Dois “meninos” perigosos e sua herança

14/08/2010
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Parece  amarga ironia que hajam sido batizadas de “meninos” (Little Boy e  Fat Boy) as duas bombas atômicas que há 65 anos caíram sobre Hiroshima  e Nagasaki, no Japão, lançadas por aviões norte-americanos. No dia 6 de  agosto, o avião Enola Gay deixava cair seu fardo destruidor sobre  Hiroshima.  Três dias depois era a vez de Fat Boy ser lançada  sobre a cidade de Nagasaki. As duas bombas mataram cerca de 140 mil pessoas em  Hiroshima e 74 mil em Nagasaki.  Este número aumentou expressivamente nos  anos seguintes devido às sequelas causadas pela  radiação.

Menos  de uma semana depois dos ataques nucleares, em 15 de agosto de 1945, o Japão  se rendia e a Segunda Guerra Mundial chegava ao fim, deixando atrás de si o  maior saldo de mortes da história da humanidade: mais de 50 milhões, além dos  cerca de 28 milhões de mutilados. O genocídio do povo judeu ceifou quase 6  milhões de  vidas.

A  amargura da ironia se torna maior.  À destruição causada pela guerra se  acrescenta outra ainda maior.  Para deixar de matar por um lado, mata-se  mais e mais cruelmente pelo outro. O mundo parece um doente terminal que, ao  ser tratado de um mal, outro é desencadeado e ao tomar um remédio que cura uma  doença desperta outra no organismo frágil e esgarçado.  

O  capitão Theodore Van Kirk, tripulante do avião que lançou a bomba atômica  sobre Hiroshima, entrevistado, não deixou transparecer um único sentimento de  arrependimento pela violência que protagonizou.  Ao contrário, disse  sentir-se  orgulhoso da missão que, segundo ele, salvou muitas vidas e  pôs fim a uma odiosa guerra.  Declarou que, assim como seus companheiros,  tinha  pleno conhecimento sobre o tipo de armamento que levavam.   Isso fez com que passassem a noite anterior ao lançamento da bomba  jogando pôquer, já que não podiam dormir. O “menino” explosivo que carregavam  requeria vigilância permanente. Acrescentou, no entanto, que  esse tipo  de arma não deveria voltar a ser usada nunca  mais.

Sessenta  e cinco anos depois, o triste aniversário se celebra como de praxe.   Minuto de silêncio pelos mortos. Discursos emocionados relembrando as  vítimas e emitindo desejos de paz.  Os hibakusha, como são  chamados em japonês os sobreviventes da tragédia, estiveram no centro das  celebrações. Receberam o preito de homenagem dos visitantes ilustres e serão  recebidos pelo Papa Bento  XVI.

Mas  essa celebração teve um toque diferente.   Ali comparecerem pela  primeira vez representantes dos Estados Unidos, Reino Unido e França. As três  grandes potencies, protagonistas da Segunda Guerra e aliadas no bombardeio a  Hiroshima e Nagasaki, marcaram presença no Japão em sinal de apoio ao  desarmamento nuclear.  

Parece  crescer a consciência de que não se combate a violência com mais violência.   Ou de que a vitória final não é daquele que tem mais potencial  destrutivo.  Os dois “meninos” atômicos que deixaram esse rastro de dor e  morte no Japão há 65 anos precisam ser definitivamente varridos da história e  do cenário mundial.  

Pois,  como bem disse o secretario geral da ONU, Ban Ki-moon, a única maneira de  assegurar que as armas nucleares não serão usadas é eliminá-las.  Se  outros “meninos” como os do Enola Gay ficarem à solta, os  habikusha podemos ser todos nós.  

- Maria  Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da  PUC-Rio, é autora de "A Argila e o espírito - ensaios sobre ética,  mística e poética" (Ed. Garamond), entre outros livros.  (wwwusers.rdc.puc-rio.br/agape)

Copyright 2010 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização.
Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)
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