Memórias da guerra

24/03/2011
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Santa Marta (El Salvador).- El Salvador - Às vésperas da visita de Barack Obama ao país, comunidade de El Salvador relembrou massacre perpetrado por forças militares financiadas pelos Estados Unidos
 
Che Guevara, Jesus Cristo e mártires da guerra civil dividiam o mesmo altar, na comunidade de Santa Marta, departamento de Cabañas, em El Salvador. Ao redor deles, concentravam-se centenas de pessoas cuja historia de vida esta intensamente ligada a esses ícones. A data era 18 de marco de 2011, dia de relembrar, pelo 30ª ano, o massacre do Rio Lempa.
 
Dina Cabrera, com a ajuda de um simples megafone, convocava os homens, mulheres, crianças e idosos a formarem filas. Ia começar a via crucis que, entre rezas e músicas, conta a história da luta de uma comunidade camponesa que era base de apoio da Frente Farabundo Martì de Libertação Nacional (FMLN) durante a guerrilha. “Povo que esquece sua historia, está condenado a repeti-la”, era o lema da procissão.
 
Santa Marta foi vítima da brutal repressão do exército salvadorenho, apoiado e treinado pelos Estados Unidos. Nos anos 1980, o país norte americano aprovou um programa de assistência militar à nação da América que alcançava 5,7 milhões de dólares, segundo dados do livro El Salvador, suas historias e suas lutas, de Amílcar Figueroa Salazar.
 
Não havia muitos expectadores nem imprensa nacional acompanhando a via crucis. Eles eram bem-vindos, mas o evento era mesmo para a própria comunidade. “É para que nossos filhos e netos, que nasceram depois do massacre e da guerra, conheçam as razoes pelas quais seus familiares foram assassinados. Foi por defender um povo, foi para que hoje tenhamos onde viver e onde cultivar a terra”, explicou Dina.
 
Invasão
 
Conta a via crúcis que, em 16 de marco de 1981 um batalhão do exército salvadorenho, com 5 mil soldados, sob o comando do Coronel Ochoa Peres, invadiu a comunidade para dar início a uma operação do tipo “Terra Arrasada”. Tal operação, ensinada pela cartilha da CIA, fazia parte da estratégia do governo de dizimar a população civil que apoiava e sustentava a guerrilha, promovendo um clima de medo e terror.
 
“O objetivo era não deixar vivo um animal, uma pessoa, uma casa, um grão. Era para destruir tudo”, contou Gerardo Arturo, que, nessa época, tinha 25 anos e, desde 1977 participava do movimento guerrilheiro. “Depois de três dias de combater, na linha de defesa, nos vimos obrigados a levar a população ate um lugar chamado La Penha. Ali nos concentramos, milhares de pessoas”, contou.
 
 
Nessa linha de defesa também combateu Alexandro Laines, mais conhecido por Gualter, sua identidade de guerrilheiro. “Estávamos no início da guerrilha, não tínhamos muita experiência. Só contávamos com 40 armas, para lutar contra um batalhão treinado na Escola das Américas e financiado pelos Estados Unidos. Mas precisávamos lutar. Havia um povo dependendo da gente, nossos familiares também”, relatou Gualter, enquanto mostrava uma coleção de relíquias da guerra que reúne em sua casa: fragmentos de bombas, granadas e armas. Seu objetivo é, um dia, montar um museu da comunidade.
 
Luta Desigual
 
Segundo o ex-combatente, cada guerrilheiro tinha que lutar contra 30 soldados. “Possuíamos somente armas semi-automáticas. Não podíamos atirar sem pensar, cada tiro tinha que ser certeiro. Enquanto que eles atiravam até pro céu. Em três dias, as tropas do governo sofreram cerca de 650 baixas. E conseguimos pegar sete armas deles. Não parece muita coisa, mas para gente que estava começando era muito”, lembrou.
 
Rompido o cerco, a população seguiu para a fronteira com o propósito de refugiar-se em Honduras. Ao chegar ao Rio Lempa, na fronteira dos dois países, o exército salvadorenho que esperava as famílias no local abriu fogo, iniciando o massacre. “E quando viram que as pessoas estavam cruzando o rio, deram uma ordem ao chefe da represa 5 de Novembro para que abrisse as comportas, subindo o nível da água e dificultando a travessia. Aí morreu muita gente, principalmente crianças e idosos”, recordou Gualter.
 
No meio da batalha, um dia antes de atravessarem o Rio Lempa, nasceu o primeiro filho de Dina Cabrera. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram durante a travessia, mas Dina perdeu 4 parentes, entre eles o filho recém nascido, intoxicado pelos gases das bombas que eram lançadas de helicópteros contra a população. Apesar da forte repressão, a comunidade de Santa Marta conseguiu atravessar o rio, deixando para trás centenas de mortos. “Eu estive passando gente (ajudando a atravessar) das cinco da manha até cinco da tarde. Usávamos tocos de bananeira. Tive que parar porque me davam cãibras”, contou o ex guerrilheiro Gerardo.
 
Solidariedade e repressão
 
Ao chegar a Honduras, seguiu o massacre. O exército hondurenho, combinado com o salvadorenho, abriu fogo contra a população exausta matando ainda mais gente. “Mas o povo hondurenho nos recebeu muito bem. Com a ajuda deles e da solidariedade internacional, principalmente das igrejas, conseguimos nos recuperar” relatou Gerardo. Dina também é grata e solidária à população deste país. “Quando a gente mais necessitou, eles nos deram a mao. Então a gente sente muito por essa ditadura pela qual esta passando este povo. Esperamos que sejam fortes. E se precisarem, nem que seja com tortilhas e feijão, vamos recebê-los e dar apoio”, afirmou, referindo-se ao processo em que vive o país vizinho, desde o golpe civil-militar de 2009, que depôs o presidente Manuel Zelaya.
 
 
 
No entanto, os seis anos que passaram no país vizinho não foram fáceis. Acampados na região de Mesa Grande, viviam, nas palavras de Gerardo, numa prisão sem paredes. Estavam cercados pelo exercito hondurenho, sem poder voltar para seu país de origem. Porém, neste acampamento, com a ajuda das igrejas desenvolveram um processo de educação popular e também aprenderam alguns ofícios, como mecânica e primeiros socorros.
 
Nenhuma das opções de regresso oferecida pelo ONU satisfazia os acampados. Eram elas, migrar para um terceiro país, pedir a nacionalidade hondurenha, ou aceitar a repatriação individual. Os salvadorenhos, apesar da guerra, queriam voltar a Santa Marta do jeito que saíram: em comunidade. Regressaram em 10 de outubro de 1987. A repressão continuava, mas dessa vez contavam com uma guerrilha mais preparada e com a comunidade internacional atenta.
 
Santa Marta hoje
 
“Quando a gente saiu daqui, os milhos e grãos que plantávamos e colhíamos era para os latifundiários. Para gente só restava o trabalho, o suor. Então, essa revolução, essa guerra serviu para que não vivêssemos mais sob os pés dos ricos”, comemora Dina. Com a ajuda de doações internacionais, Santa Marta hoje è dona de suas terras, em um título coletivo. Com o esforço e a organização comunitária construíram escolas, posto de saúde e uma rádio com alcance em todo o departamento de Cabañas.
 
Hoje são 5000 habitantes que compartilham a terra nessa comunidade camponesa cheia de histórias. E ainda cheia de luta. Além do esforço de manter viva sua memória e seus mártires, Santa Marta trava agora uma guerra contra empresas norte-americanas que querem extrair minérios em Cabañas. Os inimigos são os mesmos, armados com bombas ou com dólares.
 
Mártir da mesma luta
 
Conhecer a presença dos elementos religiosos na celebração do massacre do Rio Lempa é essencial para entender a formação política do povo salvadorenho. Essa religiosidade mobilizadora tem sua origem nas transformações do pensamento social da igreja católica, expressadas pela teologia da libertação que, nos anos 60, teve bastante incidência nessa comunidade, e em varias outras do país, convertendo-se num dos principais elementos da organização dos camponeses.
 
No dia seguinte à via crúcis, um ônibus saiu da comunidade Santa Marta, rumo à capital San Salvador. Agora era hora de juntarem-se as milhares de pessoas que celebravam, em procissão, um grande mártir salvadorenho, o arcebispo Monsenhor Oscar Arnulfo Romero. Em momentos de acirramento da luta de massas, o religioso chegou a defender o “direito legítimo à violência insurrecional”.
 
Monsenhor Romero foi assassinado por um atirador de elite do exército salvadorenho, treinado na Escola das Américas, enquanto celebrava uma missa, em 24 de marco de 1980. O presidente estadunidense Barack Obama, quando falou da visita à El Salvador, prevista para os dias 22 e 23, havia manifestado publicamente a intenção de visitar o túmulo do arcebispo. “Deus, o que quer Obama aqui?” questionava um seguidor de Romero, durante a procissão.
 
Matéria publicada no Jornal Brasil de Fato, edição 421 de 24 a 30 de março
https://www.alainet.org/es/node/148543
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