No mundo onde cresci, protestar contra violações é ser de esquerda
30/01/2014
- Opinión
Assombrosas algumas das reações aos protestos que questionam a organização da Copa do Mundo no Brasil. Não por apontarem incoerências, contradições ou desacordos com os manifestantes, mas por qualificá-los de antemão como terroristas ou “contra o Brasil”. Reações que partem do fígado são muitas vezes assim, acabam turvando a realidade. E esse profundo ciclo de desinformação (intencional ou não), requer, a meu ver, algumas pontuações:
1- O famoso “Não vai ter Copa” é um slogan, muito mais de sentido simbólico do que prático. Podemos concordar ou discordar, achá-lo adequado ou não, certeiro ou irresponsável. Mas é um slogan. E está sendo espalhado por aí pela metade. Na verdade, ele completo é “Se não tiver direitos, não vai ter Copa”.
2 - Os protestos convocados não são, em sua essência, contra a realização em si da Copa. Esta não é a reivindicação central. É, como dito, uma palavra de ordem mais de caráter simbólico do que prático. O ponto fundamental das manifestações são as violações a direitos causadas pelos eventos esportivos, que são muitas, inúmeras, e gravíssimas. No mundo onde cresci, violações a direitos são ações de direita. Protestar contra essas violações é uma ação de esquerda. E absolutamente legítima. De qualquer forma, mesmo que o foco principal fosse o cancelamento do evento, por tudo que ele representa em abusos, isso também seria legítimo.
3 - Não existe determinado grupo, organização, partido, ONG ou governo estrangeiro “por trás” desses protestos. Afirmar isso, ainda mais de forma categórica, é extremamente leviano. As manifestações são compostas por uma gama de movimentos e organizações legítimas, que têm em comum a opção por lutar contra os abusos decorrentes da realização da Copa do Mundo.
4 - Os protestos não são dos Black Blocks. Os Black Blocks não são os protestos. Ponto. Não é o caso de entrar no mérito sobre a legitimidade ou não desse tipo de tática neste momento, simplesmente porque os movimentos que questionam os megaeventos esportivos NÃO apostam na violência como forma de luta. Generalizar, tomar a parte como o todo para desqualificá-los é usar o mesmíssimo expediente da direita para desqualificar os atos contra os aumentos das passagens de ônibus e muitos outros protestos legítimos do presente e do passado. Pior ainda quando para tal desqualificação se usa a grande mídia e suas reportagens e imagens “editadas” como principal e exclusiva fonte de informação, como vem acontecendo muito frequentemente.
5 - Há anos, formou-se e consolidou-se, em todas as 12 cidades-sede, Comitês Populares da Copa, que se juntaram na Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop). Eles conformam uma extensa rede de movimentos de atingidos pelos grandes eventos esportivos, movimentos sociais, sindicatos, movimentos estudantis, advogados populares, urbanistas e ONGs que serve para dar coesão à luta contra as violações causadas por tais megaeventos.
6 - Não é de agora: há vários anos esses comitês da Copa e a Ancop desenvolvem um criterioso trabalho de levantamento e sistematização dessas violações. Isso serve para se organizar a resistência e, inclusive, propor soluções para enfrentá-las. Algumas resistências até já foram vitoriosas.
7 - Um extenso e sério dossiê sobre violações aos direitos humanos no âmbito da realização da Copa e das Olimpíadas é um dos resultados desse esforço. Ele pode ser acessado através do site da Ancop (portalpopulardacopa), na aba "documentos" e depois "documentos Articulação Nacional".
8 - E a lista de violações é bastante longa. Os questionamentos à Copa não estão restritos ao uso de verbas públicas. São muitos abusos concretos, situações reais, que afetaram e vêm afetando diretamente a vida de centenas de milhares - para não dizer milhões - de pessoas em todo o Brasil:
. Os cálculos mais conservadores citam a cifra de quase 200 mil pessoas removidas de suas casas como decorrência da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. São remoções a toque de caixa, feitas, como é de praxe, com violência, cooptação de lideranças, falta de informação aos atingidos, ausência de compensações adequadas. Sem falar nas consequências indiretas que vieram a reboque, a se destacar os grandes empreendimentos imobiliários travestidos de projetos urbanísticos, operações urbanas - bancados por governos em todo o país - que vêm expulsando os mais pobres das áreas valorizadas.
. Desde que o Brasil e o Rio de Janeiro foram escolhidos como sede, respectivamente, da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, uma série de leis e portarias foram e vêm sendo aprovadas e editadas (ou preparadas para tal) como forma de “adequar” a institucionalidade brasileira a esses eventos. São leis que permitem concessões de terras e bens públicos para a realização dos eventos, que proíbem manifestações, que autorizam o uso da Força Nacional contra manifestações civis (!), que cassam o direito de greve (!!) durante o período dos jogos, que não permitem o trabalho de comerciantes e ambulantes ao redor dos estádios etc. No geral, todas essas leis e portarias são feitas na medida para atender aos interesses da Fifa e/ou de grandes empresas. A Lei de Geral da Copa é a principal delas, mas não a única.
. As obras de infraestrutura e dos estádios vêm sendo acompanhadas por inúmeros casos de exploração dos trabalhadores. Já ocorreram duas dezenas de greves de operários, além de mortes causadas em boa parte por conta da aceleração requerida para o término das obras. Para piorar, prepara-se a aprovação de uma Medida Provisória que permitiria a contratação de trabalhadores por curta duração sem vínculo empregatício durante a Copa e as Olimpíadas.
. Sob o pretexto e/ou como consequência dos megaeventos, estádios e aeroportos foram concedidos à iniciativa privada.
. Todas as decisões relacionadas aos megaeventos estão sendo tomadas sem a mínima participação popular, passando por cima de instâncias como o Conselho das Cidades
. As obras de infraestrutura bancadas com dinheiro público vêm sendo amplamente questionadas por beneficiarem principalmente o capital imobiliário e o transporte individual, por serem um dos agentes dos processos de higienização das cidades e por serem também causadoras de remoções feitas a toque de caixa. Denuncia-se também que verbas públicas vêm sendo destinadas a estádios públicos que posteriormente serão concedidos à iniciativa privada, num processo de elitização que afastará (ou já vem afastando) cada vez mais os pobres da possibilidade de assistirem aos jogos.
Diante de todo esse quadro de violações, está muito longe da realidade falar que os protestos que questionam os megaeventos esportivos foram orquestrados exclusivamente para derrubar a presidenta. Ou que são “contra o Brasil” e “contra o futebol, símbolo da cultura brasileira”, como bisonhamente defendeu um colunista. Muito pelo contrário. são a favor do Brasil. São a favor do futebol, mas não o futebol elitizado que uma Copa do Mundo hoje representa, que impede que o povo chegue perto das benesses do evento-ponto alto do esporte mais popular do planeta. Não se trata de ser contrário a estádios modernos, ou ao futebol-idem. Mas sim defender que tal processo de “modernização” não pode estar atrelado a um processo de elitização.
Mais do que tudo, a realização da Copa e das Olimpíadas está servindo como pretexto perfeito para um dos mais intensos processos de reconfiguração urbana dos últimos anos, acelerando de maneira frenética o avanço do capital imobiliário sobre os direitos da população pobre, que vem sendo sistematicamente expulsa das regiões valorizadas. Revitalização é a palavra do momento. Vale tudo para “limpar” a imagem de uma cidade que receberá jogos da Copa ou das Olimpíadas e atrair… negócios. Não adianta denunciar as atrocidades cometidas pela polícia do Alckmin na cracolândia de São Paulo e achar que esse tipo simplesmente abominável de ação repressiva não tem relação alguma com a maneira como vem sendo consolidada a realização dos megaeventos no Brasil.
Sim, é, claro, desses movimentos pode-se questionar o foco, a escolha da palavra de ordem, o momento dos protestos, suas possíveis consequências políticas, suas contradições. E é evidente que há os que aproveitam para focar os ataques exclusivamente no governo federal. É evidente que setores da direita aproveitam qualquer brecha para capitalizar. Assim como as manifestações de junho, esses protestos ganharam um caráter abrangente e difuso, difícil de ser analisado. Não se prestam a rotulações feitas com o fígado.
De qualquer forma, o que fazer? Ignorar as gravíssimas violações e nefastas consequências da realização dos megaeventos? Esperar de braços cruzados que continuem a ocorrer remoções, que as famílias atingidas prossigam desassistidas, que leis radicalmente antidemocráticas sigam sendo aprovadas, que trabalhadores continuem sendo explorados? Não há brecha maior para a direita do que a forma como esses eventos vêm sendo organizados pelas diversas instâncias de poder. E a direita já a está aproveitando, podem ter certeza.
Espantosa a megalomania de considerar que qualquer protesto contra a Copa seja uma armação destinada especialmente a atacar (e derrubar) o governo Dilma. Por mais que tentem fazer crer, a luta de classes no Brasil não se resume a PT x PSDB.
1- O famoso “Não vai ter Copa” é um slogan, muito mais de sentido simbólico do que prático. Podemos concordar ou discordar, achá-lo adequado ou não, certeiro ou irresponsável. Mas é um slogan. E está sendo espalhado por aí pela metade. Na verdade, ele completo é “Se não tiver direitos, não vai ter Copa”.
2 - Os protestos convocados não são, em sua essência, contra a realização em si da Copa. Esta não é a reivindicação central. É, como dito, uma palavra de ordem mais de caráter simbólico do que prático. O ponto fundamental das manifestações são as violações a direitos causadas pelos eventos esportivos, que são muitas, inúmeras, e gravíssimas. No mundo onde cresci, violações a direitos são ações de direita. Protestar contra essas violações é uma ação de esquerda. E absolutamente legítima. De qualquer forma, mesmo que o foco principal fosse o cancelamento do evento, por tudo que ele representa em abusos, isso também seria legítimo.
3 - Não existe determinado grupo, organização, partido, ONG ou governo estrangeiro “por trás” desses protestos. Afirmar isso, ainda mais de forma categórica, é extremamente leviano. As manifestações são compostas por uma gama de movimentos e organizações legítimas, que têm em comum a opção por lutar contra os abusos decorrentes da realização da Copa do Mundo.
4 - Os protestos não são dos Black Blocks. Os Black Blocks não são os protestos. Ponto. Não é o caso de entrar no mérito sobre a legitimidade ou não desse tipo de tática neste momento, simplesmente porque os movimentos que questionam os megaeventos esportivos NÃO apostam na violência como forma de luta. Generalizar, tomar a parte como o todo para desqualificá-los é usar o mesmíssimo expediente da direita para desqualificar os atos contra os aumentos das passagens de ônibus e muitos outros protestos legítimos do presente e do passado. Pior ainda quando para tal desqualificação se usa a grande mídia e suas reportagens e imagens “editadas” como principal e exclusiva fonte de informação, como vem acontecendo muito frequentemente.
5 - Há anos, formou-se e consolidou-se, em todas as 12 cidades-sede, Comitês Populares da Copa, que se juntaram na Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop). Eles conformam uma extensa rede de movimentos de atingidos pelos grandes eventos esportivos, movimentos sociais, sindicatos, movimentos estudantis, advogados populares, urbanistas e ONGs que serve para dar coesão à luta contra as violações causadas por tais megaeventos.
6 - Não é de agora: há vários anos esses comitês da Copa e a Ancop desenvolvem um criterioso trabalho de levantamento e sistematização dessas violações. Isso serve para se organizar a resistência e, inclusive, propor soluções para enfrentá-las. Algumas resistências até já foram vitoriosas.
7 - Um extenso e sério dossiê sobre violações aos direitos humanos no âmbito da realização da Copa e das Olimpíadas é um dos resultados desse esforço. Ele pode ser acessado através do site da Ancop (portalpopulardacopa), na aba "documentos" e depois "documentos Articulação Nacional".
8 - E a lista de violações é bastante longa. Os questionamentos à Copa não estão restritos ao uso de verbas públicas. São muitos abusos concretos, situações reais, que afetaram e vêm afetando diretamente a vida de centenas de milhares - para não dizer milhões - de pessoas em todo o Brasil:
. Os cálculos mais conservadores citam a cifra de quase 200 mil pessoas removidas de suas casas como decorrência da realização da Copa do Mundo e das Olimpíadas. São remoções a toque de caixa, feitas, como é de praxe, com violência, cooptação de lideranças, falta de informação aos atingidos, ausência de compensações adequadas. Sem falar nas consequências indiretas que vieram a reboque, a se destacar os grandes empreendimentos imobiliários travestidos de projetos urbanísticos, operações urbanas - bancados por governos em todo o país - que vêm expulsando os mais pobres das áreas valorizadas.
. Desde que o Brasil e o Rio de Janeiro foram escolhidos como sede, respectivamente, da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016, uma série de leis e portarias foram e vêm sendo aprovadas e editadas (ou preparadas para tal) como forma de “adequar” a institucionalidade brasileira a esses eventos. São leis que permitem concessões de terras e bens públicos para a realização dos eventos, que proíbem manifestações, que autorizam o uso da Força Nacional contra manifestações civis (!), que cassam o direito de greve (!!) durante o período dos jogos, que não permitem o trabalho de comerciantes e ambulantes ao redor dos estádios etc. No geral, todas essas leis e portarias são feitas na medida para atender aos interesses da Fifa e/ou de grandes empresas. A Lei de Geral da Copa é a principal delas, mas não a única.
. As obras de infraestrutura e dos estádios vêm sendo acompanhadas por inúmeros casos de exploração dos trabalhadores. Já ocorreram duas dezenas de greves de operários, além de mortes causadas em boa parte por conta da aceleração requerida para o término das obras. Para piorar, prepara-se a aprovação de uma Medida Provisória que permitiria a contratação de trabalhadores por curta duração sem vínculo empregatício durante a Copa e as Olimpíadas.
. Sob o pretexto e/ou como consequência dos megaeventos, estádios e aeroportos foram concedidos à iniciativa privada.
. Todas as decisões relacionadas aos megaeventos estão sendo tomadas sem a mínima participação popular, passando por cima de instâncias como o Conselho das Cidades
. As obras de infraestrutura bancadas com dinheiro público vêm sendo amplamente questionadas por beneficiarem principalmente o capital imobiliário e o transporte individual, por serem um dos agentes dos processos de higienização das cidades e por serem também causadoras de remoções feitas a toque de caixa. Denuncia-se também que verbas públicas vêm sendo destinadas a estádios públicos que posteriormente serão concedidos à iniciativa privada, num processo de elitização que afastará (ou já vem afastando) cada vez mais os pobres da possibilidade de assistirem aos jogos.
Diante de todo esse quadro de violações, está muito longe da realidade falar que os protestos que questionam os megaeventos esportivos foram orquestrados exclusivamente para derrubar a presidenta. Ou que são “contra o Brasil” e “contra o futebol, símbolo da cultura brasileira”, como bisonhamente defendeu um colunista. Muito pelo contrário. são a favor do Brasil. São a favor do futebol, mas não o futebol elitizado que uma Copa do Mundo hoje representa, que impede que o povo chegue perto das benesses do evento-ponto alto do esporte mais popular do planeta. Não se trata de ser contrário a estádios modernos, ou ao futebol-idem. Mas sim defender que tal processo de “modernização” não pode estar atrelado a um processo de elitização.
Mais do que tudo, a realização da Copa e das Olimpíadas está servindo como pretexto perfeito para um dos mais intensos processos de reconfiguração urbana dos últimos anos, acelerando de maneira frenética o avanço do capital imobiliário sobre os direitos da população pobre, que vem sendo sistematicamente expulsa das regiões valorizadas. Revitalização é a palavra do momento. Vale tudo para “limpar” a imagem de uma cidade que receberá jogos da Copa ou das Olimpíadas e atrair… negócios. Não adianta denunciar as atrocidades cometidas pela polícia do Alckmin na cracolândia de São Paulo e achar que esse tipo simplesmente abominável de ação repressiva não tem relação alguma com a maneira como vem sendo consolidada a realização dos megaeventos no Brasil.
Sim, é, claro, desses movimentos pode-se questionar o foco, a escolha da palavra de ordem, o momento dos protestos, suas possíveis consequências políticas, suas contradições. E é evidente que há os que aproveitam para focar os ataques exclusivamente no governo federal. É evidente que setores da direita aproveitam qualquer brecha para capitalizar. Assim como as manifestações de junho, esses protestos ganharam um caráter abrangente e difuso, difícil de ser analisado. Não se prestam a rotulações feitas com o fígado.
De qualquer forma, o que fazer? Ignorar as gravíssimas violações e nefastas consequências da realização dos megaeventos? Esperar de braços cruzados que continuem a ocorrer remoções, que as famílias atingidas prossigam desassistidas, que leis radicalmente antidemocráticas sigam sendo aprovadas, que trabalhadores continuem sendo explorados? Não há brecha maior para a direita do que a forma como esses eventos vêm sendo organizados pelas diversas instâncias de poder. E a direita já a está aproveitando, podem ter certeza.
Espantosa a megalomania de considerar que qualquer protesto contra a Copa seja uma armação destinada especialmente a atacar (e derrubar) o governo Dilma. Por mais que tentem fazer crer, a luta de classes no Brasil não se resume a PT x PSDB.
https://www.alainet.org/es/node/82790?language=en
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