“Uma Pedrada na Cabeça e no Coração do Brasil”
- Opinión
"Vivo en un país libre, cual solamente puede ser libre en esta tierra, en este instante"... Sílvio Rodriguez.
Muito preocupante a onda de fascismo que está tomando conta do Brasil. Na noite de domingo, dia 14 de junho, uma menina de onze anos saía com sua avó de um culto de Candomblé, ainda vestindo seu pano de cabeça, na zona norte do Rio de Janeiro, quando foi atingida por uma pedrada que a levou a ser hospitalizada. Para muitos seguidores de outras religiões, na ignorância gerada pela repressão que cercou a vida desses religiosos até o passado recente de nossa história, os filhos de santo de religiões afrobrasileiras praticariam culto ao Diabo, o que justificaria, nos dias atuais onde a intolerância e o obscurantismo começam a ganhar asas soltas no país todo, atitudes como esta, que nem preciso qualificar.
As religiões "afrobrasileiras" não conhecem o Diabo porque o Diabo não faz parte da sua cosmogonia. Como tantos já disseram, o orixá Exu, associado ao Diabo por mentes preconceituosas, é a força vital que faz a vida se movimentar e se procriar. Por vezes dolorosamente, por vezes, deliciosamente, mas sempre, conforme as circunstâncias para as quais estamos preparados. Na Umbanda, temos os exus, sem letra maiúscula, que são tantas outras espiritualidades mais cotidianas, tão parecidas com esses personagens que encontramos vida afora que nos ajudam a entendê-las no nosso íntimo, falar com elas, rir delas, pedir a elas, pedir que nos deixem, quando as superamos.
São religiões baseadas no acolhimento e na tolerância. Os africanos vieram ao Brasil de muitas regiões da África. Centenas de povos diferentes que cultuavam por lá mais de quinhentos Orixás diversos, só na África bantu. Sem falar na África Negra do Sahel, onde reinavam os povos muçulmanos de todo matiz cultural... em convivência pacífica de trocas comerciais e de esposas com árabes, no Saara. Chegando aqui, fragmentados, separados de suas comunidades e parentes, recriaram suas culturas, a partir do que tinham: povos variados vivendo juntos a mesma condição de escravidão. Na calada da noite, se reuniam e procuravam suas semelhanças, suas identidades comuns, criando as mais variadas formas de religiões afrobrasileiras, que são muitas, Brasil afora. Todas elas, acolhedoras do filho de santo que chega de outro terreiro, trazendo obrigações, que são bem-vindas na nova casa, pela nova mãe ou pai de santo, como parte das obrigações de toda a comunidade que o acolhe, tornando esta, a teologia mais dinâmica e democrática que conheci em toda a minha vida de andanças, caminhadas e amor pelo mundo diverso e belo que ainda temos nas mãos e corações.
Assim, vemos cultos a Caboclos ou Pretos Velhos, por exemplo, num terreiro de Candomblé, quando a sua origem está na Umbanda. Porque as variadas expressões do Candomblé refletem a reunião de diversos Orixás, de diversas regiões da África, que se reencontraram no Brasil e, se agrupando dessa forma, descobriram uma maneira brasileira de expressar suas crenças, valores, ética, estética e tudo o mais que o Candomblé expressa, tantas dessas coisas desconhecidas até da nossa Epistemologia científica.
Mas, o tempo foi passando e o povo de santo foi se abrasileirando e foram se encontrando enquanto descendentes dos santos da terra - os Caboclos - ou dos escravos - os Pretos Velhos - ou de tantos agregados entre os decaídos que aqui chegaram da Europa - os exus todos... ciganos ou de tantas outras origens... assim surgiu a Umbanda.
E não é só isso... tem muito mais.. tem cultos à jurema...nações... tambores tantos... tambor de mina com seus ricos Encantados, nos lembrando figuras históricas como o Rei Dom Sebastião ou imigrantes turcos, que um dia partiram do mundo dos vivos sem se despedir ou morrer. Cada terreiro, tem sua autonomia. Mas, quando morre um pai ou mãe de santo ou quando o terreiro se desfaz por outro motivo, se restabelece a lógica do quilombo que a todos acolhe e dá guarida: o filho de santo sai à procura de outro terreiro onde sente afinidade e por vezes o encontra numa linhagem religiosa diferente. O que fazer com as "obrigações" que trouxe de outro terreiro? Não tem problema. O pai ou mãe de santo sabe o que fazer. No dia certo, todos os seus irmãos de santo se reúnem, depois de tudo preparado, para ajudar o filho de santo no cumprimento de sua obrigação e assim vemos o novo filho de santo cultuando, por exemplo, seu Preto Velho, num barracão de Candomblé que até então só trabalhava pelos Orixás.
E assim vai.. sei tão pouco desse tão vasto universo! Dizem que é muito mais vasto do que as Ciências todas juntas.
Mas, é o universo do acolhimento, como o foi o quilombo, que dava asilo a todo escravo fugido, oferecendo a ele uma terra para plantar e um povo companheiro, para compartilhar suas lutas contra a escravidão. Assim também, todo descendente de escravo ou homem livre, que hoje em dia tem mais dificuldade de acesso à terra, pelo menos ao procurar refúgio num terreiro, mesmo que saindo de outro terreiro, encontra acolhimento não apenas para sua pessoa, mas também para todas as pessoas que foram incorporadas na sua cabeça e sua nova família de santo o ajuda nesse trabalho que o acompanha por toda uma vida, de dar graças, com dedicação e arte, a uma densa estratificação de identidades que o trouxeram ao mundo.
Isso é Brasil. O resto é uma miséria - em todos os sentidos da palavra. O que fizeram com essa menina de onze anos de idade é uma miséria espiritual.
Inês Rosa Bueno
Antropóloga
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