Intercept Brasil revela o nosso Watergate
- Análisis
“A gente abre esta edição com informações de um acidente GRAVE que aconteceu no fim da noite de ontem em São Paulo. Um ônibus DESGOVERNADO que saía de Campos do Jordão com destino a Cubatão, na Baixada Santista, bateu em cinco carros, uma moto e depois ainda capotou”. Morreram dez pessoas, 51 ficaram feridas.
Desde as seis da tarde de domingo, 9 de junho, circulava o primeiro lote da série de reportagens nas quais o Intercept Brasil começava a revelar o nosso Watergate: mostrava, “entre outros elementos, que os procuradores da Lava Jato falavam abertamente sobre seu desejo de impedir a vitória eleitoral do PT e tomaram atitudes para atingir esse objetivo; e que o juiz Sergio Moro colaborou de forma secreta e antiética com os procuradores da operação para ajudar a montar a acusação contra Lula. Tudo isso apesar das sérias dúvidas internas sobre as provas que fundamentaram essas acusações e enquanto o juiz continuava a fingir ser o árbitro neutro neste jogo”.
Reportagens com um potencial devastador, capaz de derrubar o governo, mas que só começaram a repercutir na mídia tradicional mais de três horas depois, ainda assim muito timidamente.
Na manhã seguinte, o Bom Dia Brasil, da Rede Globo, abriu a escalada suavizando a denúncia: falava na divulgação de “trechos de mensagens atribuídas” a procuradores e ao então juiz extraídos do Telegram e enfatizava que o material teria sido obtido com um hacker, “o que é crime”. Mas não entrou logo no assunto: preferiu começar o noticiário com a reportagem sobre o grave acidente de ônibus. Só por volta dos 9 minutos apresentaria a matéria, reproduzindo algumas dessas mensagens, junto com imagens de arquivo. Em seguida, passaria à previsão do tempo.
Desde a véspera, a julgar pela edição do Fantástico – que explorou largamente os desdobramentos da acusação de estupro contra Neymar e deixou para o fim a referência ao escândalo revelado pelo Intercept –, o tom adotado pela Globo seria este: evasivo em relação à veracidade das conversas (as mensagens são “atribuídas” àquelas fontes, ainda que não tenham sido desmentidas) e incisivo quanto à possível origem criminosa do vazamento, caso se confirmasse a ação de um hacker.
(A história do hacker foi noticiada no início do mês pela Folha de S.Paulo: Sergio Moro disse que seu celular havia sido invadido no dia 4 de junho e pediu abertura de investigação à Polícia Federal. O Intercept Brasil, entretanto, assegura que foi procurado bem antes disso por uma fonte ansiosa por entregar o material a jornalistas, e que, portanto, a origem do vazamento não é essa).
O site afirma estar de posse de um vasto material comprometedor extraído do Telegram da força-tarefa. As conversas entre Moro e Dallagnol compreendem um período de dois anos, entre 2015 e 2017. Outras são relativas a um grupo de procuradores, o FT MPF Curitiba, totalizando “o equivalente a um livro de 1.700 páginas”. As primeiras reportagens mostram que os procuradores agiram abertamente para impedir a vitória do PT nas eleições, que não tinham segurança sobre as provas contra Lula no caso do triplex do Guarujá e forçaram a barra para garantir que o caso fosse vinculado à Petrobras e ficasse nas mãos de Moro, e que Moro várias vezes colaborou para instruir a acusação, a ponto de usar a primeira pessoa do plural numa das conversas sobre a melhor forma de responder às “notas malucas do diretório do PT”. O jornal assinala que esse “deslize de linguagem” revelava “como a acusação e o juiz, que deveria avaliar e julgar o trabalho do MP, viraram uma coisa só”.
Esse desvio já havia sido denunciado por juristas como Eugênio Aragão, o último – e breve – ministro de Dilma Rousseff. No texto que escreveu para o livro O Caso Lula, ele explicava o caráter inconstitucional de uma força-tarefa na qual polícia, procuradores e juiz fossem parceiros de uma mesma empreitada e se protegessem reciprocamente em nome da necessidade do rigor no combate à corrupção: “se os três atores públicos se mancomunam, ao invés de se controlarem sucessivamente, o jurisdicionado fica sem ter a quem recorrer contra eventuais abusos articulados”. Era uma violação do princípio do amplo acesso à justiça e da garantia do devido processo legal. Foi precisamente o que o Intercept conseguiu demonstrar agora.
A mídia tradicional demorou algumas horas a repercutir a série e o fez com cautela, falando em “supostas denúncias” e em “mensagens atribuídas a procuradores da Lava Jato”. Como ainda não se tem ideia da extensão do material em mãos do Intercept – mas que, segundo o jornalista Glenn Greenwald, “é um dos maiores da história do jornalismo”, com “segredos explosivos em chats, áudios, vídeos, fotos e documentos sobre @deltanmd, @SF_Moro e muitas facções poderosas” –, não é possível calcular o tamanho do abalo que poderá causar. A revista Época, entretanto, deu uma pista sobre os motivos pelos quais o centro do poder estaria em pânico:
“Se os jornalistas do Intercept Brasil de fato tiveram acesso a todo o arquivo do Telegram de Moro, qualquer pessoa pública – do STF, do MPF, do Planalto ou de partidos políticos, entre outros – que tenha trocado mensagens com Moro poderá passar por momentos constrangedores para explicar eventuais transgressões, vieses ou simplesmente palavras mal colocadas”.
Entre esses “outros”, faltou mencionar jornalistas que tenham eventualmente mantido conversas, digamos, pouco republicanas com suas fontes, de modo que o pânico pode estar atingindo a própria mídia.
A reação dos diretamente afetados foi a de tentar associar os jornalistas do Intercept ao crime de invasão de privacidade praticado por um hacker e, ao mesmo tempo, vinculá-los a “interesses inconfessáveis de criminosos atingidos pela Lava Jato”, além de denunciar a hipótese de deturpação e descontextualização de fatos e de disseminação de fake news. Tal é o sentido da nota publicada pelo Ministério Público Federal do Paraná, que ao mesmo tempo investe na vitimização e na exaltação dos integrantes da força-tarefa, garantindo que eles “não vão se dobrar à invasão imoral e ilegal, à extorsão ou à tentativa de expor e deturpar suas vidas pessoais e profissionais”.
Apesar das evidências em contrário – e o teor das conversas não é desmentido –, o MPF afirma que não houve qualquer irregularidade: “Há a tranquilidade de que os dados eventualmente obtidos refletem uma atividade desenvolvida com pleno respeito à legalidade e de forma técnica e imparcial, em mais de cinco anos de Operação”.
Moro demorou um pouco mais para se pronunciar mas, pelo visto, também está muito tranquilo. Ou talvez não tenha atinado com a gravidade da situação, dado o tom que adota:
“Sobre supostas mensagens que me envolveriam publicadas pelo site Intercept neste domingo, 9 de junho, lamenta-se a falta de indicação de fonte de pessoa responsável pela invasão criminosa de celulares de procuradores. Assim como a postura do site que não entrou em contato antes da publicação, contrariando regra básica do jornalismo. Quanto ao conteúdo das mensagens que me citam, não se vislumbra qualquer anormalidade ou direcionamento da atuação enquanto magistrado, apesar de terem sido retiradas de contexto e do sensacionalismo das matérias, que ignoram o gigantesco esquema de corrupção revelado pela Operação Lava Jato”.
Já o ministro Marco Aurélio Mello vislumbra: entrevistado pela Folha de S.Paulo, disse que a troca de colaborações entre Moro e Dallagnol põe em xeque a equidistância da Justiça. E, na revista Exame, o professor e pesquisador da FGV Sérgio Praça escreveu que, diante daquelas revelações, Moro precisaria renunciar.
Foi modesto. Outros foram mais incisivos, como o professor de ciência política da UnB, Luis Felipe Miguel, que, no Facebook, disse: “Em um país menos indecente, [as reportagens] levariam à libertação de Lula, à prisão de Moro e Dallagnol e à queda do governo”. Por que à queda do governo? Porque, se o processo que condenou Lula foi irregular, as eleições também foram, pois excluíram o concorrente que, por acaso, liderava folgadamente as pesquisas, mesmo já preso. Logo, seria preciso convocar novas eleições para começar a recuperar a base da normalidade democrática perdida desde o golpe de 2016.
O feitiço e o feiticeiro
Não deixa de ser curioso, entretanto, que tanto o MPF quanto Moro venham agora brandir o sagrado direito à privacidade quando eles próprios o desrespeitaram, seja no grampo ilegal que abrangeu todos os 25 advogados do escritório que defendia Lula (o que envolveu conversas com pelo menos 300 clientes e telefonemas de funcionários e estagiários), seja na autorização para a divulgação de outro grampo ilegal, o da conversa entre Lula e Dilma (pois a presidenta não poderia ter o sigilo telefônico quebrado, a não ser por ordem do STF), que está na origem do recrudescimento das manifestações que culminaram no golpe, seja, nesse mesmo momento, na divulgação de conversas de Lula que não tinham qualquer relação com a Lava Jato.
Note-se, a propósito, como Dallagnol e Moro se referem ao caso do telefonema entre Lula e Dilma, no trecho destacado pelo Intercept:
Não se arrepende, mas precisou pedir “escusas” quando interpelado pelo ministro Teori Zavascki – aquele que meses depois morreria na queda de uma aeronave – sobre a impropriedade da decisão.
Valeria a pena recordar, também, que nesse episódio Moro justificou assim sua atitude: “A democracia em uma sociedade livre exige que os governados saibam o que fazem os governantes, mesmo quando estes buscam agir protegidos pelas sombras”.
Pois então, se é o direito de saber que está em jogo e se – como tuitou Dallagnol, lembrando a declaração de René Ariel Dotti – “no conflito entre direito à informação sobre crime grave e direito à privacidade, ganha o interesse público”, qual é a dúvida?
A dúvida, na verdade, são muitas, porque é claro que há uma série de questões envolvidas nessas situações que dizem respeito à forma pela qual se produzem as provas e ao próprio interesse da fonte que vaza informações. Porém, é claro que, como tantos criticavam desde o início, a propaganda em torno da Operação Lava Jato – e de iniciativas “saneadoras” correlatas, como a das Dez Medidas contra a Corrupção – procurava legitimá-la junto à opinião pública justamente desconsiderando o respeito aos direitos que atrapalhassem a obtenção de provas. Era esse o teor do artigo que Moro escreveu, no longínquo ano de 2004, em elogio à Operação Mãos Limpas: a criminalização da política, pela associação dos políticos de modo indistinto à prática da corrupção, que na Itália deu em Berlusconi e no Brasil deu no que está dando.
Talvez o ex-juiz, atual ministro, e seus parceiros do MPF percebam agora que não poderiam ter desrespeitado as garantias constitucionais em nome de um suposto bem maior.
Seja como for, a julgar pelo que informou o Intercept, não sofrerão as mesmas consequências que provocaram contra seus acusados: de acordo com o site jornalístico, os critérios que orientam a divulgação do extenso material obtido segue “o padrão usado por jornalistas em democracias ao redor do mundo: as informações que revelam transgressões ou engodos por parte dos poderosos devem ser noticiadas, mas as que são puramente privadas e infringiriam o direito legítimo à privacidade ou outros valores sociais devem ser preservadas”.
No texto de abertura das reportagens, em que explicam o método e os motivos de estarem publicando esse material, os jornalistas dizem que tomaram medidas “para garantir a segurança deste acervo fora do Brasil, para que vários jornalistas possam acessá-lo, assegurando que nenhuma autoridade de qualquer país tenha a capacidade de impedir a publicação dessas informações”. Cuidados próprios de quem sabe o peso político que o jornalismo tem e as represálias que pode sofrer quem ousa desafiar o poder.
Por isso, também, o Intercept disse que contrariou suas próprias regras e deixou para ouvir os envolvidos apenas após a divulgação das reportagens, “para evitar que eles atuassem para impedir sua publicação e porque os documentos falam por si”.
Transbordando ironia nos seus comentários no twitter, Greenwald comemorou a chegada da hashtag #VazaJato ao topo dos trending topics com a exclamação que Bolsonaro costuma utilizar:
Também no Twitter, Leandro Demori, outro dos jornalistas responsáveis pela série, escreveu: “Foram semanas tensas e intensas. O público precisa saber como agiu a autointitulada maior operação anticorrupção da história do Brasil. Ainda falta muita coisa pra contar, e nós iremos”.
A série tem o potencial explosivo de um Watergate. Se conduzirá ao mesmo desfecho, só o tempo dirá.
Por falar nisso, qual é a previsão do tempo? O Brasil venceu a Jamaica no futebol feminino, goleou Honduras, o caso Neymar deve esfriar.
E dia 14 tem greve geral.
- Sylvia Debossan Moretzsohn é professora aposentada da UFF, pós-doutoranda na Universidade do Minho e pesquisadora do objETHOS.
Publicado originalmente em objETHOS
edição 1041, 11/06/2019
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