Mar de lama: a mídia e o golpe
Mandou todos os escrúpulos ao cesto de lixo, abandonou inteiramente o jornalismo, ignorou a ética da profissão, partidarizou-se de modo obsceno ao lado dos golpistas
- Opinión
Está lá no memorável Chatô, o Rei do Brasil, o livro de Fernando Morais, não o filme recente. Adhemar de Barros, aquele do “rouba, mas faz”, dias antes de 1º de abril de 1964 visita Assis Chateaubriand, ele, o Chatô, e lhe fala sem rodeios: vai chover merda, a revolução está nas ruas – revolução era o golpe. Este sempre recebe nomes variados, a depender da imaginação dos participantes. Pode levar o nome de impeachment, pode ser conduzido por malfeitores, tudo pode em golpes. Pode ter outro nome, se a situação requerer.
Pois é, iria chover merda. Adhemar não era dado a protocolos civilizatórios.
Merda – era o que vinha por aí.
O golpe estava nas ruas, dizia Adhemar para Chatô, e ninguém garantia que fossem eles os vencedores, como alertou.
“Se não triunfarmos, seremos fritados como pastel chinês.”
Propôs a Chatô, um dos entusiastas da quartelada, como toda a mídia, salvo a Última Hora, que fosse embora do país ou se escondesse em algum lugar seguro.
“Se tudo der certo, dentro de uma semana o senhor retorna.”
Chatô, já numa cadeira de rodas, recusa.
Ninguém prenderia um morto-vivo, definição dele mesmo.
Morto-vivo, mas golpista ativo.
Golpista pode estar nas últimas, mas continua golpista.
E, de fato, choveu merda.
O golpe se consumou.
E a mídia, se reclamou um pouquinho, foi sempre de uma cumplicidade doentia com 21 anos de ditadura.
Mídia e golpe, tudo a ver.
Sempre.
Quem quiser saber mais vá às páginas 651 e 652, da edição de 1994, da Companhia das Letras. Tenho o livro em casa, relíquia, edição já de páginas amareladas, marcas do tempo. Se não leu, melhor fazer a viagem pelas mais de setecentas páginas, uma leitura deliciosa, própria de um biógrafo incomparável, para além de um homem de coragem, como tem demonstrado na crise atual.
E se é para falar de mídia golpista, “mar de lama” era a expressão utilizada pela mídia nos anos 1950 para caracterizar o governo de Getúlio Vargas, como se vivesse ele de manobras e articulações corruptas, acusação absolutamente desprovida de veracidade. Aqui, a mídia golpista, ou parte dela, com o suicídio de Getúlio, teve que enfiar o rabo entre as pernas e sair correndo – Lacerda foi dos primeiros a escapar, antes que o povo em fúria o pegasse. Multidões ensandecidas caçavam golpistas por todo o país. O único jornal ao lado de Getúlio, a Última Hora, era disputada a tapa em 24 de agosto de 1954.
Em 1964, o Correio da Manhã desembestou pedindo o golpe. Apelava à espada: viesse em socorro da burguesia e do próprio jornal. Queria a derrubada de um governo constitucional. Que se danassem quaisquer escrúpulos, à moda do ministro Passarinho, quando assinou o AI-5 em dezembro de 1968.
Foram emblemáticos os editoriais “Chega”, “Basta” e “Fora” do jornal, nessa ordem. Não se avexava de ser golpista.
Orgulhava-se, parece. Estufava o peito, empertigava-se, à moda militar, como requeria o espírito do tempo.
Mais tarde, será massacrado pela própria ditadura porque alguns de seus colunistas começaram a escrever denunciando o clima de arbítrio do regime. Descobriu que ditadura era ditadura, ora, ora.
Sempre lembro Marx: a burguesia chama a espada; depois a espada a domina. Lição de O Dezoito de Brumário.
Patético ver hoje um Carlos Heitor Cony, preso por não sei quantos dias pelos militares por conta de seus textos no Correio da Manhã, xingar de forma tão desrespeitosa as figuras da presidenta Dilma e do ex-presidente Lula. Recuperou o espírito golpista dos dias anteriores a 1964.
Sintetizo: o golpe de 1964 foi não só festejado pela esmagadora maioria da mídia brasileira como foi articulado por ela junto aos militares. Veículos importantes como O Globo, Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, o próprio Correio da Manhã, além da cadeia de revistas, estações de rádio e TV dos Diários Associados, do Chatô, entraram de corpo e alma naquele golpe cujo resultado seria provocar uma chuva de merda, como o definiu com propriedade Adhemar de Barros.
Chuva de merda e sangue, prisões, mortes na tortura, desaparecimentos políticos.
Quanto à mídia e sua participação na preparação do golpe e na sustentação da ditadura há vasta bibliografia disponível a respeito. Eu próprio acabo de lançar Intervenção da Imprensa na Política Brasileira (1954-2014), pela Fundação Perseu Abramo, evidenciando a tradição golpista dos empresários da comunicação, contando naturalmente, em muitos momentos, como agora, com a conivência e militância de jornalistas envolvidos na mesma tradição.
E agora, José?
Espada, não há mais.
Ou ao menos está na bainha.
Não quer mais se envolver.
Quer respeitar a Constituição.
As vivandeiras dos quartéis, aquelas acostumadas a recorrer aos militares para os golpes, mídia incluída, ficaram órfãs, tristes por não contarem mais com as Forças Armadas.
Passaram a rondar os tribunais, a incensar juízes salvadores da pátria, a endeusar aquela parte que lhes interessava no Ministério Público. Como estamos em tempos de judicialização da política, nada melhor do que procurar brechas no sistema de justiça. Achou-as.
Os golpistas, mídia incluída, sempre fecharam os olhos para quaisquer acusações contra os que estivessem ao lado deles – e o caso do presidente da Câmara é exemplar. Torna-se quase ídolo da mídia hegemônica. Ela já naturalizou a negociação que pretende, num já anunciado governo Temer: tirar Cunha da Presidência e salvar o mandato dele.
Falta “combinar com os russos” – não está dada a vitória do golpe.
O povo brasileiro está resistindo.
O escandaloso, e naturalizado, é um cidadão acusado formalmente por tantos crimes de corrupção ser o comandante de um golpe, e passar ileso diante da mídia, inteiramente envolvida novamente numa conspiração contra a democracia. Mas escândalos são sempre seletivos, e nem sempre têm a ver com a realidade. É a lógica da era midiática.
A mídia, na escalada golpista iniciada em 2005, e acelerada desde a segunda eleição da presidenta Dilma, agora lança o que pretende ser a ofensiva final, corroborando, fazendo eco, de quaisquer iniciativas que deponham Dilma e interditem Lula. Bate tambor pelo impeachment.
Faz uma blitzkrieg de grande intensidade. Desenvolve um ataque cerrado, com toda brutalidade, concentrando neste momento seus ataques em Dilma, não lhe importa a inexistência de crime. Desenha o cenário apocalíptico de um Brasil em estado terminal na economia, se, e apenas se, o PT continuar a governar o Brasil.
O principal aríete do golpe é sem dúvida a mídia.
Já naturalizou o golpe, o abençoou, já chama Temer de presidente, apesar do fato de ele não ter tido um único voto para tanto e de ter adotado procedimentos iguaizinhos aos invocados pelos golpistas para tentar impor o impeachment. Se Dilma é culpada, e não é, ele também o seria. Mas a mídia não se envergonha nunca de adotar dois pesos e duas medidas.
Mandou todos os escrúpulos ao cesto de lixo, abandonou inteiramente o jornalismo, ignorou a ética da profissão, partidarizou-se de modo obsceno ao lado dos golpistas, esqueceu quaisquer acusações a alguns dos principais líderes do movimento contra a democracia. Até as palavras de 1964 voltam ao proscênio: “Basta!”, por exemplo, foi usada esses dias pelo Estadão, e esta foi usada para o título de um dos editoriais do Correio da Manhã nos dias imediatamente anteriores ao golpe, como já dissemos.
A mídia é um partido político no Brasil, que ninguém duvide. Se Obama está certo ao qualificar a Fox News de partido político, imaginem nós, no Brasil, numa situação em que há um golpe em andamento que cavalga a galope.
Penso que a atitude golpista da mídia está atrelada a dois aspectos. O primeiro é sua vocação voltada ao golpe desde sempre, porque estruturalmente vinculada às classes dominantes, integrando-as e defendendo os seus interesses, porta-voz do que a casa-grande tem de pior, na política e nos costumes, na cultura. O segundo é que a mídia hegemônica vive uma crise de grandes proporções do ponto de vista econômico. Precisa de um governo capaz de responder a suas reivindicações de varejo, que lhe encha as burras de modo a salvá-la da bancarrota iminente.
Não por acaso, tem demitido profissionais a torto e a direito, e isso vale tanto para a mídia impressa quanto para a audiovisual. Não consegue se adequar aos novos tempos, e busca uma tábua de salvação que a livre do naufrágio, nem que por algum tempo. Nem se diga que os governos de Lula e Dilma não a tenham ajudado – ajudaram e muito. E não toparam enfrentar a regulação de tal mídia, aproximar-se da legislação dos principais países democráticos do mundo. Mas ela é insaciável. Quer mais e mais, e especialmente quer um governo que pratique a política neoliberal que sempre defendeu.
A internet a deixou nua. Por mais que detenha poder, e detém, não fala mais sozinha. A mistificação que desenvolve cotidianamente, a falsidade que divulga, a pirotecnia que faz em cima de mentiras, hoje, são desmontadas imediatamente pelos sites e blogs progressistas, que ela acusa serem financiados pelos governos, como se ela não recebesse milhões dos cofres públicos. Os sites e blogs progressistas, aqueles que são agraciados, recebem centavos diante da fortuna com que ela é beneficiada.
Mas ela quer mais.
Pela política, pela economia, inclusive a sua própria economia, pelo horror que tem às classes populares e a governos reformistas, ela quer derrotar a experiência do projeto político iniciado em 2003, que mudou a vida de milhões de brasileiros.
Está em jogo, outra vez, o destino da democracia.
A mídia tem lado: o do golpe.
Foi derrotada em quatro eleições.
E se o povo continuar nesse crescendo de mobilizações, vai derrotá-la de novo, e o golpe não passará. Se quiser que o seu partido ganhe, terá que esperar 2018.
- Emiliano José é jornalista membro do Conselho de Redação de Teoria e Debate.
Edição 146, 30 março 2016
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