No cerne do ciclone: a crise da dívida na União Europeia (6/7)

A crise já atingiu o apogeu?(VI)

18/10/2011
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Em julho-agosto de 2011, as bolsas foram novamente abaladas a nível internacional. A crise aprofundou-se na União Europeia, em particular em matéria de dívidas. O CADTM|1| entrevistou Eric Toussaint a fim de descodificar os diferentes aspectos desta nova fase da crise.

CADTM: A crise já atingiu o apogeu?

Eric Toussaint: Estamos muito longe do fim da crise. Considerando apenas os aspectos financeiros, temos de ter consciência de que, depois de 2007, os bancos privados continuaram a enveredar por um jogo extremamente perigoso que lhes é favorável enquanto não houver incidentes, mas que é prejudicial para a maioria da população. A quantidade de activos duvidosos existentes nos balanços dos bancos é enorme. Ora, se analisarmos apenas os 90 bancos europeus principais, há que destacar o facto de que esses bancos terem de refinanciar dívidas nos próximos dois anos num montante astronómico de 5,4 mil milhões de euros. Isto representa 45% da riqueza produzida anualmente na EU |2|. Os riscos são colossais e a política levada a cabo pelo BCE, pela CE e pelos governos dos países membros da UE não resolvem nada, muito pelo contrário.

É preciso insistir num aspecto central dos riscos em que incorrem os bancos europeus. Os bancos financiam uma parte considerável das suas operações pedindo empréstimos a curto prazo, em dólares, a emprestadores norte-americanos, os US money market funds (fundos do Mercado monetário) |3| a uma taxa inferior à do BCE. Ora, recordando os exemplos dados mais acima a propósito da Grécia, como poderiam os bancos europeus contentar-se com 0,35% a 3 meses tendo em conta que tiveram de pedir emprestado ao BCE a 1%? Os bancos financiaram e continuam a financiar os seus empréstimos aos Estados e às empresas europeias graças aos empréstimos que contraem nos money market funds dos EUA. Ora estes ganharam medo pelo que acontece na Europa, além disso andam perturbados com a disputa entre republicanos e democratas nos EUA |4|. A partir de julho de 2011, esta fonte de financiamento a juros baixos quase secou, principalmente à custa dos grandes bancos franceses, o que precipitou uma queda no mercado bolsista e aumentou a pressão exercida pelos bancos sobre o BCE, para que este comprasse títulos fornecendo assim dinheiro fresco. Em resumo, temos aqui mais uma prova da amplitude dos vasos comunicantes entre a economia dos EUA e a dos países da UE, Daí os contactos incessantes entre Barack Obama, Angela Merckel, Nicolas Sarkozy, o BCE, o FMI… e os grandes banqueiros, do Goldman Sachs ao BNP Paribas, passando pelo Deutsche Bank… Uma ruptura dos créditos em dólares, que trazem muito benefício aos bancos europeus, pode provocar uma crise muito grave no velho continente, da mesma maneira que a dificuldade dos bancos europeus em reembolsar os emprestadores norte-americanos pode precipitar uma nova crise na Wall Street.

Desde 2007-2008 que os bancos e outros especuladores deslocaram as suas actividades especulativas do mercado imobiliário (onde provocaram uma bolha que rebentou numa dezena de países após os EUA) para o mercado das dívidas públicas, o das divisas (onde se cambiam todos os dias o equivalente a 4 mil milhões de dólares, dos quais 99% correspondem à especulação) e o dos bens primários (petróleo, gás, minerais, produtos agrícolas). Estas novas bolhas podem rebentar em qualquer altura. Um dos mecanismos iniciador pode ser uma subida das taxas de juro decidida pela Reserva Federal dos EUA (seguida pelo BCE, o Banco de Inglaterra…). Quanto a esta questão, o Fed anunciou em Agosto de 2011 a intenção de manter a taxa de juro principal perto dos zero por cento até 2013. Contudo, outros acontecimentos podem constituir o detonador duma nova crise bancária ou dum crash financeiro. Os acontecimentos de julho-agosto de 2011 demonstram que é tempo de reunir energias para retirar às instituições financeiras a possibilidade de causar estragos.
A amplitude da crise também é determinada pelo volume da dívida pública dos EUA e o seu modo de financiamento na Europa. Os bancos europeus detêm mais de 80% do total da dívida de um conjunto de países europeus em dificuldade, nomeadamente a Grécia, a Irlanda, Portugal, os países do Leste europeu, a Espanha e a Itália. Em termos de volume, os títulos da dívida pública italiana representam 1,5 mil milhões de euros; é mais do dobro da dívida pública da Grécia, da Irlanda e de Portugal reunidos. A dívida pública espanhola ronda 700 000 milhões de euros (metade da dívida italiana). As contas são fáceis de fazer: as dívidas públicas da Itália e da Espanha representam o triplo das dívidas públicas grega, irlandesa e portuguesa. Como se viu em julho-agosto de 2011, enquanto cada um dos países continua a reembolsar as suas dívidas, vários bancos estiveram à beira da falência. Foi a intervenção do BCE que lhes salvou a pele. Os alicerces financeiros dos bancos europeus são tão frágeis que um ataque bolsista pode levá-los ao tapete. Já para não falar dum crash bancário, que é perfeitamente possível.

Até agora, além do trio Grécia-Irlanda-Portugal principalmente, os Estados conseguiram refinanciar sem grande dificuldade as suas dívidas, recorrendo a novos empréstimos quando o capital emprestado vencia. A situação degradou-se profundamente nestes últimos meses. Já em julho e inícios de agosto de 2011, as taxas exigidas pelos especuladores para permitirem à Itália e à Espanha refinanciar a dívida pública perto da data de vencimento por meio de empréstimos a 10 anos tinham literalmente disparado e ascendiam a 6%. Mais uma vez, foi a intervenção do BCE, que comprou massivamente títulos espanhóis e italianos, que permitiu satisfazer os banqueiros e outros especuladores e baixar as taxas. Por quanto tempo? De facto, a Itália tem de pedir cerca de 300 000 milhões de euros em agosto de 2011 e julho de 2012; trata-se do montante das obrigações que se vencem durante este curto lapso de tempo. As necessidades da Espanha são nitidamente inferiores, à volta de 80 000 milhões de euros, mas ainda assim trata-se dum montante considerável. Como se comportarão os especuladores ao longo dos 12 meses que aí vêm e que acontecerá se as condições em que eles pedem emprestado no mercado norte-americano endurecerem? Há muitos outros acontecimentos que podem agravar a crise internacional. Uma coisa é certa: a política actual da CE, do BCE e do FMI não produzirá uma solução favorável.

CADTM: Já por diversas vezes escreveste que a dívida privada era muito mais avultada que a dívida pública. Ora aqui tens-te concentrado na dívida pública…

Eric Toussaint: Quanto a isso não restam dúvidas, as dívidas privadas são muito mais avultadas que as dívidas públicas. Segundo o primeiro relatório do McKinsey Global Institute, o somatório das dívidas privadas a nível mundial eleva-se a 117 milhões de milhões de dólares, ou seja, perto do triplo do conjunto das dívidas públicas, cujo volume ascende a 41 milhões de milhões de dólares. Há um grande risco de que as empresas privadas, de que fazem parte os bancos e restantes especuladores, não sejam capazes de honrar as suas dívidas. A General Motors e o Lehman Brothers entraram em falência em 2008, assim como grande número de empresas incapazes de pagarem as suas dívidas.

Os banqueiros e outros chefes de empresas, os meios de comunicação tradicionais e os governos só querem falar das dívidas públicas e usam como pretexto o aumento destas para justificarem sucessivos ataques contra os direitos económicos e sociais da maioria da população. A austeridade e a redução dos défices públicos obtida através de cortes nos orçamentos sociais e na função pública tornaram-se as únicas receitas, juntamente com as privatizações e o aumento dos impostos sobre o consumo. Para fazerem boa figura, certos governos europeus acrescentam um minúsculo imposto sobre os ricos e falam em taxar as transacções financeiras.
É evidente que o aumento das dívidas públicas resulta de 30 anos de políticas neoliberais: financiamento com recurso a reformas fiscais que favorecem as grandes fortunas e as grandes empresas privadas, auxílios aos bancos e outras empresas transferindo uma parte das suas dívidas ou das suas perdas para o orçamento de Estado, diminuições sucessivas de receitas fiscais devido aos efeitos da recessão e ao aumento de certas despesas públicas para auxiliar as vítimas da crise. O efeito combinado de todos estes factores foi o aumento da dívida pública. Tudo remete para uma política social deliberadamente injusta, que visa favorecer sistematicamente uma classe da sociedade, a classe capitalista, distribuindo-se algumas migalhas à classe média a fim de a controlar. Em contrapartida, a maioria da população paga os custos destas políticas e vê os seus direitos grandemente reduzidos, quando não extintos. Por isso mesmo é necessário considerar que a dívida pública é ilegítima no seu todo. Por isso concentrei as minhas respostas na dívida pública, pois é necessário encontrar uma solução positiva para esta questão. (Traduzido por Rui Viana Pereira, revisto por Noémie Josse-Dos Santos)

Final da sexta parte

Notes articles:

|1| Este artigo está incluído numa série de sete artigos. Ver a primeira parte “A Grécia no centro da tormenta” http://www.cadtm.org/A-Grecia-no-ce..., a segunda parte “A feira de saldos dos títulos gregos” http://www.cadtm.org/A-feira-de-sal... a terceira parte “O BCE, servo fiel dos interesses privados” http://www.cadtm.org/O-BCE-servo-fi... a quarta parte: O “Plano Brady” europeu – austeridade permanente http://www.cadtm.org/Quarta-parte-O... a quinta parte:
os CDS e as agências de notação : fautores de riscos e desestabilização http://www.cadtm.org/Quinta-parte-o...

|2| Ver Gillian Tett em Financial Times, 05.08.2011, p. 22, bem como Peterson no Institute for International Economics, Europe on the Brink, julho de 2011

|3| Ver Daniel Munevar, “El pequeño y oscuro secreto de los bancos europeos”, http://www.cadtm.org/El-pequeno-y-o...

|4| Ver “US funds cut eurozone exposure” in Financial Times, 25.07.2011, p. 15.

 

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