O desgaste do governo petista, a crise e o avanço do conservadorismo

13/04/2015
  • Español
  • English
  • Français
  • Deutsch
  • Português
  • Información
-A +A

Uma onda de conservadorismo ameaça engolir o país, colocando em risco direitos sociais e trabalhistas e a laicidade do Estado. Modificações na Constituição[1], a possível diminuição da maioridade penal e a proposta da PEC da terceirização (4330/04) são apenas sintomas de algo mais profundo.

 

O conservadorismo sempre esteve aí. Não carece de muita explicação. Todavia, no momento, ele se move ofensivamente como uma onda que avança ao sabor do desgaste do governo petista, se alimenta de suas debilidades e - o mais perigoso - ameaça bem mais que o governo e seu partido.

 

Centrada no conceito de hegemonia, a reflexão que segue pretende, além de analisar este fenômeno, compreender melhor a crise por que ora passamos. Alguns autores afirmam que passamos por uma crise de hegemonia. Trazemos uma percepção um tanto diferente, calcada no conceito de “funcionalidade política”. Dessa forma, diferenciamos hegemonia de liderança política.

 

O governo neoliberal e globalizante de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) teve altos e baixos de apoio popular. Dentre outros, contaram positivamente para esse feito: a estabilidade econômica, o controle sobre a inflação, o “Plano real” e alguns programas assistencialistas (Bolsa alimentação, Bolsa escola, Auxílio gás etc.).

 

Sua política econômica tinha sinal ambíguo, e como tal foi recebida com fervor e temor por parte dos dominantes. Por um lado, a proposta de sepultar a “herança varguista” era atraente para a burguesia, pois atentava contra os direitos trabalhistas e sociais, liberando o Estado para servir, mais generosamente, aos senhores do mercado. As privatizações e as terceirizações são exemplares a esse respeito.

 

Já não se pode dizer o mesmo de sua proposta de liberalização econômica, que, abrindo a economia, expunha empresas nacionais a uma concorrência desigual com empresas estrangeiras[2].

 

Ao cabo de seu segundo mandato, Fernando Henrique Cardoso havia atraído sobre si a oposição de movimentos sociais, sindicatos e consideráveis setores do empresariado brasileiro. Em certo sentido, isso já configurava um quadro de crise de representação política. A capacidade de liderança do PSDB estava desgastada.

 

Dentre outras coisas, radica-se aí a derrota de José Serra nas eleições de 2002, candidato que o partido tucano escolheu para suceder Fernando Henrique. Como sabemos, aquelas eleições foram vencidas por Lula (PT) que, naquele cenário de crise de representação política, trazia algumas promessas e esperanças.

 

Como assinalou Francisco de Oliveira, ao escolher José Alencar (grande empresário do ramo têxtil) como vice-presidente, Lula acenava positivamente para o empresariado brasileiro. E, aos setores recalcitrantes da elite à época de sua eleição, procurou acalmar lançando a “Carta aberta ao povo brasileiro”. Ali, para ser sintético, ele prometia respeitar os contratos e agir sem os arroubos de outrora. Entrava em cena o “Lulinha paz e amor”, e assim o PT dava significativo passo rumo a sua decadência política, intelectual e moral.

 

Programas de moradia popular, as hidrelétricas que arruínam rios e a vida de milhares de pessoas na Amazônia e em outras latitudes, as obras da Copa e das Olimpíadas, o PAC e os financiamentos do BNDES mostrariam, cabalmente, até onde iria o apreço do governo petista por certos setores do empresariado. Bem alimentados, uns “campeões nacionais”[3] robusteceram-se ainda mais.

 

À vontade num cenário de “reprimarização da economia”, os agronegócios cresceram muito em poder econômico e político à sombra dos governos Lula, sustentando-o para continuarem a ser sustentados por ele. Escolhendo Kátia Abreu (PMDB) para assumir o Ministério da Agricultura, Dilma mantém total coerência com os governos de seu antecessor, onde o agronegócio sempre encontrou força e prestígio. As MPs 422 e 458, que serviram para a legalização de terras griladas, e o Novo Código Florestal o comprovam.

 

Por isso e com acerto, Ariovaldo Umbelino de Oliveira afirmou que “Lula entrará para a história do Brasil não como o presidente que fez a maior reforma agrária do país, mas como aquele que fez a maior regularização das terras públicas griladas do Brasil”. Desprezando ou reprimindo as demandas de indígenas e quilombolas pelo reconhecimento de seus territórios, o governo Dilma completa o des-serviço.

 

Por outro lado, as origens, o histórico e o discurso anti-neoliberal de Lula também acenavam positivamente para sindicatos, movimentos sociais e empobrecidos em geral. Somados a isso e ladeados por seu carisma e pela estrutura e militância do PT, a valorização do salário mínimo e os diversos programas sociais (do Bolsa família, passando pelo Minha casa, minha vida, ao Prouni), possibilitaram a ele ampliar e consolidar sua base popular.

 

Por sua vez, ocupando espaços no governo petista e aproveitando umas tantas concessões a elas feitas, CUT e MST, apenas para citar duas organizações de lutas trabalhistas e populares, ficaram dóceis. Agora que as coisas requerem uma mobilização enérgica e contundente, são incapazes de mostrar a força e a capacidade de dantes.

 

A robusta popularidade era prova de que o então presidente conseguira sanar, largamente, a crise de representação política deixada por seu antecessor. Sua liderança política era assaz reconhecida. Não lhe faltaram elogios vindos de diversos setores da burguesia. Delfim Neto, por várias vezes, exaltou sua inteligência política. Ultimamente, também Luís Carlos Bresser-Pereira teceu suas loas.  Mesmo Obama rendeu-se a seu carisma, chamando-o de “O cara”.

 

Tal era a segurança e o conforto que a administração petista oferecia a vários seguimentos da burguesia nacional e internacional que, tratando-o como representante de uma “esquerda racional”, o contrapunham à “esquerda radical e irresponsável”, representada por figuras como Hugo Chávez, Evo Morales e Rafael Correa.   

 

Poucos deram atenção ao fato de que a solidez do governo tinha por base um “equilíbrio instável”, como só podia ser um governo de coalizão que procura se apoiar em classes e grupos tão díspares e antagônicos. Desse modo, em razão dos cuidados e dos descuidos do governo, foram crescendo grupos como a “bancada evangélica” e a “bancada da bala”, os ruralistas e outros.

 

Importa dizer que a formação e a atuação conservadoras do atual Congresso são, em grande parte, responsabilidade do governo. E agora, na ausência de esquemas como o “mensalão” e o “petrolão”, o Congresso fica cada vez mais indócil e o governo, mais aparvalhado diante dele.

 

A turma do capital financeiro não foi esquecida um só instante nos governos petistas. Ao contrário, teve sempre seus interesses resguardados a todo custo, pois, como disse sem falácias o ex-presidente, “Nunca na história desse país, os banqueiros ganharam tanto”.

 

Impossível, entretanto, de ser sustentada por muito tempo, a política financeira dos juros altos afetaria aquele equilíbrio, já de si instável. Para alguns setores do empresariado, essa política nunca foi atrativa. O vice-presidente e também empresário, José Alencar, por muitas vezes manifestou seu desacordo quanto a isso.

 

Mas, enquanto deu a estabilidade política que amplas frações da burguesia necessitavam, o governo petista contou com seu apoio. Não por gostarem dele, mas por precisarem, pois seus representes oficiais (aqueles saídos de suas fileiras) não poderiam fazer, naquele momento, o que ele fazia: vencer oposições, construir consenso ativo, dar aparência popular a um projeto eminentemente elitista e antipopular. O governo petista era funcional.

 

A crise, porém, mudaria tudo. E, na hora da tensão, já sob o atual governo, Dilma e consortes optaram por continuar alimentando generosamente o capital financeiro. Mesmo que para isso tivessem que diminuir o - já diminuto - investimento, atacar direitos sociais e trabalhistas, cortar verbas e lançar mão de contingenciamentos nas áreas da saúde e da educação. A opção feita tornava inevitável a indisposição com seguimentos dos movimentos sociais e do funcionalismo público.

 

Estando em flagrante contradição com suas propostas de campanha, os ajustes ora propostos - assim como a volta da inflação, o aumento de impostos, o baixo crescimento econômico e o aumento do desemprego - feriram fundamente a credibilidade e a popularidade de Dilma. Somados à sua inabilidade política e gerencial, os escândalos de corrupção, da maneira parcial como vêm sendo explorados pelos meios de comunicação, aprofundam as feridas.

 

Os escândalos mostraram que os generosos investimentos feitos em alguns “campeões nacionais” não eram apenas fruto de uma crença numa espécie de “neo-desenvolvimentismo” ou de um revisitado sonho do “Brasil grande potência”, mas fonte de caixa 2 e de enriquecimento de alguns partidos e seus figurões. Esse era o preço do apreço dos governos petistas por empreiteiras.

 

Como se isso não fosse o bastante, ao insistir nos ajustes, o atual governo acaba desapontando e desanimando aqueles que ainda têm coragem de sair em sua defesa, fazendo ainda mais fundo o abismo da crise. Pesa no mesmo sentido negativo a opção pelo apoio institucional do Congresso e partidos, um apoio caro e incerto.

 

De fato, não há uma única semana em que Cunha (Presidente da Câmara dos Deputados) e Calheiros (Presidente do Senado), ambos do PMDB, não desmoralizem publicamente o governo da presidente, chamando-o de corrupto, barrando matérias de seu interesse e colocando em pauta outras que lhe constrangem e criam um sem número de dificuldades.

 

Mesmo sabendo que, como outros partidos, o PMDB é formado por grupos, vale considerar que Michel Temer, como vice-presidente e homem forte dentro do partido, poderia acalmar Cunha e Calheiros. Mas não o faz, e não o faz porque não quer. Nada há que indique que, mesmo assumindo as relações institucionais, Temer altere substancialmente esse quadro.

 

Em verdade, convém ao PMDB participar do governo e colher tudo o que for possível colher de positivo no governo. Todavia, também interessa a ele sangrar o governo, o PT, Dilma e Lula, para, talvez, lançar candidato próprio nas próximas eleições presidenciais ou vender mais caro seu apoio. Isso dá ao PMDB a confortável e prestigiosa condição de “oposição dentro do governo”, uma oposição sui generis, que se alimenta tanto da força quanto da fraqueza do governo.

 

A ida de Joaquim Levy para o Ministério da Fazenda patenteia as desastrosas opções das forças governistas e, nesse momento em que o “equilíbrio instável” se vai desfazendo, sinaliza claramente para que lado pendeu o governo. Em tal cenário, hoje mesmo o que de positivo a administração petista construiu ameaça ruir.

 

Vê-se, por isso, quão parciais foram aqueles que trataram os governos petistas como governos pós-neoliberais[4]. Desde os governos de Fernando Henrique, o neoliberalismo está aí. Agora, porém, ganhou mais dramaticidade e aflorou, inclusive, nos discursos. Ao falar da “necessidade dos ajustes”, Dilma traduz com palavras suas o mantra neoliberal. Para ser mais direta, poderia dizer simplesmente: “não há alternativa”.

 

Em suma, as ideias dominantes continuam sendo as ideias da classe dominante. O neoliberalismo, como ideário e projeto, impera entre os grandes partidos, independentemente de sua coloração. Nas últimas eleições, Marina, Aécio e Dilma, discordavam de coisas periféricas. O núcleo neoliberal, porém, era ponto pacífico entre eles, ponto indiscutido e indiscutível.

 

Cremos que uma reflexão sobre hegemonia deve ter isso em conta. Pois há quem esteja confundindo hegemonia e liderança política. A hegemonia, tal como é possível inferir da obra de Antônio Gramsci, envolve a liderança política, mas é bem mais ampla que ela.

 

Há que se dizer que, nem mesmo sob os governos petistas, a classe dominante perdeu a hegemonia. Num certo sentido, ao “ceder” a condução estatal ao PT, ela se fortaleceu ainda mais, porquanto seus interesses foram melhor atendidos sob os cuidados de um governo, aparentemente, compromissado com os trabalhadores e empobrecidos em geral.

 

Por este prisma, não atravessamos uma crise de hegemonia, e sim de representação ou liderança política. Ao perder sua capacidade de liderança, o governo petista perde a funcionalidade que tinha para os interesses da classe dominante. O que tem confundido muita gente é que isso ocorre exatamente no momento em que o governo ataca direitos trabalhistas e sociais, isto é, quando se esmera abertamente pelos interesses do capital.

 

Alguns afirmam, acertadamente, que Dilma governa com o projeto elitista e antipopular de Aécio/PSDB. É verdade. Mas isso não começou agora, pois Lula já governara, amplamente, seguindo a trilha de Fernando Henrique/PSDB. Percebe-se, com isso, que, pelo menos por parte dos de cima, a crítica não é por conta do projeto em marcha, mas em razão de sua funcionalidade desgastada. Hoje há mais “instabilidade” que “equilíbrio” no governo petista. Ele já não oferece mais a estabilidade tão necessária aos dominantes.

 

Em função do desgaste do governo petista, os representantes oficiais da burguesia estão à vontade para disputar o poder político estatal que, atualmente, vacila em mãos petistas. Eles assediam o governo, maiormente, por duas vias partidárias: PSDB e PMDB. Este último - como Joaquim Levy -conta com a confortável condição de ser uma oposição dentro do governo, com direito a um lugar de honra.

 

Não há, portanto, nenhuma contradição em a “elite” criticar o governo Dilma. Essa crítica não é a negação do projeto em curso. É, antes, uma crítica de cunho mais estritamente político, expressando o desgaste do governo, de sua funcionalidade. O preço de não ter ousado avançar, o governo petista agora paga sendo empurrado para trás.

 

Por fim, cumpre deixar aqui algumas perguntas. O que será do PT, se, ainda à frente do poder estatal, sua liderança é tão pouca? O que será dele quando voltar à condição de oposição? Que discurso terá? Que alianças fará? Terá êxito em seus objetivos? Como agirá nas ruas nessa quadra histórica, aberta pelo junho de 2013, em que novas vozes ali se levantam, indispostas a lhe servirem de coro?

 

O PT não levou nem a esquerda nem seu projeto para o governo, mas provavelmente os esteja levando para a lama. Temo que este seja seu principal legado. Um estigma a pesar, indiscriminadamente, sobre toda esquerda e suas bandeiras de luta. Lamentavelmente, o “Brasil pós-governos petistas”, por culpa dos próprios governos petistas, pode ser ainda mais reacionário que o de ontem e o de hoje.

 

- Israel Souza es Cientista Social, Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e membro do Núcleo de Pesquisa Estado, Sociedade e Desenvolvimento na Amazônia Ocidental (NUPESDAO).



[1] É do cabo Daciolo a proposta que pretende trocar a frase constitucional “Todo poder emana do povo” para “Todo poder emana de Deus”.

[2] Mesmo entre os empresários, havia aqueles que temiam a implantação da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), projeto de grande interesse por parte dos EUA e que foi rechaçada no Brasil por força dos movimentos sociais.

[3] Assim são chamadas algumas empresas consideradas importantes para a economia nacional e capazes de competir com outras no mercado internacional.

[4] Pense-se no livro organizado por Emir Sader, intitulado 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma. O livro foi lançado pela Editora Boitempo, no ano de 2013.

 

https://www.alainet.org/es/node/168934
Suscribirse a America Latina en Movimiento - RSS