Um ano de Dilma: surpresas e desafios

09/01/2012
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Após um ano da posse de Dilma Rousseff na Presidência da República, penso que vale a pena um balanço, de uma perspectiva da cidadania. Claro que é um ponto de vista a partir do lugar que ocupo numa organização de cidadania ativa, como o Instituto Brasileiro de Análises Econômicas e Sociais. Não tenho a pretensão de ser uma voz representativa de quem quer que seja. Defendo só a legitimidade de minha análise.

Vou começar por onde Dilma tem se revelado mais do que se esperava. Como primeira mulher presidenta do Brasil, Dilma é, por ela mesma, uma grande mudança de expressão da sociedade brasileira, suas diversidades, desigualdades e contradições, no poder político. Não é aquele encontro entre povo e nação encarnado por Lula, migrante nordestino, operário, identificado com a cultura popular. Mas é fundamental que se reconheça o quanto Dilma representa para o enfrentamento e a ruptura do estrutural patriarcalismo do poder no Brasil.

Pelo que sei, ela não tem uma história de militância cidadã no feminismo, mas está se portando como se assim tivesse, o que torna a sua atitude extremamente relevante na perspectiva democrática de transformação do Brasil, de inclusão, justiça social, participação e sustentabilidade. Não podemos avançar como nação sem enfrentar a profunda desigualdade de gênero e o machismo. Isso não quer dizer que as outras marcantes desigualdades brasileiras sejam menos importantes. Na verdade, elas se interligam e combinam, tornando extremamente difícil a mudança. Por isso mesmo, é muito relevante ter uma presidenta comprometida com justiça social.

Relações internacionais
Uma outra estimulante e impactante surpresa do governo Dilma é a direção imprimida até aqui no delicado campo das relações internacionais. Lula teve o grande mérito de instaurar uma agenda de Brasil emergente, numa estrutura mundial muito polarizada pelos países desenvolvidos, sob o manto da hegemonia dos EUA. Ele deu atenção especial às relações Sul-Sul e às possibilidades de mudança no quadro de poder global. Só que Lula nem sempre se portou pautado por uma agenda de condicionalidades democráticas e de direitos humanos. Ele atropelou e agiu pragmaticamente.

Dilma é mais coerente e tem cuidado com a legitimidade democrática da atuação brasileira, um grande país emergente, sem bomba atômica, vale a pena ressaltar. Ela não se atua dominada por um chamado “interesse nacional” acima de quaisquer princípios éticos e valores democráticos. Aliás, o que é afinal o “interesse nacional”, que representantes das classes dominantes e conservadores gostam de jogar na nossa cara, num país tão profundamente diverso, desigual e com tantos excluídos? A mudança do governo Dilma se nota claramente na nova postura da diplomacia brasileira no Conselho de Segurança das Nações Unidas e nos fóruns de direitos humanos. O discurso da presidenta Dilma na abertura da Assembleia-Geral da ONU é uma verdadeira tomada de posição e de definição por um Brasil democrático, bem ao gosto de ativistas de direitos humanos e de cidadania. Destaco isso sabendo que tal posição vem no bojo de muitas contradições do governo Dilma. Mas a mudança que assinalei é um forte indício de que Dilma está se fazendo a pergunta sobre que Brasil o mundo precisa, antes de decidir estratégias e políticas internacionais.

Faxina nos ministérios
O que mais? No gosto de muitos e da grande imprensa – e isto rende grande apoio à Dilma, segundo as sondagens de opinião – ela está fazendo uma faxina ética no governo, dando um basta à corrupção. É bem verdade que muitos ministros foram substituídos por causa da corrupção. Mas esse fato em si não me parece indicar uma grande mudança na Política (com P maiúsculo mesmo). O poder no Brasil – nos três Poderes, diga-se de passagem – é visceralmente tomado pela corrupção, com raízes profundas no patrimonialismo e clientelismo. Isso vem de lá de longe, com suas sete vidas.

Haveria mudança se entrasse na agenda democrática brasileira uma profunda reforma da Política, que superasse o distanciamento, o fosso e as barreiras existentes na relação entre cidadania e poder. Isso nada tem a ver com o debate da reforma política instaurado no Congresso, mais uma obra do jeitinho que diz que muda para nada mudar. Como disse, o que Dilma fez até aqui neste campo não passa de gestão delicada da confederação política de interesses privados que se agarra ao poder. Tem outro sentido a substituição de uns ministros por outros do mesmo partido, como se fossem os donos de fato do poder público? A cidadania não está nesse jogo e por isso a tentativa de recriar algo parecido ao movimento de ética na política está dando com os burros n’água. Dilma prestaria relevante serviço à democracia se fosse mais ousada e determinada no enfrentamento desse estrutural desafio político, não resolvido pela Constituição de 1988 (apesar de seus enormes avanços em direitos de cidadania).

Participação cidadã
Um outro desafio estratégico para o governo Dilma é a participação cidadã. Dilma não carrega uma história de relações com amplos e contraditórios segmentos da cidadania real do Brasil, como Lula. por exemplo. Isso se reflete numa espécie de burocratização da participação cidadã nas políticas públicas no governo. É claro que a sintonia fina com a cidadania faz enorme diferença.

Com Lula, o palácio de “portas abertas” à diversidade brasileira e o estímulo à participação em mais de 50 conferências nacionais e não sei quantos conselhos mobilizou milhões de brasileiras e brasileiros, mesmo que esses espaços tenham tido pouco poder real. Geraram muitas frustrações, pois eram e são, acima de tudo, espaços consultivos para construir consensos e agendas possíveis. Porém, em termos democráticos o Brasil ganhou do governo Lula a maior escola do mundo de aprendizado da cidadania política, que começa por reconhecer a diversidade e a necessidade de construção democrática de consensos e pactos, definindo a dialética dos direitos e das responsabilidades compartidas, para que avanços sejam possíveis.

Os milhões de pessoas que se engajaram e que voltaram a se engajar, do local ao nacional, em disputas de ideias, sentidos, posições e projetos, deram cara nova à democracia brasileira, reconhecida no mundo todo. O poder político não mudou por isso e ainda vai demorar a mudar, mas a democracia se fortaleceu como estratégia e processo capaz de operar mudanças sustentáveis no longo prazo, como são as revoluções democráticas.

Nesse campo fundamental da democracia, onde a contribuição do PT fez diferença Dilma parece que não se move com facilidade e com visão estratégica. O combate à corrupção sem participação cidadã não passa de maquiagem no governo. A presidenta Dilma passa uma imagem de executora e que o mais importante no governo é a eficiência em si, quase algo tecnocrático. Na democracia, eficiência é, sem dúvida, muito importante e necessária, até mais do que em governos autoritários, onde o poder bruto, de dominação, sem contestação, pode se dar ao luxo de ser ineficiente. Mas eficiência só não qualifica o governo democrático, um governo por definição instável e de incertezas, impregnado pelas contradições da sociedade, que a democracia as transforma de forças destrutivas (a tal luta de classes da sociologia e ciência política) em forças de construção e transformação pactuada. A dinâmica cidadã – a luta de classes operando segundo valores e princípios democráticos aceitos por todas e todos – constitui e qualifica o governo e as suas políticas.

Num país como o Brasil de hoje, com um Congresso e um Judiciário dominados pelo corporativismo, a estratégia possível para as necessárias e desejadas mudanças democráticas reside na tensão gerada pela participação cidadã na Política. Claro que representantes e negociadores revestidos de mandato pelo voto, um Judiciário legítimo, independente e efetivo, e bons formuladores e gestores de políticas são indispensáveis nas democracias. Mas a cidadania ativa é parte que institui e constitui jogo, ou melhor, a luta democrática, por mais que conservadores não gostem disso.

O que aconteceu e está acontecendo no mundo árabe é o melhor exemplo do que estou falando. O modo de definir o que vai ser feito e como vai ser feito nas democracias é mais importante do que o resultado em si. Os fins não podem justificar os meios utilizados. Pelo contrário, são os meios que qualificam os fins. É bom lembrar que cidadania é tanto o direito a ter direitos, como a responsabilidade pelos direitos, o que implica na participação cidadã como responsabilidade da própria condição de cidadania. A luta democrática impõe a seus líderes e seus representantes a capacidade e a sabedoria para se sujeitar à cidadania, para tirar partido das tensões, das vaias e dos aplausos, das críticas, das mobilizações de apoio. Essas, junto com o fundamental ato de votar, são formas como efetivamente se dá a participação dos constituintes do poder político.

Democracia é voto, mas também é ruído e confusão, é praça pública, é rua tomada por manifestação, é engajamento em defesa de causas. Sintonia fina com a cidadania é condição sine qua non para a efetividade de qualquer governo ou instituição democrática. Enfim, um governo democrático não pode estar de costas à participação.

Erradicação da miséria
Para mim, um simples ativista de longa data pela justiça social, nada mais relevante no governo Dilma do que o objetivo de em quatro anos erradicar a miséria, uma chaga a que estão condenados mais de 16 milhões de cidadãos e cidadãs no Brasil. Trata-se de uma tarefa ética incontornável e inadiável, porque possível, dada a pujança de nossa economia. Salta aos olhos, porém, e explica uma não empolgação com o “Brasil Sem Miséria” a falta de participação cidadã no desenho dos objetivos e na execução do programa. Também me incomodou a ausência da presidenta Dilma na recente Conferência Nacional de Segurança Alimentar, apesar da participação do ministro Gilberto Carvalho ter mitigado o problema. O fato é que a ausência da presidenta em tão importante conferência para indicar o rumo que o Brasil precisa trilhar é muito simbólica.

Estou também profundamente intrigado e incomodado com a decisão governamental de excluir a ASA, Articulação do Semi-Árido, da implantação do programa de cisternas no Nordeste, talvez uma das políticas mais inovadoras até aqui em termos de efetiva participação no seu desenho e implementação. Lamentável! Tudo em nome da eficiência, pelo que suponho.

Agenda desenvolvimentista
Por fim, destaco o modo como Dilma e seu governo dão continuidade a uma agenda desenvolvimentista, baseada nos grandes projetos e grandes corporações empresariais, sem ao menos discutir tal agenda com amplos segmentos da cidadania ativa. Outro lado igualmente ruim nessa agenda é a sua elaboração e defesa com renovado ímpeto. Parece-me ser um grande erro, que vai nos custar muito logo mais, definir para o Brasil um projeto de desenvolvimento puxado pela acumulação capitalista, projeto que, no mundo todo, mostra sinais evidentes de crise e esgotamento. A muita riqueza que ele gera se concentra em poucas mãos e é feita às custas da destruição ambiental, com ameaças à sustentabilidade da vida no planeta.

Trata-se de produção de luxo e lixo em benefício de poucos (os movimentos de indignados, que se espalham pelo mundo, martelam no 1%,como o tamanho dos verdadeiros beneficiados). Em tal modelo de desenvolvimento, só a reboque do seu crescimento contínuo, se vislumbra a possibilidade de fazer maior justiça social. Um tal desenvolvimento se alimenta da destruição ambiental combinada com desigualdade e injustiça estrutural, entre os habitantes atuais da Terra e de nós com as gerações futuras. A globalização das últimas três a quatro últimas décadas acelerou e exacerbou todas as contradições deste modelo. A ameaça não é mais aqui ou lá, tem dimensões planetárias. Isso não leva a mais democracia e nem preserva a condições para a vida digna e o bem viver. Para a dignidade humana, com garantia de todos os direitos para todos os seres humanos, para a sustentabilidade da vida, de nossa e de toda a biosfera, para a preservação do próprio planeta, precisamos sair da lógica desenvolvimentista atual, ao menos começar a ir em outra direção, desarmando a bomba relógio da civilização industrial consumista, social e ambientalmente predatória.

Será que o Governo Dilma não vê a possibilidade histórica que está à sua porta, com a conferência Rio+20, para assumir um papel ousado e relevante, tanto ética como politicamente, em direção a tais mudanças? Nada a esperar dos EUA, do Japão, nem mesmo da Europa em crise. Da China, do capitalismo selvagem ou dos outros emergentes o mais provável é aparecerem negociadores para fazer ativa oposição a qualquer compromisso de mudança mais de fundo.

A Rio+20, de junho próximo, poderá ser uma rara oportunidade, sob legítima liderança do governo Dilma, de arrastar outros governos e de pactuar com a sociedade civil do Brasil e do mundo uma direção para outro paradigma, uma outra economia, um outro modo de gerir as sociedades e a nossa relação com a natureza. Mas, para exercer um papel assim, é necessário ao menos se dispor ao diálogo democrático, pondo na mesma de negociação a própria questão do desenvolvimento. A agenda desenvolvimentista atual do governo Dilma não combina com isso. Fica um desejo e um clamor: gostaria de ser surpreendido neste ano com a vontade e a determinação da presidenta Dilma de fazer com que nós nos orgulharmos do Brasil emergente, apontando os caminhos democráticos possíveis para uma civilização sustentável.
 
- Cândido Grzybowski, sociólogo, é diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase).
 
 
https://www.alainet.org/es/node/155166
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