O golpe militar de 1964 e o Brasil: passado e presente
31/03/2014
- Opinión
Os 50 anos do golpe de 1964 ensejam uma reflexão
sobre seu caráter e legado para a sociedade brasileira.
O golpe foi civil-militar e articulou os diversos segmentos da burguesia em torno da liderança do grande capital nacional e estrangeiro contra a ofensiva do movimento de massas, dirigida principalmente pelo trabalhismo, formado pelos trabalhadores urbanos, rurais, estudantes e soldados e militares de baixa patente, que buscava construir um capitalismo de Estado com forte dimensão popular, democrática e nacional. Este programa centrava-se nas reformas de base, em particular a agrária e urbana, no controle da remessa de lucro, na nacionalização de setores estratégicos e promoção da indústria nacional e numa política externa independente, anti-imperialista, baseada no direito à autodeterminação dos povos. Postulava ainda a extensão de voto aos analfabetos, que constituíam quase a metade da população brasileira, aos soldados e sub-oficiais, bem como elegibilidade a todos os eleitores.
A dimensão civil do golpe militar foi muito bem demonstrada em obras como 1964: a conquista do Estado, de René Dreyfuss, que evidencia as intensas articulações entre o empresariado nacional e estrangeiro, o governo dos Estados Unidos e os militares de alta patente para construir uma oligarquia que partilhasse cargos e espaços nos conselhos empresariais, em instituições estatais e em organismos ideológicos formadores de quadros (ESG) ou de opinião pública (IBAD e IPES). O núcleo duro da política econômica dos governos militares foi entregue a civis, representantes do grande empresariado nacional e associado. No governo Castello Branco 8 ministérios estiveram nas mãos de civis e 3 nas de militares; no governo Costa e Silva, 9 ministros eram civis e 4 militares; no governo Médici, 11 ministros eram civis e 4 militares; no governo Geisel, 10 ministros eram civis e 4 militares; e no governo Figueiredo, 11 ministros eram civis e 4 militares.
O golpe institucionalizou-se através da ação do Congresso Nacional que ilegalmente declarou vaga a Presidência da República, estando o Presidente Jango Goulart em território nacional. Desde seus primórdios criou uma legislação que transferiu ao poder executivo a capacidade de legislar, subtraída do Congresso, cuja função era principalmente a de legitimar os atos do executivo. Ao contrário do que pensam alguns, que veem entre 1964 e 1968 uma “ditabranda”, o AI-5 não representou descontinuidade, mas um aprofundamento da estrutura institucional implantada em 1964 e incorporada à carta constitucional de 1967. O AI-1 já mencionava que “a revolução vitoriosa se investia de poder constituinte”. Estava aí constituído o fundamento da ditadura. Um golpe de Estado, desfechado pelas armas, sem apoio popular e sem legitimação das urnas, se auto-invocava o poder de legislar rasgando a constituição de 1946 e os fundamentos do sistema representativo e da democracia vigente.
Pesquisas do Ibope realizadas entre os dias 20 de março e 30 de março de 1964 mostraram o forte apoio popular a Jango. 49,8% da população pretendia votar em Jango nas próximas eleições presidenciais, contra 41,2%. 15% consideravam o seu governo ótimo, 30% bom e apenas 16% o consideravam mal ou péssimo. O dado é ainda mais relevante porque a pesquisa foi realizada principalmente no estado de São Paulo, onde Jango havia perdido a eleição de 1960 para Milton Campos, a pedido da Federação do Comércio de São Paulo.
O golpe de 1964 foi dirigido principalmente contra o trabalhismo e as organizações de esquerda, contando com o apoio inicial de parte significativa das classes médias e de políticos liberais, como o Deputado Ulisses Guimarães e o ex-Presidente Juscelino Kubitschek. Entre 1964 e 1967, um total de 76 deputados federais foram cassados, e destes 39 (mais da metade) eram do PTB que possuía apenas 27% da representação congressual. O governo Castello Branco cassou 224 mandatos populares, entre eles 10 governadores, cifra só superada no período Costa e Silva/Junta Militar, que cassou 349 mandatos – mas nenhum de Governador – e muito superior aos governos Médici e Geisel, que cassaram 10 e 12 mandatos populares respectivamente.
A ditadura montou um sistema repressivo que impôs a perseguição, o desaparecimento, a tortura e a morte, financiado pelo grande capital e as oligarquias locais, sendo sua expressão mais aguda a Operação Bandeirantes (OBAN), dirigida pelo Delegado Sergio Paranhos Fleury. O balanço realizado pela Comissão da Verdade aponta pelo menos 50 mil atingidos direta ou indiretamente em seus direitos e cerca 400 mortos, número este que pode triplicar em função das violações cometidas contra os indígenas no Araguaia. Neste balanço não se contam as mortes provocadas pelos efeitos indiretos da ditadura, como aquelas derivadas do péssimo sistema de saúde e de saneamento públicos que mantiveram altíssimas taxas de mortalidade infantil, mais que 4 vezes superiores às de Cuba, em 1980, cujo PIB per capita correspondia à metade do brasileiro.
O golpe unificou as diversas frações da burguesia para impor um regime de terror do grande capital e uma política de superexploração dos trabalhadores, incrementando fortemente os níveis de desigualdade e de pobreza no país. Aprofundou a desnacionalização da economia brasileira e a penetração do capital estrangeiro no espaço nacional. Conservou o latifúndio, restringiu a reforma agrária à colonização de novas terras, o que frequentemente beneficiou as grandes empresas, elevando a concentração da propriedade no campo. Reafirmou as tradições coloniais de nossa burguesia, sublinhando suas tradições anti-democráticas, destruindo os níveis de organização institucional e de subjetividade das massas populares, e vinculou a modernização tecnológica ao imperialismo, ao capital financeiro internacional, à formação de uma burguesia monopólica associada e à grande propriedade da terra.
O projeto de modernização tecnológica da ditadura esteve subordinado ao capital financeiro internacional. Sua aspiração de aprofundar a substituição de importações implantando uma indústria de bens de capital carecia de fontes de financiamento internas, baseando-se na volatilidade do crédito internacional contratado a taxa de juros flutuantes durante a crise internacional de longo prazo que se iniciou em 1967-73. Incapaz de criar uma estrutura tributária que incidisse sobre a propriedade, lucros e dividendos ou de montar um poderoso sistema de ciência, tecnologia e inovação ao apoiar a acumulação na superexploração do trabalho – até 1980 a força de trabalho possuía escolaridade média de 4 anos -, criou-se um modelo dependente e associado altamente vulnerável à elevação das taxas juros pelos Estados Unidos. A incapacidade dos economistas da ditadura de analisar os ciclos econômicos e o papel descapitalizador no médio e longo prazo do capital estrangeiro em países dependentes, os levou a impulsionar uma modernização acelerada baseada em expressivos déficits comerciais e no endividamento externo nos anos 1970.
A crise da dívida externa a partir do fim dos anos 1970 estrangulou este projeto de modernização, deixando incompleto o setor industrial, particularmente o segmento de produção de bens de capital, e iniciou o processo de financeirização da economia brasileira com a formação de uma dívida interna crescente, destinada primeiramente a transferir os dólares dos exportadores para pagamentos dos juros e amortizações, mas que ganhou dinâmica própria, baixando drasticamente as taxas de crescimento econômico e de investimento, elevando ainda a pobreza em níveis absolutos e relativos nas décadas de 1980 e 1990. A economia brasileira apenas apresentaria taxas de crescimento mais expressivas com o boom das commodities iniciado em 2003, em função da projeção da China na economia mundial.
A volta aos quartéis planejada pela linha Sorbonne das forças armadas, com forte penetração na estrutura empresarial – cujas maiores expressões eram Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel –, atendeu às demandas do grande capital nacional e estrangeiro de conter o fortalecimento das tendências nacionalistas em âmbito militar, cuja maior expressão na América Latina havia sido o Peru de Velasco Alvarado, e buscou antecipar-se às pressões populares, cujo descontentamento se evidenciava nas eleições de 1974, uma vez vencida a esquerda armada. Isto contribuiu para o significativo controle da redemocratização pelas principais forças sociais que apoiaram a ditadura, mantendo relativamente intocado os privilégios das frações de classe que dela se beneficiaram. De grande importância foi o esforço realizado por Golbery do Couto e Silva para separar a tradição trabalhista, em torno da qual haviam se organizado os trabalhadores nos anos 1950 e 60, da cultura operária que se devolveu no ABC paulista em função da modernização industrial produzida nos anos 1970. Decisivo para isso foi a proibição a Leonel Brizola de utilização da legenda PTB, principal herdeiro político do trabalhismo.
Além do legado da financeirização da economia, o golpe de 1964 deixou várias heranças que permanecem presentes, entre elas podemos citar a concentração da propriedade e de renda, a lei de anistia, a constituição congressual, o monopólio dos meios de comunicação e a privatização do ensino superior.
A concentração da propriedade e da renda foi o resultado da hegemonia inicial da burguesia industrial no período ditatorial e posteriormente da burguesia financeira nos períodos ditatorial e pós-ditatorial. Ainda que os governos Lula e Dilma tenham melhorado a distribuição de renda do fator trabalho, esta permanece bastante concentrada e desigual. Assim, se em 1990, os 10% mais ricos percebiam 47,5% desta renda, em 2011 esta proporção havia caído para 40,8%, mantendo-se bastante elevada. Por outro lado, em 2008, os 10% mais ricos se apropriavam de 75% da riqueza do país, o que inclui para além da renda, os estoques de propriedade.
A lei de anistia enviada pelo governo militar a um congresso submetido ao Pacote de Abril de 1977 – a quem impôs a indicação de 22 senadores biônicos (21 dos quais da Arena) escolhidos por colégio eleitoral – foi aprovada por escassos 206 votos contra 201, descartando a alternativa de anistia ampla geral e irrestrita, proposta pelo MDB. Esta lei buscou garantir a impunidade para o terrorismo de Estado, na medida em que excetuou dos benefícios da anistia justamente aqueles que haviam sido condenados por crimes políticos, proporcionando impunidade aos que usaram criminosamente o aparato coercitivo do Estado para violar direitos individuais e coletivos entre 1961-1979. Todavia, mesmo elaborada para decretar a impunidade do terrorismo de Estado, a lei de anistia deixou brechas. Em 1998, o Brasil reconheceu a competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos que considera imprescritíveis os crimes de violação de direitos humanos, qualificando como continuados os crimes de sequestro e desaparecimento de pessoas até que se conheça seu paradeiro e destino. Em decisão de 2010, o STF descartou o direito a punir os responsáveis pelos crimes praticados, continuados ou não, o que levou a condenação do Estado brasileiro pela Corte interamericana de direitos humanos.
São dois os caminhos democráticos em relação à lei de anistia: o primeiro (mais moderado e conservador) é interpretá-la de acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, não estendendo sua validade para os crimes continuados; o segundo é revogá-la por decisão do Congresso ou Plebiscito Popular. Todavia, tanto o STF quanto o Congresso são forças que resistem a caminhar nesta direção. Para isso contribui o formato institucional do poder público no Brasil. O tipo congressual da constituinte de 1986 – realizada sem que a democracia estivesse plenamente estabelecida – a partir da iniciativa do então Presidente Sarney, impulsionou um modelo de representação política e institucional corporativo e autocrático, distanciado da vontade popular e vinculado ao poder econômico pelo financiamento privado de campanha. O Senado, com oito anos de mandato, e o STF, cujos ministros são constituídos por indicação presidencial, com mandato até os 70 anos, sendo apenas destituídos por 2/3 do Senado, são a maior expressão desta autocracia. Bastiões do conservadorismo, não se interessam em apurar os crimes da ditadura e desvendar as conexões civis-militares que envolvem suas fontes de financiamento ou redes de poder a que se articulam.
A hegemonia conservadora no processo de redemocratização vinculou-se à construção do império midiático e ao monopólio das telecomunicações representado pela Rede Globo, criada oficialmente em 1965 e beneficiada pela associação ilegal com o capital estrangeiro por meio do grupo Time-Life, do qual obteve financiamento e assessoria gerencial e técnica, entre 1962-1971. Em 1967, o governo Costa e Silva baixou um decreto proibindo a associação financeira, gerencial e técnica no setor de telecomunicações com o capital estrangeiro, criando de fato uma situação de privilégio e monopólio ao considerar que este não se aplicava à Rede Globo por seu contrato com o Grupo Time-Life ser anterior à legislação. Os laços da ditadura se estenderam a outros grupos de comunicação como é o caso da família Abravanel, produzindo uma concentração privada do espaço midiático nacional muito superior à concentração fundiária. Esta situação se aprofundou durante o período de redemocratização. Diversos políticos conservadores e reacionários se tornaram proprietários de retransmissoras locais de impérios midiáticos, sendo os casos mais notórios os que envolveram dois ex-presidentes da República, das famílias Sarney e Arnon de Mello, e o ministro das telecomunicações do governo Sarney, todos vinculados à Rede Globo. Em 2008, 271 políticos eram sócios dos grandes grupos midiáticos do país – que concentravam 61,3% dos veículos de comunicação – entre estes 20 senadores e 47 deputados federais. 58 pertenciam ao DEM, 48 ao PMDB, 43 ao PSDB, 23 ao PP, 16 ao PTB e 14 ao PPS, representando 74,8% das concessões a políticos. Tal situação contraria o inciso 5º do artigo 220 da constituição brasileira de 1988 que determina que os meios de comunicação não podem ser direta ou indiretamente objeto de monopólio. A ausência de regulamentação do artigo e a promiscuidade de interesses entre os oligopólios midiáticos e certos partidos políticos mantém esta situação de violação constitucional cuja estrutura foi plantada na ditadura.
A ditadura interveio também sobre as universidades expurgando as esquerdas, privatizando o ensino superior, impulsionando a pós-graduação em detrimento da graduação e fortalecendo os vínculos com a hegemonia liberal norte-americana sobre o pensamento brasileiro. Em 1960, 60% das matriculas no ensino superior estavam nas universidades públicas e ao final da ditadura esta proporção havia caído a 35%. Esta trajetória se aprofundou nos governos Fernando Henrique Cardoso e Lula, quando se reduziram a 30% e 25%, respectivamente, evidenciando as restrições do orçamento público em educação e o seu comprometimento crescente com o setor privado. A intervenção sobre as universidades expurgando as esquerdas se deu por meio do decreto 477/69, da lei 5540/68 e da colaboração com a USAID. A destruição chegou ao pico na UNB onde 80% de seus docentes foram demitidos. Paralelamente se buscou criar outra estrutura que destinou recursos à pós-graduação, subordinando parcialmente as universidades às agências externas de financiamento, em estrutura de poder fortemente verticalizada, priorizando-se a especialização e o pensamento disciplinar, deslocando-se o foco dos temas nacionais, regionais e mundiais, com forte vocação transdisciplinar. Neste contexto, outras agências de fomento norte-americanas, como a Ford, ganham expressão no Brasil com o objetivo de constituir novos paradigmas de investigação e uma nova comunidade acadêmica, financiando diversos centros de pesquisa, muitas vezes isolados das universidades, e as associações nacionais de pós-graduação.
O balanço dos 50 anos do golpe de 1964 revela sua ação constitutiva sobre a sociedade brasileira. Se o processo de redemocratização que se desenvolveu no Brasil escapou ao controle das forças golpistas e conservadoras, levando a eleição à presidência da República do Partido dos Trabalhadores, seus principais pilares encontram-se de pé: a concentração da propriedade e de renda; a preservação da lei de anistia e de uma interpretação que garante impunidade aos crimes de Estado; o monopólio midiático; a privatização do ensino superior e seu significativo afastamento da cidadania e das grandes necessidades nacionais; e por fim, a manutenção de elementos corporativos numa constituição feita por uma Assembleia Constituinte congressual, convocada antes que a legalidade democrática mínima houvesse sido plenamente instaurada.
Romper estas barreiras e sepultar o golpe de 1964 em nossa história são desafios que se colocam ao século XXI àqueles que lutam por um mundo democrático e justo e, principalmente, às novas gerações que nasceram sob a sua influência. Neste sentido, a abertura dos arquivos da ditadura e a atuação das comissões da verdade são da maior importância para restaurar os fatos e suas conexões onde há a mentira e o silêncio. Mas a batalha das ideias não se dará no vazio. Enfrentará a resistência daqueles que se beneficiaram da ditadura. As autocríticas tímidas e ambíguas da Folha S.Paulo e de O Globo são evidências disto.
- Carlos Eduardo Martins é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto e chefe do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), coordenador do Laboratório de Estudos sobre Hegemonia e Contra-Hegemonia (LEHC/UFRJ), coordenador do Grupo de Integração e União Sul-Americana do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso) e pesquisador da Cátedra e Rede Unesco/UNU de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável (Reggen). É autor de Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina (2011).
01/04/2014
https://www.alainet.org/es/node/84490?language=en
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