A recamponesação no Brasil

Na sombra da imaginação (2)

26/05/2010
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"(...) Mesmo que o espírito esteja calmo,
não deixe o corpo relaxar;
mas quando o corpo estiver relaxado,
não amoleça o espírito."
(Miyamoto Musashi)[1]
 
1. Camponeses: uma reminiscência ou uma promessa?
 
Talveznenhuma das duas, nem saudosismo nem profetismo, ou as duas e outra mais: uma realidade camponesa atual que engloba um terço da população do mundo.
 
Deseje ou não o fundamentalismo neoliberal; suponham ou não os cientistas sociais que se debruçam sobre o agrário; incomodem mais ou menos os setores da esquerda que se apóiam na profecia política da superação dialética dos camponeses pela expansão da empresa capitalistas no campo e a correspondente criação de um proletariado rural; queiram ou não as confissões religiosas que se consagram à misericórdia vendo ou idealizando apenasmente um campesinato pobre e resignado, sonham ou repudiem os românticos das classes médias urbanas com o viver bucólico e de outrora; enfim, a maior parte de nós, e eu no amontoado desse 'nós', de um jeito menos implícito ou mais assumido, vacila sobre as possibilidades de persistência do campesinato num futuro próximo no âmbito das formações econômicas e sociais capitalistas contemporâneas. Essas variadas percepções, tais vontades e desejos, as profecias e tendências, as explicações que se supõem científicas, as leituras miméticas do que se vê e viu nos paises europeus, e a usual e performática análise da conjuntura nacional podem nos induzir a crer (crença na ciência e na superstição, mas crença) que o campesinato brasileiro deve (ria) estar com os dias contados.
 
'Esses dias contados' têm tido uma duração maior do que as supostas nas predições de todos os matizes, apesar da acentuada expansão capitalista no campo no Brasil pós 1950. Mas, também, lá tão longe fisicamente, desde a Revolução Russa de outubro de 1917 até hoje, quase cem anos passados, os camponeses continuam despertando novas (ainda que tão velhas) polêmicas. De fato, desde muito antes e em diversos outros recantos do mundo, os prognósticos sobre o destino do campesinato evidenciam mais e mais que os camponeses são realmente incômodos (a classe incômoda)[2] para todos aqueles que nutrem a expectativa, seja 'cientifica' seja ideologicamente, da sua desagregação e desaparecimento econômico e social. Tantos vaticínios, quantas desilusões...
 
A empresa capitalista no campo, como parte do complexo hoje globalizado e denominado de agronegócio, tem evidenciado 'ad nauseum' (argumentos por repetição) que é absolutamente incompetente para garantir a oferta de alimentos de maneira responsável ecológica e socialmente, menos ainda para dar conta de atender aos requisitos políticos da construção da soberania alimentar nacional. A reprodução dos interesses das empresas capitalistas no campo é antagônica à reprodução da vida sob o ponto de vista da etnoagrobiodiversidade.[3] Ademais, a intencionalidade no usufruir lucros de qualquer maneira por parte das empresas capitalistas ao se apropriarem privadamente da natureza demonstra que é intrínseco do capitalismo, quiçá sua expressão historicamente maximizada, o se reproduzir e acumular a partir da exploração humana e da degradação da natureza[4]. Por outro lado, o proletariado apesar das diversas restrições que tem vivenciado para poder como classe social, enfrentar a duras penas as mudanças neoliberais efetuadas de cima para baixo pelos governos orgânicos aos interesses de classe das classes dominantes. Nesse contexto histórico se pode perceber e sugerir que o proletariado, como classe social fundamental para o enfrentamento do capitalismo e para dar conta das transformações revolucionárias que se pretende, mesmo como utopia, deverá ampliar o elenco de alianças políticas, não somente com o campesinato, mas com outros setores da sociedade que tem se mostrado combativos no âmbito das complexas alterações na estrutura social brasileira. E compreender que na atual correlação de forças políticas vários outros temas se tornaram estratégicos        nas lutas sociais e no processo de acumulação de forças políticas para a superação do modo de produção capitalista, tais como as dimensões camponesa, ambiental, étnica, racial, de gênero e etária.
 
É no contexto complexo dessa abordagem, exposta de maneira esquemática, que eu tenho sugerido se repensar a questão camponesa no sentido da afirmação da sua presença na formação econômica e social brasileira como classe social em construção. E para se abordar criticamente a questão do campesinato contemporâneo, será necessário, senão indispensável, que se incorpore alguns elementos conceituais[5] que dêem conta da proposta de construção da autonomia relativa camponesa perante o capital e da possibilidade efetiva de uma acumulação social camponesa, que seja um pouco mais do que a poupança familiar e um pouco menos do que a plenitude da felicidade.
 
Neste texto, o segundo sob a denominação geral de "Na sombra da imaginação", procuro argumentar que os camponeses brasileiros estão presentes e atuantes como classe social em construção, ainda que plena de contradições, e que a sua reprodução social como classe é contrária ao modo de produção e tecnológico capitalista. Enfatizo, ainda, que os camponeses, na sua tão ampla diversidade, são ou serão capazes de proporem e sustentarem um novo modelo de produção e tecnológico que negando o modelo dominante no campo contribua com na luta social mais ampla para se alcançar transformações sociais no rumo de uma socialização da sociedade brasileira.
 
2. A obstinação camponesa
 
A burguesia agrária no Brasil se expande e se consolida, concentra e centraliza seus negócios, se apropria privadamente das terras devolutas e das públicas, controla e tende a monopolizar a água doce, degrada o meio ambiente, usa e abusa dos produtos geneticamente modificados, pressiona e desagrega o campesinato, se associa com os capitais estrangeiros, se faz dependente do capital financeiro internacional e dos impérios econômicos e tecnológicos setoriais das áreas agropecuária, florestal e alimentar[6] que dominam os mercados de produtos e de insumos --- isso tudo e mais ainda, com o apoio irrestrito das políticas públicas globais e setoriais dos governos[7]. E obtém, pela conjugação de interesses de classe, o respaldo político e ideológico das empresas capitalistas que exercem o controle da grande mídia para disseminar a ideologia de que o agronegócio é vantajoso para a população brasileira e para o Brasil (sic) --- essas generalizações que mascaram as desigualdades sociais, os interesses de classe das classes dominantes, o intencional processo de transformar todas as formas de vida em negócios[8] e o absoluto desprezo pelos outros, por todos aqueles que não se identificam com a exploração, a arbitrariedade, a impunidade e a ignomia. É essa burguesia agrária a responsável direta pelo escarnecer do campesinato insinuando sua obsolescência como produtor rural e asseverando que ele só é eficiente quando subordinado econômica, política e tecnicamente ao agronegócio. E impede a constituição de novos camponeses pela reforma agrária mesmo quando, pela pressão da ação direta dos trabalhadores rurais sem terra, esta se efetiva pontualmente aqui e acolá como política de assentamentos rurais no âmbito do mais conservador reformismo capitalista.
 
A reprodução social da família camponesa enfrenta cotidianamente muito mais dificuldades do que se poderia supor mesmo se considerando uma sociedade onde a desigualdade econômica e social é histórica e crescente, e a exploração e discriminação política dos camponeses é parte da lógica dominante. Essas dificuldades se manifestam sob distintas formas, desde a insistente tentativa de exploração econômica a que os camponeses se encontram submetidos pelas grandes empresas capitalistas, pelos atravessadores comerciais e, indiretamente, pelas tecnologias de interesse do agronegócio que lhe são imposta na maior parte das vezes através do crédito rural, até a discriminação política e social que a ideologia dominante veicula para o grande público abordando pejorativamente a condição camponesa e fazendo apologia ao agronegócio, sem contar os distintos entraves para o acesso camponês às políticas públicas setoriais e aos serviços básicos como saúde, educação e transporte, a sujeição ao mandonismo dos políticos locais e, sem que isso signifique finalmente, a indiferença com que os camponeses são compreendidos pela intelectualidade e dirigentes de grande parte das instituições de centro-esquerda no país. Mesmo assim aumenta o número de estabelecimentos rurais camponeses.
 
É emblemática dessa constante construção dominante de dificuldades para a reprodução social dos camponeses no Brasil a precariedade da educação fundamental no campo. O Censo Agropecuário de 2006 revelou que entre os 12,3 milhões de pessoas trabalhando nos estabelecimentos camponeses (74,4% do pessoal ocupado no total dos estabelecimentos agropecuários), 11 milhões apresentaram laços de parentesco com o produtor e quase 7 milhões (63%) sabiam ler e escrever. Mas por outro lado, existiam pouco mais de 4 milhões de pessoas (37%) que declararam não saber ler e escrever, principalmente pessoas de 14 anos ou mais de idade (3,6 milhões de pessoas). Esses números revelam o abandono a que os camponeses estão submetidos. Mas, não somente eles se considerarmos que mais de 80% dos produtores agropecuários são analfabetos ou não concluíram o ensino fundamental.[9]
 
Não fosse suficiente essa discriminação no acesso à educação fundamental pelos camponeses, num contexto em que as classes dominantes apregoam a inclusão digital, obstáculo similar, mas, numa outra dimensão do acesso aos conhecimentos, é oferecido pelo abandono formal das políticas públicas da orientação técnica necessária para melhorar a eficiência dos processos de trabalho na unidade de produção camponesa. Com exceções para alguns tipos de atividades agropecuárias[10], somente 22% de todos os estabelecimentos rurais recebem orientação técnica, tanto de origem governamental como de empresas privadas. A área média do grupo que recebeu assistência em 2006 era de 228 hectares, enquanto a dos não assistidos era de 42 hectares. Mesmo que a orientação técnica de origem governamental esteja presente para os estabelecimentos com menor área, ela alcança apenas 43% do total dos estabelecimentos assistidos.[11] Essa insuficiência quantitativa dos serviços de orientação técnica governamentais é intencional. Ela faz parte das medidas neoliberais de deixar nas mãos da iniciativa privada das grandes empresas capitalistas transnacionais, que controlam a oferta dos insumos agropecuários e florestais, a prestação de orientação técnica como dimensão coadjuvante dos negócios comerciais e tecnológicos com os produtores rurais. A orientação técnica tendo se transformado num negócio burguês só se implanta onde, como e quando for do interesse das grandes empresas do agronegócio. Daí não se estranhar a seletividade da oferta desse serviço, então reduzido a apenas 22% dos estabelecimentos rurais do país.
 
Se os camponeses são objeto do bloqueio cultural e educacional imposto discriminatoriamente pelas classes dominantes no país, numa repetição patológica da mentalidade escravagista da burguesia agrária, esta diretamente expressa na incidência crescente de casos de trabalhadores rurais em situação similar a de escravos[12] na empresa capitalista no campo, a ideologia dominante reproduz pela cooptação, na prática política da maior parte das direções das instituições de representação de interesses dos camponeses e dos assalariados rurais, um processo de subalternidade que se expressa, dentre outras maneiras, na dificuldade vivenciadas por essas duas classes sociais em estabelecerem alianças sociais na luta contra o modo de produção e tecnológico dominante, ainda que estejam cientes em maior ou menor grau de intensidade da exploração a que são submetidas pela mesma classe dominante: a burguesia agrária.
 
Os assalariados rurais, que politicamente deveriam ser aliados explícitos do campesinato nas lutas sociais pela negação do modo de produção e tecnológico capitalista no campo, têm sido reféns das suas próprias contradições sociais internas onde o desemprego, o subemprego e as situações de emprego em condições similares às de trabalho escravo pressionam negativamente os próprios assalariados rurais com emprego para se restringirem às lutas sociais corporativas, na maior parte das vezes, de conciliação com os interesses das empresas capitalistas do agronegócio, contribuindo assim, mesmo sem intencionalidade, para reforçar a lógica do agronegócio em detrimento do campesinato. É minha sugestão que esse comportamento político corporativo das instituições de mediação de interesses dos assalariados rurais é devido em grande parte à constante pressão por trabalho das massas rurais sem terra e sem emprego. Todavia, esse comportamento conservador é agravado pela ausência de um projeto de sociedade para o campo que motive as direções das instituições de representação dos assalariados rurais para o estabelecimento de objetivos estratégicos de mudanças estruturais que possam desencadear lutas sociais além daquelas meramente táticas, estas aqui sintetizadas na melhoria das condições de trabalho no âmbito das relações sociais de produção capitalistas no campo. Nessa perspectiva, os assalariados rurais se afirmam como categoria corporativamente mobilizada apenas no contexto de uma identidade social reivindicatória e de protesto, sem alcançarem a condição de classe em si pela limitação da sua práxis social restrita às lutas táticas, com reflexos ideológicos na formação da consciência social de classe. Tudo leva a crer que isso é devido à concepção reinante da luta social sem a perspectiva de acumulação estratégica de forças políticas --- e nem de alianças de classe, e ao comportamento já recorrente da maior parte das direções das instituições de representação de interesses de exercitarem a conciliação de classes por conveniência ideológica que os restringem à humanização das relações sociais de produção no capitalismo e à convivência passiva na relação capital-trabalho. Abdicam, assim, da experiência construtiva de uma práxis social a partir da perspectiva das lutas sociais de superação da contradição social antagônica dos assalariados rurais com o capital, no âmbito da expansão do capitalismo no campo, seja na proposição de uma ampla e massiva reforma agrária produtora social de novos camponeses ou na gestão coletiva das empresas capitalistas porventura reapropriadas socialmente pelos trabalhadores do campo.
 
Desejo ressaltar, ademais, que uma parcela considerável tanto dos camponeses como dos assalariados rurais desconfia uma da outra, seja porque uma fração dos camponeses é portadora ideologicamente de pretensões pequeno-burguesas e vêem os assalariados rurais como força de trabalho disponível para as suas pretensões de introdução nas suas unidades de produção da relação social de produção capitalista, seja porque parte desses assalariados considera, no contexto contemporâneo, que os camponeses não têm conseguido expressivas melhorias na qualidade de vida. Uma e outra parte se excluem como possibilidade de se tornarem sujeitos sociais aliados na afirmação de um outro modo de produção no campo que negue o dominante. Aqueles camponeses que se encontram política e ideologicamente aburguesados vêem no capitalismo as possibilidades do presente e um referencial de futuro e, portanto, consideram como normal a produção sob a racionalidade capitalista, a qual contempla como implícita e necessária a relação social de produção de assalariamento; os assalariados rurais, por seu lado, não identificam nos camponeses um potencial de outro modo de produção e de relacionamento com a natureza, tendo em vista que no limite as pretensões dos assalariados rurais são de melhoria de salários e ou busca de novos empregos nas cidades. Isso, com a exceção daqueles assalariados rurais que se engajam nas lutas sociais pela reforma agrária para obterem terras para suas famílias, sem necessariamente terem assumido a perspectiva de se tornarem camponeses.
 
Para que ocorra um avanço da compreensão política e ideológica por parte do campesinato e dos assalariados rurais que permita alcançar a definição conjunta de objetivos estratégicos no âmbito de uma aliança política será necessário e indispensável uma práxis política e ideológica conjunta de luta social no sentido de negar a empresa capitalista no campo e de afirmar um novo modelo de produção e tecnológico para se construir os caminhos políticos de superação da concepção de mundo capitalista. As consequências sociais e políticas da manutenção das tendências atuais de isolacionismo entre os camponeses e os assalariados rurais[13], ambos com grandes dificuldades formulação de políticas estratégicas a partir das suas práxis sociais e, portanto, de construírem um projeto social para ao campo, vão além da exploração capitalista tanto dos camponeses como dos assalariados rurais. Elas têm sido desastrosas para toda a sociedade brasileira pela fragilização dos esforços para se alcançar a soberania alimentar e o poder popular e impedir a crescente apropriação privada da natureza pela capital.
 
Malgrado a desigual correlação de forças no campo entre o campesinato e a burguesia agrária, assim como a presença das contradições secundárias entre camponeses e assalariados rurais, o campesinato no Brasil resiste socialmente, se expande quantitativamente e se constitui no alicerce da vida social rural e urbana ao ser o maior responsável pela oferta de alimentos do país e pela garantia da soberania alimentar nacional, conforme sugerem os dados do Censo de 2006 quando revela que os camponeses, apesar das adversas condições em que se dá a sua reprodução social, respondem por 87% da produção nacional de mandioca, 70% da produção de feijão, 46% do milho, 38% do café, 34% do arroz, 21% do trigo e, na pecuária, 58% do leite, 59% do plantel de suínos, 50% das aves e 30% dos bovinos. A cultura com menor participação da agricultura familiar foi a soja (16%).[14]
 
E cresce o número de camponeses. No Censo Agropecuário de 2006 foram identificados 4.367.902 estabelecimentos camponeses, segundo a Lei nº 11.326 de 24 de julho de 2006 (que dispõe sobre a agricultura familiar). Eles representavam 84,4% do total, mas ocupavam apenas 80,25 milhões de hectares, ou seja, 24,3% da área dos estabelecimentos agropecuários brasileiros. Já os estabelecimentos aqui considerados como não camponeses representavam 15,6% do total de estabelecimentos e ocupavam 75,7% da área total ocupada por todos os estabelecimentos rurais do Brasil. Pode-se constatar que houve um aumento 6,5 % no número de estabelecimentos na década de 1995/96 a 2006, passando de um total de 4,8 milhões, em 1996, para 5,2 milhões unidades, em 2006.[15] E essa ampliação no número de estabelecimentos deu-se principalmente nos estratos de áreas inferiores a 100 has. Tudo leva a crer que no âmbito da resistência social camponesa é possível se identificar mais do que a obstinação camponesa de permanecer na terra[16]. Sou inclinado a supor que estamos perante um processo, ainda que incipiente, de recamponesação no Brasil, seja pela expansão da fronteira agrícola seja pela reforma agrária.
 
3. As voltas que o mundo dá
 
Apesar das inúmeras dificuldades econômicas e políticas enfrentadas pelos camponeses, da cruel manipulação ideológica exercida pelas grandes empresas capitalistas de comunicação de massa na desqualificação dos camponeses, dos desencontros entre as classes populares no campo e da indiferença da esquerda política brasileira perante o devir camponês, cresce e se faz cada dia mais presente o campesinato no Brasil. Posso sugerir que a importante resistência social que parcelas das classes populares, e suas instituições de representação, conseguem concretizar contra a expansão capitalista neste país, tem no campesinato e nos trabalhadores rurais sem terra um constante e sempre presente combatente. Sendo o campesinato uma unidade de produção familiar, ele nega a relação social de produção capitalista e cria as condições objetivas e subjetivas para se constituir, pela sua expansão e novas formas de cooperação na produção, uma das mais importantes possibilidades de alocação de força de trabalho no campo, tanto de pessoas do próprio campo como da cidade, ao mesmo tempo em que consolida, juntamente com as lutas sociais dos povos indígenas, dos quilombolas, dos extrativistas e dos ambientalistas, o amplo leque de iniciativas populares de reapropriação social da natureza contra a apropriação privada da natureza pelo capital.
 
A ideologia dominante e a intencionalidade e as práticas dos governos no Brasil contemporâneo têm sido de incitamento à hegemonia do agronegócio. Isso quer dizer, em outras palavras e para o período pós 1960[17], o apoio explícito e implícito a favor da dominação da grande empresa capitalista sobre as demais classes sociais no campo[18], da adoção generalizada dos organismos geneticamente modificados (OGM)[19], da abertura indiscriminada das terras rurais brasileiras à posse e domínio das empresas transnacionais, da tolerância "in extremis" da degradação do meio ambiente pelo desmatamento e pela utilização indevida dos solos e da água doce, do uso de insumos agropecuário e florestal de origem industrial, do desaparelhamento do Estado[20] para servir ao livre negócio das empresas privadas e, enfim, mas não finalmente, da tolerância odiosa perante a exploração dos trabalhadores e a desagregação por eles anunciada do campesinato brasileiro. Mesmo que os governos brasileiros, em obediência servil às disposições do Fundo Monetário Internacional – FMI e ao Banco Mundial, tenham instituído políticas compensatórias para amenizar as mazelas das reformas estruturais neoliberais, como nos querem domesticar ideologicamente o BID e o PNUD[21] quando afirmam, sem pudor algum, que "(...) A reforma social que se propõe é um complemento inelutável e essencial das reformas econômicas (neoliberais – HMC), toda vez que propõe garantir a viabilidade política e social das mesmas. A lógica essencial da reforma social é a participação, posta em termos de acesso de toda a população às oportunidades econômicas em condições que equilibrem a produtividade crescente e a equidade"[22], tais políticas compensatórias só otimizam política e socialmente a consagração do processo de expansão da acumulação capitalista no país. E, sempre mais e pior, os processos de 'acumulação via a espoliação'[23] que tem na apropriação privada da natureza pelo capital transnacional um dos seus pontos fortes.
 
Não obstante a negação do campesinato pelas empresas capitalistas do agronegócio que desejam se apropriar das suas terras e obterem o controle total tanto da produção, como da distribuição e do beneficiamento dos alimentos que compõem a dieta alimentar do povo brasileiro, numa tentativa insana de, ao mesmo tempo, estabelecerem uma dieta alimentar a partir de produtos industrializados e artificializados e de romperem com qualquer tentativa de se alcançar a soberania alimentar do país, os camponeses desempenham papel fundamental tanto na oferta de alimentos para o consumo popular (conforme comentado anteriormente) como na garantia de oferta de ocupações agrícolas. Ainda que tenha ocorrido uma redução do número de ocupações agrícolas em aproximadamente 1,5 milhão, passando de 17,93 milhões em 1995/96 para 16,41 milhões de ocupações em 2006, é nos estabelecimentos camponeses com menos de 50 hectares que se registraram ocupações agrícolas de 11,7 milhões de pessoas, ou cerca de 70% do total do pessoal ocupado na agropecuária brasileira em 2006[24]. Ora, se confrontarmos o pessoal ocupado por 100 has dos estabelecimentos camponeses com os das empresas capitalistas constata-se que, em média, cada 100 has de estabelecimento camponês proporciona 15,3 ocupações agrícolas, enquanto que para a mesma área o estabelecimento da empresa capitalista apenas oferece 1,7 ocupações agrícolas.[25]          
 
As grandes empresas capitalistas geram o mínimo possível de ocupações agrícolas, tendo na grande escala de produção de 'commodities', na especialização dos cultivos e criações, na tecnologia gerada pelos grandes conglomerados multinacionais, no crédito rural trazendo politicamente já implícita (pela prática histórica) a securitização das dívidas e na mecanização a base efetiva da sua lucratividade. A mecanização contribui de maneira significativa para a redução da oferta de ocupações agrícolas, num país em que o desemprego e o subemprego clamam por novas dinâmicas na organização da economia (mudanças estruturais) que possam ser capazes de realizarem a redistribuição de renda e a redução da penosidade do trabalho. Ainda que os números sobre a mecanização obtidos pelo Censo de 2006 aparentem ser tímidos, Teixeira[26] atenta para o papel da terceirização no uso de tratores. "(...) Em 31 de dezembro de 2006, 530 mil estabelecimentos (10,2% do total) tinham tratores, num total de 820 mil unidades. Em relação a 1995-1996, houve incremento de 20 mil unidades, 2,6%. O aparente pequeno aumento na realidade é explicado pela substituição de tratores de menor potência (menos de 100 cv) por tratores de maior potência: em 1995/96, 674 mil tratores (84,3% do total) eram de menos de 100 cv. Em 2006; a categoria de 100 cv e mais somou 250 mil unidades, aumento de 99,4% nesta categoria. Do 1,56 milhão de estabelecimentos que declarou utilizar força mecânica, apenas 59,6% usavam força de procedência própria. Do total, 30,9% (484 mil) declararam usar força mecânica de serviço contratado com o operador; 5,3% cedida por terceiros, 6% cedida por governos, 4,7% cedida por empreiteiros, 4,1% de uso comunitário e 3,4% advinda de aluguel. Os números indicam o incremento da terceirização na mecanização da agropecuária, e que apenas o total de tratores existentes nos estabelecimentos não pode ser usado para explicar os avanços da mecanização rural."
 
A concentração da terra, a especialização na produção, a mecanização intensiva, o uso indiscriminado e a impunidade na degradação dos recursos naturais são fatores que permitem às empresas capitalistas superar a baixa rentabilidade obtida por hectare por ano se comparada com a rentabilidade camponesa. Enquanto um hectare da unidade de produção camponesa obtém R$ 677,00 por ano de valor bruto da produção (VBP), numa área similar a empresa capitalista alcança um VBP de R$ 358,00. É, portanto, a grande escala que proporciona à empresa capitalista a lucratividade desejada pela aplicação do seu dinheiro. Nos territórios onde se expande a empresa capitalista há forte redução da agrobiodiversidade e, nela, da vida social. Tais territórios, vazios de pessoas, vão rapidamente se tornando espaços apenas para a produção de mercadorias, desarticulando e eliminando comunidades camponesas, vilas rurais e reorganizando a infraestrutura para servir apenas às interesses privados da circulação de mercadorias. Os territórios sob o controle do capital são apenas espaços geográficos monótonos, homogêneos e sem dinamicidade, seja ela humana seja aquela proporcionada pela agrobiodiversidade.
 
É minha sugestão que os estabelecimentos camponeses --- aqueles aqui considerados com área menor do que 100 has, se constituem na referência política e social para a ampliação da oferta de possibilidades de novas ocupações agrícolas, o que se reveste da maior relevância no âmbito do enfrentamento das situações crônicas de subemprego e desemprego no país. A ampliação do número de camponeses pela reforma agrária ampla e massiva, e não simplesmente através de uma política pública de assentamentos rurais ocasionais, contribuirá significativamente tanto para a consolidação da economia camponesa no país e, portanto, reforçar um modo distinto do dominante de viver e de produzir que se mostre mais condizente com uma melhor relação homem-natureza, mais adequado para a socialização no campo e que seja capaz de proporcionar a alocação produtiva da força de trabalho sem a sua inserção em relações sociais de produção onde impera a exploração, como o assalariamento, e proporcionar qualidade de vida para milhões de famílias de inúmeras comunidades das periferias urbanas que hoje se encontram em situação precária tanto em relação à obtenção de renda como de qualidade de vida familiar.
 
E como a unidade de produção camponesa é muito mais do que a produção, sendo a base da reprodução social da família, nela se instaura uma rede complexa de relações sociais internas e externas à unidade de produção sem a presença da relação social de produção capitalista, além de uma imersão e convívio com a biodiversidade, tornando sua área de produção, sua vizinhança e as comunidades com a qual se relaciona elementos importantes para a constituição do território camponês e o resgate e manutenção da agrobiodiversidade.
 
4. A modernidade camponesa
 
A expressão 'modernidade' foi apropriada pelo capitalismo que deu a ela uma significação plena de vieses de tal forma que hoje se subentende, a partir da ideologia dominante, que modernização é sempre um processo de inovação tecnológica, sendo a 'pessoa ou empresa mais moderna' aquela que se apropria de qualquer mercadoria rotulada de 'último modelo' e apresente certo grau de sofisticação. Essa atualização continuada e crescente na oferta de novas e diversificadas mercadorias subalterniza as pessoas às exigências de inovações tecnológicas, no âmbito da desvairada concorrência capitalista, a qual é indispensável para o empresário burguês garantir o lucro que almeja sempre igual ou superior ao lucro médio. Para tanto é necessário que os meios de comunicação de massa, as escolas, os programas governamentais, as religiões e mesmo a cultura de um povo estejam hegemonizadas pela lógica do consumismo, pela idolatria do mercado[27], que faz do consumo de mercadorias o reino da felicidade humana. "(...) os homens da opulência não se encontram rodeados, como sempre acontecera, por outros homens, mas mais por objetos... O amontoamento, a profusão revela-se evidentemente como o traço descritivo mais evidente... No amontoamento, há algo mais do que a soma dos produtos: a evidência do excedente, a negação mágica e definitiva da rareza, a presunção materna e luxuosa da terra da promissão (...)" [28]. Diria eu que esse 'reino da felicidade pela posse de mercadorias' é produto ideológico da consciência feliz das massas[29], como consequência da reprodução da hegemonia burguesa entremeando consenso e coerção, e que tem conseguido manter as massas populares numa situação alienada dos processos de exploração em que se encontram submetidas e as fazem portadoras de um senso comum que as tornam subalternas à dominação capitalista e à sua concepção de mundo. Essa modernidade burguesa que cultua a mercadoria, entre elas o dinheiro, é resultante da reprodução da acumulação capitalista que se aportou benefícios para muitos povos trouxe, também, muita miséria, espoliação, medo, subalternidade e alienação para a maioria da população mundial. Essa modernidade tecnológica é dominante. Ela exclui outras formas de se relacionar com o mundo, de se fazer presente na construção e revivificação material dos povos. Porque dominante, essa modernidade capitalista fetichisa a tecnologia, faz dela algo próprio --- da burguesia, que só ela tem acesso aos seus segredos. "(...) O surto tecnológico das regiões ricas de cada época não foi motivado por nenhuma lei da história, mas resume o dado circunstancial de que a desigualdade do poder econômico e da expansão cultural entre as sociedades humanas institui condições objetivas capazes de afogar o gênio criador dos indivíduos de outros grupos étnicos. Retira-lhes efetivamente o direito de acesso aos bens do saber e da produção, pertencentes ao patrimônio da civilização, de que necessitariam para verem reconhecidos pelos mais adiantados com o caráter de técnica os produtos da invenção de seus sábios e grandes empreendedores. A ideologia do colonialismo usa neste particular do ardil de revestir com as insígnias de lei da história o que não passa de simples contingência do fato. Para isso, um dos recursos obrigatórios graças aos quais a consciência do dominador se impõe --- na verdade se defende, é ignorar as descobertas científicas, embora de caráter empírico, realizadas pelas sociedades menos desenvolvidas, assim como o valor das técnicas práticas pelas quais alcançam o relativo controle das condições naturais onde vivem (...)." [30] Por que, então, não podemos falar de uma modernidade camponesa, de uma insurgência contra o monopólio do saber exercido por parcelas das classes dominantes, revolução cultural essa capaz de resgatar e valorizar os saberes dos 'sábios e grandes empreendedores' populares?
 
Supor uma modernidade camponesa é fazer aflorar e gritar (resgatar a voz sufocada) alardeando os saberes e práticas técnicas daquelas populações cujos saberes e práticas foram desqualificados pela ideologia dominante. "(...) Nosso grito é uma recusa à aceitação... Uma recusa a aceitar a inevitabilidade da desigualdade, da miséria, da exploração e da violência crescentes. Uma recusa a aceitar a verdade do falso, a aceitar o término..." [31]. Os saberes e práticas tecnológicas (mas não somente) camponeses têm sido diuturnamente desqualificados, omitidos, calados num processo histórico de ocultamento do jeito de produzir e de viver camponês. Por que a expansão capitalista no campo se faz a partir de um modelo de produção e tecnológico que considera a natureza e a vida como uma mercadoria, torna-se difícil suportar outra possibilidade de se relacionar com o mundo, como a camponesa que interage com a natureza não apenas para a produção, mas como coevolução social e ecológica[32]. Há, sim, uma modernidade camponesa em construção a partir da adoção de conceitos, técnicas e práticas de resgate e sustentação da biodiversidade ecológica sociocultural e dos princípios gerais e da tecnologia da agroecologia, da agricultura orgânica, da biodinâmica, da homeopatia, das plantas medicinais, dos microorganismos eficientes (EM), da permacultura, da agricultura ecológica, do pastoreio racional Voisin - PRV e diversas outras concepções e técnicas onde se enfatiza a relação harmoniosa e criativa homem-natureza. Saberes tecnológicos permeados de novas maneiras de relacionamento social, de interação comunitária de convivência crítica com a TV, com a internet, com a computação, com os desvendamentos da genética, da nanotecnologia, das viagens espaciais, com a globalização dos movimentos sociais em todo o mundo, com as viagens internacionais, com a diminuição física das distâncias...
 
A construção da autonomia camponesa perante o capital e no capitalismo requer que os camponeses brasileiros (e além fronteira) compreendam e pratiquem um outro modelo de produção e tecnológico muito distinto daquele dominante e imposto pelas grandes empresas capitalistas transnacionais. Não como alternativa paralela ao dominante, mas como negação do modelo de produção e tecnológico capitalista. Esse outro modelo de produção e tecnológico camponês já está sendo implantado há várias décadas em diversas regiões do país. Tem como base a família camponesa na sua plenitude (família singular, grupo doméstico, parentescos e compadrios...), nas suas interações com a comunidade rural em constante mudança social, nas suas formas de cooperação, na sua capacidade crítica de se relacionar com o científico e com a academia, assim como com os programas governamentais e mesmo com a iniciativa privada burguesa. Busca garantir, sobretudo, não apenas a reprodução social da família, mas, também, a soberania alimentar nacional e a construção do poder popular. E produz matérias primas para as agroindústrias que se deseja sob o poder popular. E interage com diversos sujeitos sociais (povos indígenas, quilombolas, extrativistas, ambientalistas...) que tem no acesso à terra e ou na natureza o seu objeto privilegiado de relação não apenas de produção, mas, também, de preservação ambiental e da etnoagrobiodiversidade.
 
Considero que o elo condutor da modernidade camponesa está no seu objetivo estratégico de reapropriação social da natureza contra a apropriação privada da natureza pelo capital. A modernidade camponesa vai muito além daquela que nos é imposta pelo capitalismo para o campo. Na modernidade camponesa não há lugar para a exploração do trabalho alheio nem para a degradação ambiental. Seu fundamento é o trabalho familiar qualificado e potencializado por meios de trabalho que superem o trabalho penoso e a limitação da força de trabalho familiar e propiciem a recuperação e novas proposições de formas de cooperação que superem os esforço singular das famílias e a posse de áreas de terra limitadas. Não é o acesso à internet, à ciência burguesa ou a dependência do Estado que dá vida e pujança à modernidade camponesa, mas sim, e antes de tudo, o convívio amoroso e construtivo com a étnoagrobiodiversidade. Isso não significa que os camponeses deixem de usufruir daquelas conquistas civilizatórias hoje presentes, mas as incorpora nas suas cotidianidades criticamente, com a capacidade de discernir entre o usufruto desejável e a dependência com relação às novas mercadorias.
 
Há muita inovação tecnológica no âmbito da modernidade camponesa. E as descobertas são produtos articulados das práticas e saberes empiricamente acumulados com o constante aprendizado formal e informal, da busca incessante de novos e variados conhecimentos. Há, sem dúvida, diversas limitações nessas intenções e iniciativas, parte delas devido ao peso histórico das suas mesmices e consequência inevitável das suas subalternidades.
 
Por vezes, ao se olhar criticamente a modernidade camponesa se tem a impressão de que se está retornando aos tempos de outrora onde a relação entre família e a natureza teria sido construída mais próxima da acepção do que hoje se denomina de 'coevolução social e ecológica'. É importante atentar para as rupturas tecnológicas que tem ocorrido, e nem sempre desejadas, e devidas às mudanças sociais e aos desafios que os camponeses têm enfrentado objetiva e subjetivamente no âmbito da formação econômica e social brasileira sob o domínio do modo de produção capitalista. Ao se mirar para o passado recente ou mesmo o mais longínquo, deveríamos atentar para a constante exploração a que os camponeses tem sido submetidos, ao seu eterno servir a outras classes sociais que lhe subalternizavam, à ausência de liberdades para sistematizarem e usufruírem os seus saberes e práticas tecnológicas propriamente camponesas e à sua constante desqualificação como possíveis portadores de propostas para superar a exploração social no campo que não fosse o suposto viés pequeno-burguês se encolher ensimesmado no seu lote ou no seu pedaço de terra. É relevante ressaltar que o saber tecnológico contemporâneo tem sido imposto de fora, pelo outro, em nome da modernidade burguesa. O desejo de 'ter a sua terra' ou o acesso a ela é sublimado pelos camponeses, pela família camponesa, como uma forma efetiva de libertação porque a terra nunca lhe pertenceu, ou esteve sempre ameaçada de expropriação, e ela é o meio de produção fundamental para que as famílias camponesas existam como produtoras rurais. A terra camponesa se constitui no espaço indissociável de reprodução social da família e de construção das suas socializações com seus vizinhos, na comunidade e em outras interações sociais nos seus tão distintos tempos e espaços físicos e culturais. Essa luta pela terra, 'sua terra', sempre foi vista com desconfiança pelos setores mais avançados politicamente no âmbito das propostas de revoluções socialistas, e não sem razões políticas e ideológicas. Mas, não se matizou essa aspiração camponesa com o tempo de cativeiro a que foram submetidos. Por vezes se reconhece na história os curtos períodos de revoltas e de revoluções camponesas, mas tais ocorrências não foram suficientes para os camponeses se afirmarem como classe social e como sujeito social de transformações sociais lado a lado das outras classes sociais populares e, em especial, do proletariado. Devido a interpretações históricas de classe, na maior parte das vezes a partir do proletariado, se tornou desconfortável supor que o campesinato pobre e tornado miserável pela exploração a que foi (e é) submetido poderia aportar saberes e práticas capazes de construírem novas maneiras de produzir no campo que fossem compatíveis com as socializações necessárias e desejadas.
 
Na contramão de algumas dessas interpretações por vezes insuficientes o campesinato contemporâneo e, mesmo os sem terra na luta pela terra, já conseguiu sistematizar seus saberes e práticas de produção e de organização social cooperada, assim como formar não apenas seus dirigentes, sua juventude e seus quadros, como uma considerável intelectualidade técnica e política que criou condições do enfrentamento acadêmico, político e ideológico com a ciência e a tecnologia oficial na afirmação de um outro modelo de produção e tecnológico distinto e negador daquele hoje dominante. É nessa perspectiva que se deve pressupor uma práxis de orientação técnica a favor dos camponeses de maneira que os próprios técnicos sejam antes de tudo educadores populares e tenham assumido, juntamente com os camponeses, a negação do modo de produção e tecnológico dominante. Isso porque a orientação técnica para os camponeses não deve ser neutra, muito ao contrário, ela deve se tornar um instrumento do conhecimento facilitador da construção de uma nova relação homem-natureza em que a afirmação da agrobiodiversidade, da soberania alimentar e do poder popular seja mais do que uma intenção, que se concretize como um compromisso político de superação do capitalismo na práxis da reprodução social do campesinato. Isso significa, deveras, enfrentar a ideologia dominante do agronegócio, hoje parte importante da concepção de mundo que move a expansão capitalista no campo. A negação do modelo de produção e tecnológico dominante no campo não pressupõe o isolamento dos camponeses da ciência e da tecnologia contemporâneas, mas sim a crítica das inovações tecnológicas capital-dependentes a favor dos agrotóxicos, dos fertilizantes de origem industrial, das sementes híbridas e transgênicas, dos herbicidas, dos hormônios, enfim, do conjunto de insumos de origem industrial para a produção agropecuária e florestal oferecidos pelo agronegócio. A modernidade camponesa nega a modernidade do capital que transforma as pessoas em meros consumidores, que faz do meio ambiente e da vida um negócio e que impõe a tirania de uma dieta alimentar a partir de produtos artificializados e concebidos não para o melhor-estar das pessoas, mas apenas para a melhor rentabilidade do capital.
 
6. Podemos marcar um encontro?
 
Oxalá as gerações brasileiras nascidas pós 2010 possam vir a conviver com os camponeses numa formação econômica e social brasileira inserida no concerto de uma interação mundial globalizada e popular, de tal maneira que o chegar num território camponês venha a se tornar não uma descoberta de um outro que ainda possa lhe ser estranho, mas sim um reviver as esperanças de outrora então transformadas em práticas de um modo de produção e tecnológico no campo que tenha propiciado o exercício da vivência pluralista da etnoagrobiodiversidade, e que nessa vivência as fantasias e ou as utopias de uma sociedade mais justa e socialista já se tenha tornado um lugar comum da cotidianidade.
 


[1] Myamoto Musashi (2000). O livro dos 5 anéis. O clássico guia da estratégia. São Paulo, Madras, p. 62.
[2] Ver Shanin, Teodor (1972). La clase incómoda. Sociologia política del campesinado en una sociedad en desarrollo (Rusia 1919-1925). Madri, Alianza Editorial.
[3]Ver Santilli, Juliana (2009). Agrobiodiversidade e direitos dos agricultores. São Paulo, Peirópolis.
[4] Ver Klein, Naomi (2008). A doutrina do choque. A ascensão do capitalismo de desastre. Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
[5] Ver sobre o tema Costa, Francisco de Assis (2.000). Formação Agropecuária da Amazônia. Os desafios do desenvolvimento sustentável. Belém, NAEA.
[6] Ver Ploeg, Jaqn Dowe van der (2008). Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia e sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre, Editora da UFRGS.
[7]Ver estudo emblemático sobre o tema in Martins, Mônica Dias (2008). Açúcar no sertão: a ofensiva capitalista no nordeste do Brasil. São Paulo: Annablume; Fortaleza: Banco do Nordeste.
[8] Ver Bové, José e Dufour, François (2001). O mundo não é uma mercadoria. Camponeses contra a comida ruim. São Paulo, Editora UNESP.
[9] Informação a partir dos dados do IBGE (2009a). Agricultura familiar ocupava 84,4% dos estabelecimentos agropecuários. Rio de Janeiro, Informativo para a imprensa nº 125, Comunicação Social, 30 de setembro.
[10]Principalmente aquelas atividades subordinadas diretamenteao agronegócio como a criação de aves e suínos, a fruticultura irrigada, a horticultura, o florestamento industrial, entre outras.
[11]IBGE (2009b). Censo Agro 2006: IBGE revela retrato do Brasil agrário. Rio de Janeiro, Informativo para a imprensa  nº 124. Comunicação Social, 30 de setembro.
[12]Ver Le Breton, Binka (2002). Vidas roubadas. A escravidão moderna na Amazônia Brasileira. São Paulo, Edições Loyola; VV.AA (1999). Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo, Edições Loyola.
[13] Não se contempla neste documento as classes sociais populares urbanas.
[14] Fonte dos dados: IBGE (2009a), op. cit.
[15]Fonte dos dados:IBGE (2009b), op. cit.
[16] Sobre a questão camponesa e a terra consultar a obra de José de Souza Martins (USP – SP).
[17]Para não me estender para outros tempos e contextos históricos.
[18] Ver Mooney, Pat Roy (2002). O século 21: Erosão, transformação tecnológica e concentração do poder empresarial. São Paulo, Expressão popular.
[19]Ver Keller, Evelyn Fox (2002). O século do gene. Belo Horizonte, Crisálida.
[20] Ver Dardot, Pierre e Laval, Christian (2009). La nouvelle raison du monde. Essai sur la société néolibérale. Paris, La Découverte.
[21] BID: Banco Interamericano de Desenvolvimento; PNUD: Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
[22]BID e PNUD (1993). Reforma social y pobreza. Hacia una agenda integrada de desarrollo. Trabajos del Foro sobre Reforma Social y Pobreza. BID/PNUD, p. 11.
[23]Ver Harvey, David (2004). O novo imperialismo. São Paulo, Loyola.
[24]Teixeira, Gerson (2009). O Censo Agropecuário 2006. Brasil e Regiões. Brasília, 10 de outubro, arquivo, 30 p.
[25] MDA (2008). A agricultura familiar no Brasil e o Censo Agropecuário de 2006. Brasília, MDA, arquivo.
[26] Teixeira, Gerson (2009), op. cit.
[27]Ver Assman, Hugo e Hinkelammert, Franz J.. (1989). A idolatria do mercado. Ensaio sobre economia e teologia. Petrópolis, Vozes.
[28] Baudrillard, Jean (1995). A sociedade do consumo. Lisboa, Edições 70, pp. 15-16.
[29]Ver Carvalho, Horacio Martins (2008). A hegemonia burguesa e a “consciência feliz” das massas populares. Curitiba, mimeo, 17 p.
[30]Pinto, Álvaro Vieira (2005). O conceito de tecnologia. Rio de Janeiro, Contraponto, 2 v. Vol. 1, p. 268.
[31] Holloway, John (2003). Mudar o mundo sem transformar o poder. O significado da revolução hoje. São Paulo, Viramundo, p. 16.
[32] Ver Casado, Gloria I. Guzman; Molina, Manuel Gonzalez; Guzman, Eduardo Sevilla (2000). Introduccion a la agroecologia como desarrollo rural sostenible. Madrid, Ediciones Mundi-Prensa. Cap. 3 pp. 81 a 114.
https://www.alainet.org/es/node/141721?language=en
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