Empresas de internet começam a sentir no bolso desdém pela privacidade
- Opinión
Não é a primeira vez que as redes sociais recebem críticas, mas só agora começam a sentir efeitos no bolso. O escândalo do vazamento de dados do Facebook para a campanha de Donald Trump fez seu valor de mercado cair 14%, ou 74,6 bilhões de dólares, em uma semana, mais do que valem empresas como a GM ou a Vale.
Pior que o Snapchat, cuja divulgação de um joguinho no qual se propunha bater em Rihanna ou em Chris Brown (casal separado em 2009 após violência doméstica partida do segundo), lhe custou um boicote promovido pela cantora e por fãs e artistas solidárias e uma perda de 11% (2,4 bilhões) em duas semanas. O Facebook também sofre um início de boicote, animado pelos atores Jim Carrey e Téa Leoni, ao qual aderiram empresas como Mozilla, Commerzbank, Sonos, Pep Boys, SpaceX e Tesla.
Há duas semanas, o lema das redes poderia ter sido o oposto daquele do Homem-Aranha: “Grandes poderes, zero responsabilidade”. Ante empresas e políticos, gabavam-se de sua virtual onipotência sobre comportamentos de consumidores e eleitores, de sua notória onipresença em todos os setores da sociedade e de sua efetiva onisciência sobre hábitos, crenças e gostos de cada um de seus usuários.
Há um ano, uma equipe da Anistia Internacional revelava que uma empresa, Exact Data, apregoava uma base total de 200 milhões de “contatos” dos Estados Unidos que podiam ser filtrados por 450 categorias – por exemplo, “hispânicos não assimilados” – e oferecia dados sobre 1,8 milhão de muçulmanos por exatos 138.380 dólares.
O relatório teve pouca repercussão na época, mas recentemente uma reportagem do The Intercept revelou que o governo Trump de fato usa dados do Facebook para perseguir imigrantes sem documentos.
Ao mesmo tempo, junto às pessoas comuns, essas mesmas empresas que as consideravam como sua propriedade e mercadoria se apresentavam como plataformas neutras de utilidade pública, de modo a ignorar as críticas e as tentativas de regulamentação.
Isso ficou mais difícil ante a evidência de que o uso dos dados do Facebook pela Cambridge Analytica, empresa privada de capital estadunidense e britânico cuja controladora SCL trabalhou para a Otan, foi muito mais decisiva para as vitórias do Brexit e de Trump do que o Kremlin, conforme os depoimentos de seu ex-diretor de Pesquisa Christopher Wylie. Não foi a única: segundo ele, a canadense AggregateIQ usou os mesmos dados para rastrear potenciais eleitores republicanos.
Também os avanços da ultradireita em várias partes do continente europeu parecem ter sido pelo menos em parte devidos a esse tipo de campanha. Ao jornalista do Channel 4 que se fez passar por representante de um político do Sri Lanka, um executivo da própria Cambridge Analytica gabou-se de atuações no México, Argentina, Brasil (“essa foi grande”, acrescentou, eufórico), Índia, Tchéquia, Nigéria e Quênia. Na Nigéria, trabalhou com hackers israelenses para tentar (sem sucesso) mudar o resultado das eleições de 2015. No Quênia, teria sido decisiva para a vitória do presidente Uhuru Kenyatta.
Em todos os casos, a consultoria trabalhou para a direita ou a extrema-direita. Não é só uma questão de inclinação pessoal do sócio Robert Mercer e da equipe que levou à empresa, inclusive Steve Bannon, mas também da cultura “libertarian”, tecnocrática, elitista e antidemocrática que emergiu do neoliberalismo desde os anos 1990, com forte contribuição do Vale do Silício e dos aventureiros da internet, com sua pretensão de tornar os governos obsoletos e eliminar problemas sociais e políticos por meio do mercado e de soluções tecnológicas, obsessão da qual o Bitcoin é um dos sintomas.
Pela bem-sucedida campanha de Trump a Cambridge Analytica recebeu da Advertising Research Foundation, associação de publicitários e marqueteiros dos EUA, o Prêmio Ogilvy de 2017 (alusão a David Ogilvy, pai da publicidade moderna e da pesquisa de mercado).
Desta vez, as denúncias acordaram governantes e políticos de várias partes do mundo e mudaram o viés da mídia da noite para o dia. Até então, a coleta e venda de dados de usuários pelas empresas de internet – devidamente autorizada pelos longos e obscuros contratos que cada usuário clica sem ler ao assinar um serviço ou comprar uma mercadoria – era vista como uma transação totalmente legítima, apesar de, como apontou o crítico das redes Evgeny Morozov, usar esse “capitalismo de vigilância” possibilitado pelo extrativismo de dados para vender produtos ruins não ser melhor do que usá-los para vender políticos idem.
Aleksandr Kogan, o acadêmico que nos EUA serviu de ponte entre a rede e a consultoria, que patrocinou sua pesquisa (e o custo de 800 mil dólares do desenvolvimento do aplicativo thisisyourdigitallife por ele concebido e utilizado) em troca dos dados de 50 milhões de estadunidenses, tem certa razão em se dizer bode expiatório de uma prática na época vista por todos como normal.
Que o acadêmico tenha vazado os dados e a Cambridge Analytica deixado de atender ao pedido pró-forma do Facebook para deletar os dados não era sequer uma transgressão punível. A rede de Zuckerberg não alertou os usuários, não tomou qualquer providência para verificar se os dados tinham sido mesmo eliminados e por três anos manteve as contas de Kogan e da empresa até a denúncia chegar a público, em 16 de março.
Lucros e prejuízos são, porém, muito mais concretos e agora estes também entram em pauta. Duas pesquisas de opinião publicadas nos dias 24 e 25 mostram a queda de confiança do público. Cerca de 60% dos alemães receiam que as redes sociais tenham um impacto negativo sobre a democracia e apenas 41% dos estadunidenses confiam no Facebook para acatar as lenientes leis de privacidade dos EUA, embora 62% ingenuamente ainda confiem no Google, 66% na Amazon e 60% na Microsoft.
Em tese, se as redes perderem a confiança dos usuários que o presenteiam com seus conteúdos e dados, estão perdidas. Na prática, não é assim. Abandonar a internet, ou mesmo apenas as redes sociais, é tão realista para a maioria dos usuários quanto abandonar a energia elétrica.
Se não pela utilidade real como meio de comunicação e informação, pelas pressões de instituições para que as pessoas nelas entrem e permaneçam – bancos, comércio, empresas e órgãos públicos cada vez mais exigem que seus serviços sejam acessados pela internet, quando não pelas redes –, pelo interesse do governo dos EUA (principalmente) em usá-las para vigiar populações e obter informações políticas e econômicas e pelas pressões de amigos e parentes pela entrada e permanência nas redes sociais.
Entretanto, ante a ameaça à própria estabilidade política do Ocidente, a era do faroeste informático pode estar chegando a um fim. Até aqui, predominaram dois modelos. Na China, centralista e estatal: o governo detém os dados dos cidadãos e cada vez mais os usa não só para vigiá-los, como também para manipular emoções, comportamentos e desejos e regular privilégios e vida social.
No Ocidente, anarcocapitalista: agentes privados, alguns deles praticamente monopolistas em seus setores, outros com certo grau de concorrência entre si, fazem exatamente o mesmo. Por mais que Facebook, Google, Amazon e outros gigantes do setor resistam, um meio-termo será agora procurado com mais empenho.
A Europa deu o primeiro passo na direção de um modelo de regulamentação da privacidade e das responsabilidades das empresas da internet pela segurança dos dados de usuários, com algum controle democrático de suas operações.
A partir de 25 de maio de 2018, entra em vigor na União Europeia um Regulamento Geral de Proteção de Dados. Todas as empresas envolvidas com a manipulação e tratamento de dados de usuários estarão submetidas a novos requisitos legais.
As empresas serão obrigadas a criar configurações de privacidade em seus produtos e propriedades digitais, realizar regularmente avaliações de impacto de privacidade, e explicar como buscam permissão para usar dados e documentar como os utilizam.
O usuário deve poder retirar o consentimento a qualquer momento, sua retirada deve ser tão simples quanto sua concessão e deve poder acessar, corrigir e apagar os seus dados pessoais, mesmo que o processamento ocorra fora da União Europeia. Não basta, mas é um começo.
Não foi por acaso que Mark Zuckerberg recusou comparecer ante a Comissão de Inquérito do Parlamento britânico que investiga o caso Cambridge Analytica, mas se prontificou a ir ao Congresso dos EUA.
Além da circunstância de este estar controlado pelos maiores beneficiários do vazamento, a ideologia dominante de Washington há muito é favorável a pôr os direitos das empresas acima daqueles dos cidadãos e sua estratégia econômica e militar depende de espionar dados de pessoas e empresas de todo o mundo.
O Vale do Silício, no início, torceu o nariz às restrições à imigração de Trump que ameaçavam dificultar a contratação de profissionais competentes e baratos, mas agora sua política de confronto com o resto do mundo e defesa aberta dos interesses das transnacionais estadunidenses vem a calhar.
Entretanto, o simples fato de o criador do Facebook responder a representantes do povo, alguns dos quais da oposição, é uma novidade. Ao contrário dos usuários da rede, até agora Zuckerberg sempre foi muito cioso de sua imagem e privacidade e só falou em público ou trocou ideias com políticos em circunstâncias por ele manipuladas.
18/04/2018
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