A ciência entre o capital e as patentes
26/05/2014
- Opinión
Para nos aproximarmos do que considero uma nova plataforma de sustentação ao ressurgimento do determinismo biológico, precisamos recapitular brevemente dois grandes fenômenos que marcaram as últimas décadas. O primeiro deles diz respeito à emergência e consolidação de conglomerados e atores de extraordinário poder global de coordenação político-econômico: a hegemonia do capital financeiro. E o segundo, conectado a esse, o novo caráter atribuído às informações – mormente aos conhecimentos – circundantes nas mais diversas instituições e mecanismos de produção, controle e divulgação das mesmas: a chamada “economia do conhecimento”, marcada especialmente pela comoditização das informações via o mercado de patentes e copyrights.
Segundo Marx, a lei de sobreacumulação capitalista não pode ser superada no interior do próprio capitalismo. E como David Harvey nos demonstrou no seu já clássico Condição pós-moderna, um dos métodos de contramedida à sobreacumulação é a sua absorção por meio do deslocamento espacial e/ou temporal dos capitais, logo, da criação de mecanismos, técnicas e objetos que possibilitem esse deslocamento de forma cada vez mais veloz e ágil. Assim, com o objetivo de dar ao capital tal liberdade de movimento que lhe permitisse superar a queda da taxa de lucro e desenvolver-se em um espaço mundializado de valorização, pode-se dizer que os processos de liberalizações e desregulamentações financeiras foram respostas à crise de sobreacumulação da década de 70.
Tais respostas, possibilitadas especialmente pelas revoluções da informática e pela avalanche neoliberal – como demarcou Mehta – , permitiram que a liquidez do capital financeiro construísse um cenário propício à migração da antiga estrutura “rígida” do capitalismo, herdeira do fordismo, para uma estrutura “flexível” instituída pelo poder das finanças. Resultado: setores inteiros da economia industrial subsumiram-se aos imperativos da lógica de acumulação do capital financeiro, um processo, que ao lado do crescimento do setor de serviços, ficou conhecido por desindustrialização.
Podemos ainda inferir, junto às análises do economista francês F. Chesnais, que os processos de implementação do capital financeiro colocaram em cena novos players e reposicionaram outros já existentes. O que resulta dizer, que embora os grupos industriais transnacionais ainda sejam a faceta mais visível e mais identificável do capitalismo contemporâneo – por expressarem diretamente a influência político-econômica dos capitais –, os atores financeiros tornaram-se cruciais e com poderes muitas vezes imbatíveis no cenário político-econômico mundial.
Nesse conjunto de novos players um setor importante deles é o que mais nos interessa aqui. Antigos e novos arranjos de grupos empresariais – multinacionais e transnacionais – passaram a operar especialmente na forma jurídica de holdings. Compostas por “sociedades de acionistas”, as holdings atuam em múltiplas atividades, porém, sempre comprometidas e coordenadas pela acumulação mais flexível e mais veloz do capital financeiro. Grande parte dos setores empresariais tornaram-se, mais ou menos, reféns da governance financeira das grandes holdings. E nesse sentido, elas se tornaramas matrizes de decisões empresariais nos cenários políticos, econômicos, tecnológicos, midiáticos, ambientais, científicos… orquestrando-os segundo a insaciabilidade das finanças e a volatilidade dos ventures capital.
Alguma coisa já deve estar fazendo mais sentido agora, não é mesmo? Estamos nos referindo a um dos grandes pilares daquilo que chamamos de nova plataforma de sustentação do ressurgimento do determinismo biológico, a saber: a tecnociência contemporânea é financeirizada e, especialmente, os cientistas “pós-acadêmicos” são importantes capitalistas do mercado financeiro.
O desenvolvimento das ciências da vida, em tempos “pós-acadêmico”, é marcado também pela hegemonia do capital financeiro em torno de grandes e poucas holdings, consequentemente, pela inserção/interferência destas nas atividades de pesquisa e desenvolvimento. Indústrias de sementes são incorporadas às empresas farmacêuticas, químicas, alimentícias, médicas etc., tornando-se uma complexa rede de corporações em que parte de seus acionistas são também os cientistas que coordenam as pesquisas em laboratórios públicos e privados. Os interesses dessas empresas passam a gerenciar parte da agenda das pesquisas, numa convergência de interesses entre setores de pesquisa, desenvolvimento, transformação e distribuição que inexistia anteriormente e que passam a deter um poder de comando antes inimaginável.
Embora com informações relativamente antigas, o trabalho de Krimsky, Ennis e Weissman1 traz dados reveladores: na década de 80, pelo menos cerca de 35% dos pesquisadores ligados à ciência da vida, membros da renomada National Academy of Sciences, mantinham laços com a indústria biotecnológica, trabalhando nela como consultores, conselheiros, gestores, ou sendo eles mesmos acionistas das empresas. Pode-se dizer que se essa tendência começou com a primeira corporação de biotecnologia – Genentech Inc.– fundada pelo geneticista molecular Paul Berg, mas certamente ela não terminou aí. Capítulos como os da Celera Genomic de Venter e das ligações de James Watson e sua família com empresas farmacêuticas, não param de serem escritos. De fato, como assevera Lewontin “vários geneticistas moleculares de renome, (...) são fundadores, diretores, funcionários ou acionistas de empresas de biotecnologia, incluindo fabricantes de suprimentos e equipamentos utilizados nas pesquisas de sequenciamento.” (p.64).
Venter, o nosso grande exemplo, portanto, não é simplesmente um cientista que decidiu tornar-se empresário. Como cientista ele continua a participar ativamente na produção de conhecimento, a publicar papers e livros, a contribuir nos debates epistemológicos etc. E como empresário ele corre o mundo dando conferências e palestras – mentoring – ensinando como a atividade de pesquisa pode ser empreendedora e exige novas características de performance. Ciência ou investimento, Universidade ou NASDAQ, difícil saber o que vem primeiro na vida “pós-acadêmica”, mais difícil ainda é não reconhecermos uma comunhão de interesses entre determinismo/reducionismo genético e o mercado da biotecnologia. Mas para isso, vale brevemente relatar o que entendemos como o segundo pilar de fixação da nova plataforma de sustentação do determinismo biológico.
Como sabemos, a consolidação do poder das finanças, do mercado de biotecnologia e da chamada ciência “pós-acadêmica” não teriam sido possíveis sem os mecanismos do sistema político – neoliberais – criadores de condições normativas e legais para instituírem legitimadamente os imperativos do valor de troca auto-expansivo a todos os interstícios da vida social. E certamente um dos capítulos mais importantes desse processo foi a expansão das condições para a concessão de propriedade intelectual.
Para as empresas de biotecnologia, o potencial inovador de suas tecnologias/técnicas/produtos não poderia ser valorizado sem que os seus investimentos fossem protegidos por um forte sistema de patentes. Em outras palavras, nenhum investimento na ciência “pós-acadêmica” capaz de assegurar a transferência dos conhecimentos ao mundo econômico, e tão pouco ao bilionário mercado da biotecnologia, seria possível sem a segurança legal/normativa das patentes.
Os Direitos de Propriedade Intelectual (patentes, trade-mark, copyright etc.) – resultados de criações de novas legislações e de desregulamentações (TRIPs – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights –, Bayh-Dole Act etc.) da era neoliberal – criaram novas e desenvolveram antigas formas de apropriações privadas, tornando a “propriedade intelectual” um dos instrumentos centrais de acumulação do capitalismo contemporâneo, exemplo expressivo é a “economia do conhecimento” do mercado de patentes. A esse respeito, a economista brasileira Leda Paulani2 nos esclarece sobre a importância e a diferença que o “conhecimento” detêm e opera na atual etapa de acumulação capitalista: “... qual é a novidade que o capitalismo contemporâneo traz? A novidade é a existência de mercadorias feitas só de conhecimento. O setor paradigmático desse tipo de mercadoria é o setor de informática. Cabe então perguntar: o que é um software, ou produtos correlatos a esse, que empresas como a Microsoft e a Google vendem aos milhares todos os dias? É algo que tem a forma mercadoria, pois tem um preço e o acesso a ela depende do pagamento desse preço (a menos, é claro, da pirataria), mas que não tem valor, pois o tempo de trabalho necessário à sua reprodução é zero. Qual é o fundamento desse preço então? Seu fundamento é uma renda do saber, uma renda absoluta, que, tal como a renda absoluta da terra que Marx diagnosticou, fundamenta-se pura e simplesmente na existência da propriedade.” (p.16, grifo nosso)
Assim, a propriedade intelectual, ao converter o conhecimento em mercadoria e transformá-la num insumo indispensável à produção de outras mercadorias, torna-se um privilegiado objeto de renda na mão da governança corporativa. Num momento em que o capitalismo financeirizado tornou-se hegemônico ele carrega em si um traço “essencialmente rentista”. E os principais ativos financeiros das empresas são imagens, marcas e patentes, são capitais investidos no mercado do conhecimento/informação associados numa rede complexa de holdings atuantes em diversas áreas e, como vimos, com poderes de comando e coordenação antes inimagináveis.
Dessa forma, as patentes podem ser vista como ponto de confluência – didático – entre as finanças, a biotecnologia, a ciência “pós-acadêmica” e, especialmente, o “ressurgimento do determinismo biológico e de seu detestável primo, o darwinismo social”. Quem nos ensina isso é o sociólogo português José Luís Garcia 3:
“Vemos então que o desenvolvimento da biotecnologia (na sua estreita articulação com a engenharia genética e a bioengenharia em geral) vem aprofundar algo que, no quadro da aplicabilidade de patentes, era já uma tendência: encarar como “invenção” tudo o que tivesse sido manipulado, incluindo seres vivos. (...) Esta orientação é favorecida pelas concepções reducionistas e mecanicistas, partilhadas, sobretudo pelos membros da comunidade da biotecnologia cujo terreno de investigação não exige um nível de abstração teórica muito elevada e que justificam o processo de alargamento das patentes ao explicarem o funcionamento biológico em termos de “informação” genética, tornando assim plausível que um gene seja objeto de propriedade intelectual. Com efeito, constata-se uma “afinidade eletiva” entre a argumentação favorável à patenteação de genes e a imagem de um gene isolável que particulariza uma função dispensando o contexto celular e ambiental do organismo.”(p.986)
Agora, definitivamente, podemos deixar claro o que chamamos de nova plataforma de sustentação do “ressurgimento do determinismo biológico e de seu detestável primo, o darwinismo social”. Se hipoteticamente eu possuo a patente de uma variante genômica, o “XY2Z”, por exemplo, que de forma isolada acarreta uma característica ou doença; disseminar, propagar, manter e consolidar o determinismo/reducionismo genético em publicações especializadas, em meios/canais de divulgação científica, em fractais e periódicos leigos etc. é também assegurar bilhões de investimentos em biotecnologia. Ou seja, é possível dizer que o novo determinismo biológico é a sustentação de bilionários investimentos em ventures capital de poderosos acionistas e players globais em biotecnologias espalhados por todo mundo.
Como diz acertadamente Pankaj Mehta, em seu texto à Carta Maior,
“o plano do determinista genético na era genômica é claro: obtenha quantidades massivas de dados de sequências genéticas. Encontre uma característica mal definida (como a preferência política). Encontre um gene que está estatisticamente sobrerrepresentado na subpopulação que possui a característica. Declare a vitória. Ignore o fato de que os genes, na realidade, não explicam a variação fenotípica da característica. (…) A partir daí, generalize esses resultados ao plano de análise das sociedades e argumente que eles explicam as bases genéticas fundamentais do comportamento humano. Rediga uma nota à imprensa e espere que os meios de comunicação publiquem notícias chamativas. Repita o processo com outro conjunto de dados e com outra característica.”
Assim, numa economia marcada por mercados futuros, a consolidação e a sustentação de determinados consensos e paradigmas acerca de uma técnica/tecnologia e seus possíveis resultados patenteados são imprescindíveis para manutenção da confiança de investidores em seus ativos financeiros. Nesse sentido, determinadas teorias e crenças, como a ideia de que grandes problemas do mundo podem ser resolvidos simplesmente pela identificação, isolamento e manipulação dos genes tornaram-se, nas mãos de setores importantes das finanças, um trunfo para valorizações diretas de seus capitais. E não há limites para mantê-los rentáveis, pois, “Equipados com imensas bases de dados genéticos e um imenso arsenal de técnicas estatísticas”, as redes de poderes e interesses das ciências da vida financeirizada estão imbrincadas em agências publicitárias, em laboratórios de pesquisas, em periódicos especializados ou não, em congressos e conferências médicas, em poderosos lobbies nos marcos institucionais etc.
Se estamos “na alvorada da era genômica” como ressurgimento do determinismo biológico, para além de esse fator estar “combinado ao fato de que vivemos em uma nova Era Dourada (Gilged Age), na qual uma reduzida elite global tem acesso a, e necessidade de justificar a posse de quantidades desmedidas de riqueza e poder, faz com que as condições sejam muito propícias para um perigoso ressurgimento do determinismo biológico.”, como disse Mehta. Estamos vivenciando um novo modo de propagar e sustentar tal determinismo, que envolve novos atores globais, novas tecnologias de divulgação, novos mecanismos de controle/coordenação, novos poderes de alcance, novos interesses de manutenção etc. Donde podemos pensar, que as críticas desferidas contra o determinismo biológico hoje são também ataques diretos à confiança do rentismo de poderosos atores do capital financeiro, de holdings que coordenam empresas farmacêuticas, médicas, agroalimentares, biotecnológicas etc.
Para concluir, antes de qualquer “mal compreendido”, importante que se diga que a nossa tese não caminha nos marcos de um vulgar economicismo que crê mecanicamente que as relações econômicas concorrências do capitalismo neoliberal e financeirizado determinaram o surgimento das novas teorias biológicas e genéticas. Nossas palavras estão aquém – ou além – de inferir as razões que fizeram emergir epistêmica e ontologicamente tais teorias, e da validade científica delas ou não, o que nos interessa nesse momento é avisar que a plataforma de propagação, consolidação e conservação dessas ideias são significativamente novas. O que certamente já nos exige uma diferenciada preocupação sociológica, cultural e política.
Apenas acreditamos, portanto, que a comoditização do conhecimento/informação mediante, sobretudo, o mercado de patentes em tempos de hegemonia do capital financeiro e ciência “pós-acadêmica”, dão ao determinismo genético e ao possível ressurgimento do “darwinismo social” uma nova plataforma de sustentação, logo, um novo significado histórico-social. Assim, em que pesem as diferenças com os seus parentes dos séculos passados, é importante sim ficarmos atentos para que a história não cometa um repeteco, mas mais do que isso, para que ela não dê vida a uma nova e trágica barbárie ...
Segundo Marx, a lei de sobreacumulação capitalista não pode ser superada no interior do próprio capitalismo. E como David Harvey nos demonstrou no seu já clássico Condição pós-moderna, um dos métodos de contramedida à sobreacumulação é a sua absorção por meio do deslocamento espacial e/ou temporal dos capitais, logo, da criação de mecanismos, técnicas e objetos que possibilitem esse deslocamento de forma cada vez mais veloz e ágil. Assim, com o objetivo de dar ao capital tal liberdade de movimento que lhe permitisse superar a queda da taxa de lucro e desenvolver-se em um espaço mundializado de valorização, pode-se dizer que os processos de liberalizações e desregulamentações financeiras foram respostas à crise de sobreacumulação da década de 70.
Tais respostas, possibilitadas especialmente pelas revoluções da informática e pela avalanche neoliberal – como demarcou Mehta – , permitiram que a liquidez do capital financeiro construísse um cenário propício à migração da antiga estrutura “rígida” do capitalismo, herdeira do fordismo, para uma estrutura “flexível” instituída pelo poder das finanças. Resultado: setores inteiros da economia industrial subsumiram-se aos imperativos da lógica de acumulação do capital financeiro, um processo, que ao lado do crescimento do setor de serviços, ficou conhecido por desindustrialização.
Podemos ainda inferir, junto às análises do economista francês F. Chesnais, que os processos de implementação do capital financeiro colocaram em cena novos players e reposicionaram outros já existentes. O que resulta dizer, que embora os grupos industriais transnacionais ainda sejam a faceta mais visível e mais identificável do capitalismo contemporâneo – por expressarem diretamente a influência político-econômica dos capitais –, os atores financeiros tornaram-se cruciais e com poderes muitas vezes imbatíveis no cenário político-econômico mundial.
Nesse conjunto de novos players um setor importante deles é o que mais nos interessa aqui. Antigos e novos arranjos de grupos empresariais – multinacionais e transnacionais – passaram a operar especialmente na forma jurídica de holdings. Compostas por “sociedades de acionistas”, as holdings atuam em múltiplas atividades, porém, sempre comprometidas e coordenadas pela acumulação mais flexível e mais veloz do capital financeiro. Grande parte dos setores empresariais tornaram-se, mais ou menos, reféns da governance financeira das grandes holdings. E nesse sentido, elas se tornaramas matrizes de decisões empresariais nos cenários políticos, econômicos, tecnológicos, midiáticos, ambientais, científicos… orquestrando-os segundo a insaciabilidade das finanças e a volatilidade dos ventures capital.
Alguma coisa já deve estar fazendo mais sentido agora, não é mesmo? Estamos nos referindo a um dos grandes pilares daquilo que chamamos de nova plataforma de sustentação do ressurgimento do determinismo biológico, a saber: a tecnociência contemporânea é financeirizada e, especialmente, os cientistas “pós-acadêmicos” são importantes capitalistas do mercado financeiro.
O desenvolvimento das ciências da vida, em tempos “pós-acadêmico”, é marcado também pela hegemonia do capital financeiro em torno de grandes e poucas holdings, consequentemente, pela inserção/interferência destas nas atividades de pesquisa e desenvolvimento. Indústrias de sementes são incorporadas às empresas farmacêuticas, químicas, alimentícias, médicas etc., tornando-se uma complexa rede de corporações em que parte de seus acionistas são também os cientistas que coordenam as pesquisas em laboratórios públicos e privados. Os interesses dessas empresas passam a gerenciar parte da agenda das pesquisas, numa convergência de interesses entre setores de pesquisa, desenvolvimento, transformação e distribuição que inexistia anteriormente e que passam a deter um poder de comando antes inimaginável.
Embora com informações relativamente antigas, o trabalho de Krimsky, Ennis e Weissman1 traz dados reveladores: na década de 80, pelo menos cerca de 35% dos pesquisadores ligados à ciência da vida, membros da renomada National Academy of Sciences, mantinham laços com a indústria biotecnológica, trabalhando nela como consultores, conselheiros, gestores, ou sendo eles mesmos acionistas das empresas. Pode-se dizer que se essa tendência começou com a primeira corporação de biotecnologia – Genentech Inc.– fundada pelo geneticista molecular Paul Berg, mas certamente ela não terminou aí. Capítulos como os da Celera Genomic de Venter e das ligações de James Watson e sua família com empresas farmacêuticas, não param de serem escritos. De fato, como assevera Lewontin “vários geneticistas moleculares de renome, (...) são fundadores, diretores, funcionários ou acionistas de empresas de biotecnologia, incluindo fabricantes de suprimentos e equipamentos utilizados nas pesquisas de sequenciamento.” (p.64).
Venter, o nosso grande exemplo, portanto, não é simplesmente um cientista que decidiu tornar-se empresário. Como cientista ele continua a participar ativamente na produção de conhecimento, a publicar papers e livros, a contribuir nos debates epistemológicos etc. E como empresário ele corre o mundo dando conferências e palestras – mentoring – ensinando como a atividade de pesquisa pode ser empreendedora e exige novas características de performance. Ciência ou investimento, Universidade ou NASDAQ, difícil saber o que vem primeiro na vida “pós-acadêmica”, mais difícil ainda é não reconhecermos uma comunhão de interesses entre determinismo/reducionismo genético e o mercado da biotecnologia. Mas para isso, vale brevemente relatar o que entendemos como o segundo pilar de fixação da nova plataforma de sustentação do determinismo biológico.
Como sabemos, a consolidação do poder das finanças, do mercado de biotecnologia e da chamada ciência “pós-acadêmica” não teriam sido possíveis sem os mecanismos do sistema político – neoliberais – criadores de condições normativas e legais para instituírem legitimadamente os imperativos do valor de troca auto-expansivo a todos os interstícios da vida social. E certamente um dos capítulos mais importantes desse processo foi a expansão das condições para a concessão de propriedade intelectual.
Para as empresas de biotecnologia, o potencial inovador de suas tecnologias/técnicas/produtos não poderia ser valorizado sem que os seus investimentos fossem protegidos por um forte sistema de patentes. Em outras palavras, nenhum investimento na ciência “pós-acadêmica” capaz de assegurar a transferência dos conhecimentos ao mundo econômico, e tão pouco ao bilionário mercado da biotecnologia, seria possível sem a segurança legal/normativa das patentes.
Os Direitos de Propriedade Intelectual (patentes, trade-mark, copyright etc.) – resultados de criações de novas legislações e de desregulamentações (TRIPs – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights –, Bayh-Dole Act etc.) da era neoliberal – criaram novas e desenvolveram antigas formas de apropriações privadas, tornando a “propriedade intelectual” um dos instrumentos centrais de acumulação do capitalismo contemporâneo, exemplo expressivo é a “economia do conhecimento” do mercado de patentes. A esse respeito, a economista brasileira Leda Paulani2 nos esclarece sobre a importância e a diferença que o “conhecimento” detêm e opera na atual etapa de acumulação capitalista: “... qual é a novidade que o capitalismo contemporâneo traz? A novidade é a existência de mercadorias feitas só de conhecimento. O setor paradigmático desse tipo de mercadoria é o setor de informática. Cabe então perguntar: o que é um software, ou produtos correlatos a esse, que empresas como a Microsoft e a Google vendem aos milhares todos os dias? É algo que tem a forma mercadoria, pois tem um preço e o acesso a ela depende do pagamento desse preço (a menos, é claro, da pirataria), mas que não tem valor, pois o tempo de trabalho necessário à sua reprodução é zero. Qual é o fundamento desse preço então? Seu fundamento é uma renda do saber, uma renda absoluta, que, tal como a renda absoluta da terra que Marx diagnosticou, fundamenta-se pura e simplesmente na existência da propriedade.” (p.16, grifo nosso)
Assim, a propriedade intelectual, ao converter o conhecimento em mercadoria e transformá-la num insumo indispensável à produção de outras mercadorias, torna-se um privilegiado objeto de renda na mão da governança corporativa. Num momento em que o capitalismo financeirizado tornou-se hegemônico ele carrega em si um traço “essencialmente rentista”. E os principais ativos financeiros das empresas são imagens, marcas e patentes, são capitais investidos no mercado do conhecimento/informação associados numa rede complexa de holdings atuantes em diversas áreas e, como vimos, com poderes de comando e coordenação antes inimagináveis.
Dessa forma, as patentes podem ser vista como ponto de confluência – didático – entre as finanças, a biotecnologia, a ciência “pós-acadêmica” e, especialmente, o “ressurgimento do determinismo biológico e de seu detestável primo, o darwinismo social”. Quem nos ensina isso é o sociólogo português José Luís Garcia 3:
“Vemos então que o desenvolvimento da biotecnologia (na sua estreita articulação com a engenharia genética e a bioengenharia em geral) vem aprofundar algo que, no quadro da aplicabilidade de patentes, era já uma tendência: encarar como “invenção” tudo o que tivesse sido manipulado, incluindo seres vivos. (...) Esta orientação é favorecida pelas concepções reducionistas e mecanicistas, partilhadas, sobretudo pelos membros da comunidade da biotecnologia cujo terreno de investigação não exige um nível de abstração teórica muito elevada e que justificam o processo de alargamento das patentes ao explicarem o funcionamento biológico em termos de “informação” genética, tornando assim plausível que um gene seja objeto de propriedade intelectual. Com efeito, constata-se uma “afinidade eletiva” entre a argumentação favorável à patenteação de genes e a imagem de um gene isolável que particulariza uma função dispensando o contexto celular e ambiental do organismo.”(p.986)
Agora, definitivamente, podemos deixar claro o que chamamos de nova plataforma de sustentação do “ressurgimento do determinismo biológico e de seu detestável primo, o darwinismo social”. Se hipoteticamente eu possuo a patente de uma variante genômica, o “XY2Z”, por exemplo, que de forma isolada acarreta uma característica ou doença; disseminar, propagar, manter e consolidar o determinismo/reducionismo genético em publicações especializadas, em meios/canais de divulgação científica, em fractais e periódicos leigos etc. é também assegurar bilhões de investimentos em biotecnologia. Ou seja, é possível dizer que o novo determinismo biológico é a sustentação de bilionários investimentos em ventures capital de poderosos acionistas e players globais em biotecnologias espalhados por todo mundo.
Como diz acertadamente Pankaj Mehta, em seu texto à Carta Maior,
“o plano do determinista genético na era genômica é claro: obtenha quantidades massivas de dados de sequências genéticas. Encontre uma característica mal definida (como a preferência política). Encontre um gene que está estatisticamente sobrerrepresentado na subpopulação que possui a característica. Declare a vitória. Ignore o fato de que os genes, na realidade, não explicam a variação fenotípica da característica. (…) A partir daí, generalize esses resultados ao plano de análise das sociedades e argumente que eles explicam as bases genéticas fundamentais do comportamento humano. Rediga uma nota à imprensa e espere que os meios de comunicação publiquem notícias chamativas. Repita o processo com outro conjunto de dados e com outra característica.”
Assim, numa economia marcada por mercados futuros, a consolidação e a sustentação de determinados consensos e paradigmas acerca de uma técnica/tecnologia e seus possíveis resultados patenteados são imprescindíveis para manutenção da confiança de investidores em seus ativos financeiros. Nesse sentido, determinadas teorias e crenças, como a ideia de que grandes problemas do mundo podem ser resolvidos simplesmente pela identificação, isolamento e manipulação dos genes tornaram-se, nas mãos de setores importantes das finanças, um trunfo para valorizações diretas de seus capitais. E não há limites para mantê-los rentáveis, pois, “Equipados com imensas bases de dados genéticos e um imenso arsenal de técnicas estatísticas”, as redes de poderes e interesses das ciências da vida financeirizada estão imbrincadas em agências publicitárias, em laboratórios de pesquisas, em periódicos especializados ou não, em congressos e conferências médicas, em poderosos lobbies nos marcos institucionais etc.
Se estamos “na alvorada da era genômica” como ressurgimento do determinismo biológico, para além de esse fator estar “combinado ao fato de que vivemos em uma nova Era Dourada (Gilged Age), na qual uma reduzida elite global tem acesso a, e necessidade de justificar a posse de quantidades desmedidas de riqueza e poder, faz com que as condições sejam muito propícias para um perigoso ressurgimento do determinismo biológico.”, como disse Mehta. Estamos vivenciando um novo modo de propagar e sustentar tal determinismo, que envolve novos atores globais, novas tecnologias de divulgação, novos mecanismos de controle/coordenação, novos poderes de alcance, novos interesses de manutenção etc. Donde podemos pensar, que as críticas desferidas contra o determinismo biológico hoje são também ataques diretos à confiança do rentismo de poderosos atores do capital financeiro, de holdings que coordenam empresas farmacêuticas, médicas, agroalimentares, biotecnológicas etc.
Para concluir, antes de qualquer “mal compreendido”, importante que se diga que a nossa tese não caminha nos marcos de um vulgar economicismo que crê mecanicamente que as relações econômicas concorrências do capitalismo neoliberal e financeirizado determinaram o surgimento das novas teorias biológicas e genéticas. Nossas palavras estão aquém – ou além – de inferir as razões que fizeram emergir epistêmica e ontologicamente tais teorias, e da validade científica delas ou não, o que nos interessa nesse momento é avisar que a plataforma de propagação, consolidação e conservação dessas ideias são significativamente novas. O que certamente já nos exige uma diferenciada preocupação sociológica, cultural e política.
Apenas acreditamos, portanto, que a comoditização do conhecimento/informação mediante, sobretudo, o mercado de patentes em tempos de hegemonia do capital financeiro e ciência “pós-acadêmica”, dão ao determinismo genético e ao possível ressurgimento do “darwinismo social” uma nova plataforma de sustentação, logo, um novo significado histórico-social. Assim, em que pesem as diferenças com os seus parentes dos séculos passados, é importante sim ficarmos atentos para que a história não cometa um repeteco, mas mais do que isso, para que ela não dê vida a uma nova e trágica barbárie ...
- Leandro Modolo P.
Mestrando em Ciências Sociais (UNESP-Araraquara) e professor da Rede Básica Estadual em São Carlos-SP.
1 Academic-corporate ties in biotechnology: a quantitative study. In: Science, Technology and Human Values, 16, 3, p. 275-87, 1991.
2PAULANI, L. Acumulação e Rentismo: resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contemporâneo. Disponível em http://www.sep.org.br/artigos/download?id=2014&title=Acumula%C3%A7%C3%A3o e Rentismo%3A resgatando a teoria da renda de Marx para pensar o capitalismo contempor%C3%A2neo. Acesso em 29 de abril de 2014.
3 GARCIA, J. L. Biotecnologia e biocapitalismo global. In: Análise Social, vol. XLI (181), 2006, p. 981-1009.
Créditos da foto: Marxistelf.wordpress.com
27/05/2014
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