A mídia está acima da nação
- Opinión
Em recente entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha, a presidente Dilma Rousseff observou que o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha declarava ter feito negociações com “os interessados” sobre uma lei para democratização econômica dos meios de comunicação. Dilma disse que o Brasil precisa restringir a concentração excessiva da mídia nas mãos de poucos grupos, pois isso prejudica a democracia.
Perguntada sobre por que não falou desse assunto quando estava no governo, Dilma respondeu: “Falei duas vezes durante a campanha e uma vez depois. Diziam: manda uma lei. Eu vou mandar uma lei para perder, é? Porque uma das coisas que o senhor Eduardo Cunha dizia para quem quisesse ouvir é que ele tinha feito uma negociação e que essa proposta não passaria”. A jornalista quis saber com quem fora essa negociação e Dilma respondeu: “Com os interessados, querida”. Bergamo insistiu e perguntou quem eram esses interessados e Dilma pisou no freio: “Ah, não, aí você pergunte para ele. Eu dei murro em ponta de algumas facas. Mas eu não tenho como dar murro em todas as facas”.
Debate proibido
É um trecho curto, mas suficiente para mostrar como o assunto é sensível, cercado de um medo sobrenatural. Mesmo as autoridades consideradas mais poderosas recuam encurvadas e encerram a conversa. O fato é que há décadas está proibido o debate sobre a ação da mídia nos limites do funcionamento da República, uma vez que o autocontrole na prática inexiste. Não há interesse nem neutralidade dos meios de comunicação no tratamento do assunto.
Dos “poderes” do Brasil a mídia é o primeiro. Nas crises, ela influencia a opinião pública, dita a ação dos outros poderes. Essencial para a saúde da democracia, ela é a menos democrática, a mais refratária, fechada em suas certezas. É muito menos transparente do que o Executivo, o Legislativo e até mesmo que o Judiciário. A própria mídia não se abre, o Judiciário é seu parceiro e no Legislativo a bancada dos parlamentares donos de canais e repetidoras de TV é uma das mais poderosas. A mídia está acima da nação.
Não se discute a mídia na própria mídia. Um acordo tácito leva a que os veículos não se critiquem entre si. Não há contraditório, ou seja, não há competição sobre conteúdo. Mesmo Dilma (e Lula também) depois de todas as crises que a soterraram, depois de enfrentar a prisão, a tortura e o impeachment, recusa-se a responder com naturalidade uma pergunta sobre com quem Cunha (sempre ele) se associa para barrar a regulação econômica.
A mídia é coautora da derrubada de um governo eleito com base num pretexto, e em decorrência entregou o poder a um grupo político que era o beneficiário central no assalto ao Estado. Na mídia fala-se de tudo, menos de que ela mesma beneficiou esse grupo, o qual assumidamente participou de um complô visando “estancar a sangria” de investigações da Lava Jato na Justiça. Por meio de um golpe parlamentar, coroando uma campanha de massacre, a mídia afastou uma presidente que, até prova em contrário, permitia investigações contra a corrupção. Fala-se da participação do Executivo na corrupção, submete-se o Legislativo, critica-se o Judiciário, desentranham-se as empresas corruptoras, mas a mídia é intocável.
O assunto proibido só surge assim, como que por descuido, em trechos finais de entrevistas, de maneira esquiva, cheio de escusas, em alusão fortuita, não introduzido pela repórter. O tema da mídia é uma espécie de resto. É o que fica de fora das conversas, sussurrado, mesmo quando todas as entranhas (até algumas que não existem) estão expostas. Enquanto o país é passado a limpo, como se diz, fica algo sob a terra, aquilo que só invade a conversa como resultado de um lapso, de ato falho, na emergência de uma verdade recalcada no inconsciente nacional. O assunto mais importante é o mais evitado.
Fim do discurso único
Enquanto ninguém fala, o tema grita: a necessidade da regulação econômica da mídia. Econômica não, pois o que mais interessa ao país não é uma idílica repartição produtiva da mídia. Não interessa uma mera multiplicidade de proprietários, com limites à propriedade cruzada e à oligopolização do setor. Interessa que haja pluralidade político-ideológica mais representativa das correntes de opinião e dos valores éticos em disputa no país. Interessa acabar com o discurso único, a manada.
Um verdadeiro pluralismo informativo é a quimera vital para a democracia, ainda mais depois da inundação manipulatória e seletiva que levou a este golpe midiático-parlamentar. Só assim o país poderá enfrentar suas mazelas sem dar vazão aos instintos autoritários que levam nosso jornalismo a protagonizar a quinta tentativa de golpe em seis décadas (54, 55, 61, 64 e 2016). Sobre isso não há como subestimar o papel dos envolvidos: editores, repórteres ou empresários colaborando para projetar o jornalismo pátrio como um dos menos imparciais, talvez o pior do mundo “livre”.
*Mario Vitor Santos é diretor da Casa do Saber (São Paulo),mestre em Drama Antigo e Sociedade, pela Universidade de Exeter (Inglaterra) e doutor em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo.
Título original: De mal a pior, publicado originalmente da edição abril/maio/junho de 2016 da Revista de Jornalismo ESPM.
2 de agosto de 2016
http://www.vermelho.org.br/noticia/284465-1
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