Discurso de reconciliação, prática de ditadura
02/10/2011
- Opinión
Passados quatro meses do acordo de Cartagena que permitiu o retorno de Zelaya ao país, militantes relatam sistemáticas violações aos direitos humanos em Honduras
Tegucigalpa.- Para milhares de hondurenhos o retorno de Manuel Zelaya ao país, em 28 de maio, significou uma grande vitória da população em resistência. Para o membro da Frente Nacional de Resistência Popular (FNRP), Emmo Sadloo, a vitória foi ainda mais especial: desde que o presidente fora ao exílio, na República Dominicana, após ser deposto por um golpe de Estado em 2009, o militante mantinha a barba intacta, cumprindo a promessa de só cortá-la quando o líder regressasse.
O retorno do coordenador-geral da FNRP se deu no marco do acordo de reconciliação firmado em Cartagena das Índias (Colômbia), entre o ex-mandatário e o atual presidente Porfírio Lobo Sosa, em um processo mediado pelos governos da Venezuela e Colômbia. Ao subir ao palco montado próximo ao aeroporto de Toncontín, em Tegucigalpa, para a festa de seu regresso, Zelaya trazia o acordo na mão e afirmava que todos os hondurenhos deveriam sabê-lo “de cor”.
“Fora o retorno do presidente Manuel Zelaya, o acordo de Cartagena não alcançou, lamentavelmente, os avanços que esperávamos”, afirmou Victor Meza, ex-ministro do governo Zelaya e diretor e pesquisador do Centro de Documentação de Honduras (Cedoh). Segundo Meza, o acordo foi fruto da luta da resistência e um avanço, principalmente para os negociadores. Se por um lado o presidente Zelaya conseguiu retornar ao seu país, o presidente Porfírio Lobo obteve a reintegração de Honduras à Organização dos Estados Americanos (OEA), da qual fora expulsa por ocasião do golpe.
No entanto, o acordo deveria ter um significado especial no tema de direitos humanos. “Deveria ter propiciado uma redução das violações aos direitos humanos e um maior controle por parte do Estado de grupos que exercem violência paralela contra a resistência. Isso não está ocorrendo”, ponderou o ex-ministro.
Perseguição judicial
Passados quatro meses da assinatura do acordo de Cartagena das Índias, os fatos mostram que as estruturas do Estado, ainda sob o poder daqueles que executaram o golpe, não querem ou não se empenham pela reconciliação. Assassinatos de militantes, jornalistas e campesinos da região do Aguán; perseguição judicial de membros do governo de Zelaya e ameaças a exilados continuaram, mesmo após a aparente reconciliação.
O primeiro caso considerado pela FNRP como uma violação do acordo de Cartagena é o da prisão domiciliar do advogado e ex-ministro da presidência de Zelaya, Enrique Flores Lanza, acusado de desvio de dinheiro público no processo da campanha da Quarta Urna, uma consulta popular que pretendia perguntar se a população era a favor da instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Além da prisão, a Justiça cobrou o pagamento de uma fiança de 27 milhões de lempiras (cerca de US$ 1,4 milhão), sob a pena de ir para a Penitenciária Nacional caso não cumpra o pagamento.
Flores Lanza voltou do exílio junto com Zelaya, em 28 de maio, e acreditava ter sua liberdade garantida pelo ponto do acordo que previa o retorno de todos os exilados “em condições de segurança e liberdade, com reconhecimento pleno de seus direitos segundo a Constituição e as leis de Honduras”. Considerado o “braço-direito” de Zelaya, Lanza não teve o mesmo tratamento de que outros ex-funcionários também acusados, como a ministra de finanças e o presidente do Banco Central. “A eles lhe deram medidas normais, como fiança de 10 mil dólares, proibição de sair do país ou obrigação de apresentar-se toda a semana à Justiça. Mas para mim cobraram uma fiança que é impossível de cumprir, e impedem que eu espere o julgamento em liberdade”, questionou o advogado.
Morte de Emmo
Assassinatos recentes também estremeceram o clima de “reconciliação” entre Zelaya e Lobo. Na tarde do dia 7 de setembro, às 14h30, um homem ainda não identificado foi até a borracharia do militante Mahadeo Roopchano Sadloo Sadloo, conhecido como Emmo, em Tegucigalpa, e disparou contra ele cinco tiros que o levaram à morte.
Grande agitador, o senhor de 55 anos – nascido no Suriname, mas naturalizado hondurenho - tornou-se símbolo e personagem famoso desde o golpe de Estado, ganhando um posto no imaginário coletivo da resistência. Era praticamente onipresente nas marchas e mobilizações da FNRP e acompanhou o ex-presidente Zelaya na embaixada brasileira em Honduras, durante os quatro meses em que permaneceu ali. Logo do retorno do coordenador da FNRP a Honduras, teve finalmente sua barba cortada em rede nacional e internacional.
Seu velório levou milhares às ruas, e a manifestação em comemoração ao dia da independência centro-americana, uma semana após sua morte, foi a mais massiva desde o retorno de Zelaya ao país. Ali se prestaram várias homenagens a Emmo e Zelaya aproveitou para mandar um recado à oligarquia, a quem acusa diretamente pelo crime: “não podem matar a todos nós, vejam, somos muitos”.
No dia seguinte à morte de Emmo, mais um assassinato: um grupo de pistoleiros matou, no norte de Honduras, o comunicador Medardo Flores, militante da FNRP e trabalhador da emissora Rádio Uno. Converteu-se no 15° jornalista a ser assassinado nos 18 meses do governo de Porfírio Lobo. O não esclarecimento desses casos e a impunidade tornaram Honduras um dos países mais perigosos do mundo para o exercício do jornalismo, de acordo com a ONG Repórteres Sem Fronteiras.
Três tipos de repressão
O pesquisador Victor Meza identifica no atual momento de repressão em Honduras características similares a da praticada nos anos 1980, durante a implantação da chamada Doutrina de Segurança Nacional no país, que tinha o apoio dos Estados Unidos. Segundo ele, essas características se resumem a três categorias. “A primeira é de carácter preventivo, ou seja, orientada a impedir que os movimentos populares adquiram mais força e maior hegemonia” afirmou o pesquisador.
“A segunda é de carácter seletivo, onde escolhem quadros específicos, preferencialmente líderes intermediários, o que chamamos de 'novos líderes emergentes'. E a terceira é de carácter clandestino, extrajudicial, mas que opera com o consentimento e a tolerância do Estado”, explicou.
De acordo com o analista, a criminalidade política está em ascenso em Honduras desde o golpe de Estado. “E não podemos esquecer-nos dos corpos de segurança privados a serviço dos empresários golpistas” acrescentou Meza.
São justamente seguranças privados, a serviço do latifundiário Miguel Facussé, os acusados pelos movimentos camponeses de assassinarem a mais de 40 trabalhadores rurais na região do Baixo Aguán, norte de Honduras, desde 2009. Diante do verdadeiro campo de batalha que se desenvolveu na região dominada pelo monocultivo de palma africana (o dendê), o governo anunciou, em agosto, a operação Xatruch II, que enviou um efetivo de 600 militares e policiais para o local. Desde o início da militarização, 3 dirigentes campesinos morreram, entre eles o presidente do Movimento Autêntico Campesino do Aguán (Marca).
Exilados
Diante de ameaças de morte e perseguição por veículos não identificados, o padre Fausto Milla se viu obrigado a exilar-se na Nicarágua, menos de um mês depois do regresso de Zelaya ao país. Membro da Comissão de Verdade, não é a primeira vez que o padre sente os efeitos da repressão em Honduras. “Desde a década de 70 estou em perigo, pelo trabalho que fazia na paróquia. E por isso já estive preso durante seis dias, fui sequestrado em 81, e tive que sair do país em 82. Essa luta é antiga”, relata.
Na opinião do padre Milla, o ascenso da onda de repressão e violência no país se dá por medo de que o movimento de resistência ganhe força. “Nós sempre cantamos ‘nos temem porque não temos medo’. Já são dois anos e meio em que a resistência está em luta, isso os preocupa. E um objetivo dessa violência, não muito publicizado, mas real, é destruir esse movimento. Disso se trata” afirmou.
A conquista do retorno do presidente deposto a Honduras também teve um significado especial para Renê Amador, ator que ficou famoso ao protagonizar as peças publicitárias da campanha da Quarta Urna na televisão. Renê regressou a Honduras no mesmo avião que Zelaya, após meses de exílio na Espanha. Na ocasião, entrou no palco da festa do retorno bastante emocionado, chorando e balançando freneticamente a bandeira da FNRP. Um mês depois, partia novamente para o exílio.
“Volto ao exílio porque dentro de Honduras a situação está insustentável. Respira-se o mesmo ambiente de perseguição, a estrutura golpista está intacta dentro do governo e não estão cumprindo os acordos” denunciou Amador, desde El Salvador, sua nova morada. “A paz começa por julgar os culpados”, concluiu.
Em coletiva de imprensa, a FNRP, através de seu coordenador-geral Manuel Zelaya, anunciou que vai solicitar ao governo a realização de um plebiscito que pergunte à população se os executores do golpe de Estado devem ser punidos. Na mesma ocasião, Zelaya considerou os recentes assassinatos como uma declaração de guerra à resistência. “Devemos estar atentos ao que está ocorrendo. Há um plano e temos que trabalhar para desarticulá-lo”.
Publicado no Jornal Brasil de Fato, edição 447, de 22 a 28 de setembro de 2011
https://www.alainet.org/es/node/153000
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