A Carta ao Povo Brasileiro, de Dilma Rousseff
03/02/2015
- Opinión
Não há uma regra geral para a gestão macroeconômica: ela é uma arte (o clichê é muito repetido, mas não deixa de ser correto). Dependerá sempre dos problemas diagnosticados e do contexto histórico específico em que a ação reparadora se exerce. O sucesso de um arranjo de políticas monetária, fiscal e cambial num período não assegura o sucesso em período muito diferente.
O anúncio de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda do segundo governo de Dilma Rousseff tem certo ar déjà vu. Diante da desconfiança manifesta por representantes do mercado financeiro em 2002, o candidato Luiz Inácio Lula da Silva escreveu um manifesto destinado a acalmar espíritos especulativos. Prometia repetir o arranjo macroeconômico – o velho tripé – e respeitar contratos que herdara do combalido governo FHC.
Poucos sabiam que o governo Lula iria acentuar o rigor da política fiscal com metas de superávit primário nunca vistas na história do País. No Banco Central, a gestão de Meirelles elevaria o diferencial de juros a ponto de induzir grandes influxos de capital e provocar apreciação cambial inaudita do Real.
Por que a repetição do tripé não levou imediatamente ao tripé característico da década de 1990, desindustrialização, rentismo e déficit crescente de transações correntes, resultando no baixo crescimento?
Em parte por sorte: a economia mundial entrava em 2003 em um longo ciclo de expansão que foi particularmente feliz para países periféricos exportadores de produtores primários, permitindo-lhes acumular reservas cambiais para superar a restrição externa típica da década anterior.
Também por virtude, embora hesitante de início: a expansão do gasto social, do crédito consignado e o aumento do salário mínimo deram um grande impulso ao mercado interno, que multiplicou o impulso inicial das exportações e induziu grande recuperação do investimento privado e da arrecadação fiscal.
A virtude teve a sorte de liberar-se de entraves desnecessários, depois que a indiscrição quanto às transações financeiras de um caseiro derrubou Pallocci e seu secretário do Tesouro, apelidado à época de Joaquim Mãos-de-Tesoura. Diz-se que Lula não economizava bom humor ao sugerir que Levy era o verdadeiro Presidente da República.
A história se repetirá como farsa em 2015?
Dilma Rousseff já anunciou um roteiro diferente. Prometeu (depois da campanha de reeleição) que o ajuste fiscal não afetará gastos e receitas que reduzam a demanda e, portanto, não empurrará uma economia estagnada para a recessão e a retomada do desemprego.
Antes e depois das eleições, a Carta ao Povo Brasileiro, de Dilma Rousseff foi, de fato, oposta à de Lula, mas suas primeiras nomeações como candidata eleita surpreenderam quase todos, assim como a meta fiscal anunciada por seu novo Ministro da Fazenda: 1,2% do PIB de acordo com as estatísticas do Banco Central, ou seja, sem descontar investimentos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Lembre-se que, na Casa Civil de Lula, o desconto de investimentos públicos da meta fiscal foi o motivo central de conflito com o Ministério da Fazenda chefiado por Pallocci.
Tamanha reviravolta era necessária? Pode ela ser contraproducente, agravando os problemas que quer resolver, particularmente a trajetória da dívida pública?
Não parece que a reviravolta fosse necessária. É verdade que a retórica contra os banqueiros na campanha presidencial apenas aprofundou o desconforto mútuo gerado pela politização da redução da taxa básica de juros e, principalmente, o uso dos bancos públicos para forçar a redução dos spreads dos bancos comerciais em 2012.
Alguma reaproximação era esperada, uma vez que o governo Dilma pretende ampliar concessões de serviços públicos e enfrenta tanto grande rejeição entre investidores, quanto oposição no Congresso Nacional e na sociedade disposta a paralisar a administração.
Dito isso, a conjuntura atual não exige contração fiscal até cinco vezes maior do que a variação de 0,36% do PIB e do superávit primário entre 2002 e 2003, dependendo do resultado de 2014; nem de se a meta de 1,2% do PIB anunciada para 2015 for “cheia” ou não.
O risco de um default generalizado da dívida externa privada e o encarecimento trágico da dívida pública denominada em dólares exigia, ali em 2003, políticas apaziguadoras dos mercados financeiros. Hoje, contudo, o governo é credor em dólares e boa parte do passivo externo privado, sobretudo em renda variável, é cotado em reais.
Apesar do déficit em transações correntes, boa parte é financiado com investimento externo direto, e o diferencial de juros continuará muito atraente depois da elevação das taxas de juros nos EUA. O regime de câmbio flutuante é muito melhor administrado do que em 2002.
O pior é que a contração fiscal pode se mostrar contraproducente para seu objetivo declarado: evitar a perda do “grau de investimento” (investment grade) junto às desacreditadas agências de classificação de risco (Standard’& Poor’s, Moody’s, Fitch) que autorizam fundos de investimento a aplicarem na dívida pública e reduzem taxas de juros para os vários agentes privados que levantam recursos no exterior. Por quê?
Primeiro, porque as condições internacionais são muito diferentes daquelas há 12 anos. Em 2003, o comércio internacional estagnou, antes de crescer perto de 15% a.a. pelos cinco anos seguintes. As exportações brasileiras agregadas para os EUA e União Europeia, contudo, já dobravam em relação a 2002 e decuplicaram em relação a 2001. Também se iniciou em 2003 o boom das exportações industriais para a América do Sul e o boom das exportações de commodities para a China.
Nada semelhante é provável nos próximos anos. Ao contrário, o excesso de capacidade na indústria mundial deve continuar contendo a produção e as exportações industriais brasileiras, enquanto o preço das commodities deve ser pressionado pela elevação de juros nos EUA e pela desaceleração chinesa.
O que falar da demanda interna, que esteve fortemente protegida da concorrência internacional pela depreciação cambial até cerca de 2006?
O cenário não poderia ser mais diferente. Em 2003, as bases sociais do governo Lula forçavam pela satisfação de demandas reprimidas, e o governo foi capaz de desenhar políticas que abriram, contra a oposição neoliberal, um longo horizonte de ampliação do emprego formal com salários crescentes, das transferências sociais, do crédito ao consumidor e, depois da queda de Pallocci, do salário mínimo e do investimento público, estimulando a produção e o investimento industrial.
Hoje, ao contrário, a estrutura industrial sofre os danos trazidos pela apreciação cambial e pelo acirramento da concorrência com a crise global. As empresas ampliam a revenda de bens industriais importados e eliminam vagas. A indústria de transformação gerou 2.200 mil vagas de 2003 a 2008, mas perdeu 800 mil de 2009 a 2012.
O crescimento do emprego puxado pelo setor de serviços dá mostras de emperrar em 2014, mas em nenhum momento foi capaz de oferecer empregos bem pagos: de 2011 a 2013, foram geradas 1.400 mil vagas até 1 salário mínimo (S.M.); 3 milhões até 1,5 S.M.; 100 mil até 2 S.M.; mas eliminadas 1.200 mil acima disso. Entre janeiro e novembro de 2014, só foram geradas vagas até 1,5 S.M., no montante de 1.200 mil vagas, sendo eliminadas 500 mil vagas com rendimentos acima de 1,5 S.M. A maré do emprego começou a mudar: no geral, foram eliminadas 30 mil vagas em outubro, e espera-se a mesma tendência nos próximos meses.
Com a virada na expectativa de emprego, o alto comprometimento da renda das famílias com serviços de dívidas e a elevação de taxa de juros, a trajetória de desaceleração do consumo das famílias deve prosseguir ou, quiçá, estabilizar-se em torno à taxa de 2% a.a.
Dificilmente será fonte de demanda capaz de recuperar o crescimento nos próximos dois anos, pelo menos. Dado o aumento recente da capacidade ociosa da indústria, estoques elevados e a sinalização de contração feita pelo governo, o investimento induzido pela demanda tampouco deve recuperar-se. O risco de racionamento de água ou energia elétrica também não estimula o ânimo empresarial.
Ademais, o fato de que o alcance da meta de superávit primário deve contar com elevação de alíquotas do IPI, IOF, Cide, TJLP, impostos sobre bens de capital e preços administrados deve pressionar a inflação e reforçar a desaceleração do consumo e do investimento induzido. Imagine-se se o Banco Central resolver compensar essa pressão inflacionária com o recurso à apreciação cambial induzida por elevação de juros básicos.
E o investimento autônomo? Aparentemente também se reduzirá. Primeiro, porque a meta fiscal exigirá corte do investimento público (inclusive do PAC), enquanto a Petrobrás deve experimentar dificuldades para levar adiante seus projetos. Na melhor das hipóteses, isso pode ocorrer por dificuldades para levantar recursos e pela reforma lenta dos controles contra corrupção. Na pior e menos provável das hipóteses, porque o preço do petróleo pode aproximar-se do piso lucrativo para o Pré-Sal.
O governo parece apostar suas fichas no investimento em recursos naturais e na infraestrutura, sobretudo através de concessões e parcerias público-privadas. O cenário de preços para commodities, contudo, não parece ser muito atraente para investimentos em curto prazo.
Concessões e parcerias, por sua vez, dependem de um processo demorado de definição de regras de operação, de licitação e elaboração de projetos. O fato de que as principais empresas candidatas aos leilões, ou seja, as grandes empreiteiras brasileiras, estão sob apreciação policial, judicial e política torna improvável que o investimento autônomo do setor privado nos salve, em curto prazo, da recessão que a austeridade fiscal e monetária deve iniciar em 2015.
Uma recessão não é um evento classificado benignamente pelas agências de classificação de risco, por mais estranhos sejam seus critérios de avaliação. Embora deva resultar de políticas exigidas pelos porta-vozes dos mercados financeiros, é duvidoso que seja capaz de comprar-lhes a boa vontade. Aliás, a história é repleta de ocasiões em que atender à exigência de austeridade dos credores da dívida pública traz exatamente a deterioração da trajetória da dívida e a inquietude dos credores.
Uma recessão tampouco deve facilitar a governabilidade diante de um Congresso Nacional que é muito demandante de verbas e cargos. Principalmente se a recessão empurrar as ruas contra um governo acuado por denúncias de corrupção e por uma oposição inconciliável e, até, constituída por alguns políticos que mal disfarçam o golpismo.
O que se recomenda em uma economia cuja demanda privada embica para o terreno negativo é exatamente o contrário da austeridade: a ampliação do investimento público, de preferência articulado a um plano longo de recuperação dos investimentos privados. Isso é prudente mesmo que aumente temporariamente a dívida pública antes da elevação da arrecadação de impostos trazida pela retomada do crescimento e, idealmente, por uma reforma que aumente a progressividade da tributação.
É, de todo modo, melhor aumentar a dívida pública mediante o financiamento de investimentos que evitem uma recessão, do que como resultado da queda da arrecadação tributária líquida trazida pela recessão e pela elevação dos juros que corrigem a própria dívida.
Essa é uma Carta ao Povo Brasileiro para a qual Joaquim Levy não parece talhado. Ele mudará a ponto de respeitar a promessa (pós-eleitoral) de Dilma Rousseff de evitar um ajuste fiscal que afete gastos e receitas que influenciem negativamente a demanda efetiva, empurrando a economia para a recessão?
- Pedro Paulo Zahluth Bastos é professor associado (Livre Docente) do Instituto de Economia da Unicamp e ex-presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica (ABPHE)
Da Série Especial: “Austeridade Econômica e Retrocesso Social”, em parceria com Rede Desenvolvimentista e Plataforma Política Social
02/02/2015
https://www.alainet.org/es/node/167285
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