Um manifesto pelo direito de desobedecer
- Opinión
Nos protestos que as mulheres campesinas estão fazendo, celebrando o dia internacional da mulher, encaminham cinco cartas abertas, endereçadas ao Presidente do Tribunal de Justiça do Estado, ao Presidente do Tribunal Regional Federal, ao Procurador Geral de Justiça, ao Procurador Chefe da Procuradoria Regional da República da 4ª Região e à Secretária de Educação do Estado.
É notável o fato de que, em todas essas cartas, as violências das quais elas se queixam, com provas significativas de violações flagrantes dos seus direitos humanos fundamentais, relacionadas com acontecimentos recentes ocorridos aqui no Estado, de nenhum daqueles órgãos públicos administrados pelos destinatários das queixas formuladas, receberam a atenção pronta, cuidadosa e eficiente do serviço público que lhes incumbe prestar ao povo, especialmente o mais pobre.
Junto aos Tribunais de Justiça, entre outras coisas, se queixaram do fato de que os conflitos agrários submetidos a Juízo, nunca ultrapassam o exame superficial do título de propriedade da terra, sem considerar o que a Constituição Federal, o Estatuto da Terra e da Cidade dispõem, a respeito da função social de um bem como a terra, indispensável à preservação do meio-ambiente e da vida de toda a população. Do Procurador Geral de Justiça, que comanda os promotores de Justiça do Estado, além de denunciarem a perseguição sistemática que os mesmos estão fazendo contra as/os agricultoras/es sem terra, cobraram as razões pelas quais não se fornece informação sobre o andamento das denúncias que os movimentos sociais fazem contra os abusos de autoridade praticados contra as suas lideranças e seus outros integrantes, de modo particular pela polícia militar do Estado. Do Procurador Chefe da Procuradoria Regional da República da 4ª Região, exigiram um posicionamento claro sobre a grave ameaça que pesa sobre o território e a gente daqui, no referente às agressões ao meio-ambiente e à pretensão das transnacionais em diminuir a nossa faixa de fronteira, para facilitar a sua avara sede de lucro, em prejuízo da biodiversidade, da terra destinada à alimentação e à moradia.
Para a Secretária de Educação do Estado, as mães campesinas mostraram o irreparável prejuízo que suas filhas e seus filhos estão sofrendo com o fechamento das escolas itinerantes que o MST mantinha. É sabido que tais escolas funcionavam com apoio expresso do próprio Conselho Estadual de Educação, reconhecendo-se o fato de que, por força da própria perseguição que as/os sem-terra sofrem, por parte dos latifundiários, da mídia e do próprio Poder Público, eles têm de mudar de lugar a toda hora. Como se sabe, “em plena luta pela redução da jornada de trabalho para 10 horas (!...), 129 tecelãs da Fábrica de Tecidos Cotton, em Nova York, cruzaram os braços, na primeira greve americana conduzida exclusivamente por mulheres, no dia 8 de março de 1857. Cercadas pela polícia, foram encerradas dentro da fábrica, à qual patrões e policiais atearam fogo. Morreram carbonizadas.”
Pelo jeito, a memória vergonhosa desse fato ainda não sensibilizou o Poder Público do Estado, pela primeira vez governado por uma mulher. Quando esse Poder somente se relaciona com o povo através das violentas repressões da polícia, não é que esteja sendo infiel somente aos fundamentos de um Estado que se pretenda democrático e de direito, entre eles o da cidadania e o da dignidade humana, previstos na Constituição Federal em seu primeiro artigo. Ele está sendo infiel á sua própria origem que não é outra senão a de respeitar a soberania desse mesmo povo, reconhecida no mesmo artigo. É aí que falta a legitimidade para a legalidade, abrindo-se a chance não para a possibilidade, mas sim para o dever de desobedecer, como as mulheres campesinas já fizeram na Barra de Ribeiro e acabam de fazer em Candiota: “Atingir-se-á o “ponto do não direito” quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do Estado e os princípios de justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta pelos direitos humanos, a justiça e o direito - o direito de resistência, individual e coletivo.” [1]
Pelo testemunho dessas campesinas na celebração do 8 de março, o fato de recordarem o martírio massivo e cruel das tecelãs queimadas em 1857, indica que elas conhecem muito bem as causas e os responsáveis por aquelas mortes. Não permitirão que isso aqui se repita, nem sob o fogo ideológico do disfarce com que a opressão costuma passar por “natural” o sacrifício intolerável que ela impõe a quem defende a justiça, a liberdade, a paz e a vida com dignidade .
- Antonio Cechin, 81 anos, irmão marista, advogado, especialista em catequese, e um dos fundadores da pastoral da terra no Rio grande do sul.
- Jacques Alfosin, procurador do Estado aposentado, jurista, advogado dos movimentos populares. Laureado com a medalha Farrupilha. da Assembleia Legislativa do Rio gradne do sul.
[1] CANOTILHO, Jos[e Joaquim Gomes. Estado de direito. Lisboa: 1999, p. 14.
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