Gazeta-Grupo de Comunicação,2006.

[3] Novaes,W., Ruim com ele, pior  sem ele, O Estado de São Paulo, 21.12.2007

[4] Escobar, H.,Tragédia: já destruímos 17%, Amazônia- ainda é possível salvar?, Grandes Reportagens, Amazônia, O Estado de S.Paulo,  nov./dez.,2007.

[5] Idem.

[6] Andrade,J.M.F. e Diniz, K.M., Impactos ambientais na agroindústria da cana-de-açúcar. Subsídios para a gestão, ESALQ/2006.

[7] Idem

[8] Neto, A E.,,Processo, Efluentes e Resíduos da  Industria do Etanol, Centro de Tecnologia Canavieira-CTC, Seminário Internacional:águas subterrâneas e  etanol: da produção ao consumo,SP,08/10/2007.

[9] Por Uma Soberania Alimentar e Energética-Posição das Organizações, Movimentos e Pastorais Sociais sobre a Agronergia no Brasil/2007.

https://www.alainet.org/es/node/126075
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