A águia afia as garras

14/06/2002
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Tarde de quinta-feira. O cansaço da semana marca os passos lentos que me levam até a porta de casa na qual me espera o abraço gostoso do sofá. Mas este desejo de ter um pouco de sossego é interrompido pelos estranhos barulhos que vêm da sala. É como se alguém estivesse confabulando em voz baixa, murmurando frases que não podem ser ouvidas. Assustado, me aproximo cuidadoso e os meus olhos não demoram em vê-la. De pé, na quarta prateleira da estante, Nádia faz girar o globo terrestre com uma asa enquanto a outra segura a lupa através da qual se detém para observar alguns países. Sem distraí-la, me coloco atrás dela e procuro ver cada ponto do mapa que passa pela lente. - "Há pegadas dela por toda parte", murmura a coruja com olhar severo e preocupado. Apesar dos meus esforços, só consigo ver o azul dos mares e as diferentes cores dos países que se misturam aos nomes ampliados pela lupa. Intrigado e curioso, tento interromper o trabalho de investigação batendo com o dedo no ombro esquerdo da coruja. Mas ela não quer conversa. Levanta a asa e com voz firme me manda um "Não me atrapalhe! Não vê que estou trabalhando?" que aumenta ainda mais a minha ansiedade. De repente, Nádia tira os olhos da lupa e aproximando-a do bico se vira em minha direção, dizendo: "Elementar meu caro secretário... Elementar... A águia está afiando as garras e se prepara para espalhar seus ninhos pelo globo". - "De que diabo de águia você está falando? Espero não resolva se abrigar na minha casa. Aqui já basta você para ocupar a minha estante!", retruco na tentativa de defender o espaço do meu lar. Nádia sacode a cabeça, sorri e piscando rapidamente os olhos retoma a conversa: - "Quanto à sua estante pode ficar sossegado, mas no que diz respeito ao resto é bom você começar a se preocupar". - "Como assim?", pergunto impaciente. - "A águia da qual estou falando é a que simboliza os Estados Unidos e as pegadas deixadas por suas garras são os planos que os poderosos por ela protegidos tentam implementar no mundo todo. A situação é grave. E como estou preste a sair de viagem, sugiro que pegue papel e caneta para assumir a função de secretário para a qual foi nomeado". - "Tomara que desta vez seja pouca coisa", penso comigo mesmo enquanto retiro vagarosamente algumas folhas da resma de papel que está sobre a mesa. Mas minha esperança dura pouco. - "Pode pegar outras que hoje tenho muito pra contar", me diz a coruja com ar de quem já entendeu o porquê dos meus gestos preguiçosos. - "Vai dar mais do que três páginas?", indago assustado pelo trabalho que me espera. Nádia põe as asas na cintura e começa a andar de um lado para outro da estante como quem pensa em voz alta fazendo questão de ser ouvido: "Estes humanos são um caso sério. Dizem que desejam saber das coisas, mas querem tudo resumidinho e curtinho. Têm preguiça de ler e de pensar. Querem saber, mas não querem ter trabalho. Estão a fim de comer omelete, mas se recusam a quebrar os ovos! Vê se isso é possível...". Silenciosamente, pego a caneta e sinalizo à coruja que já pode começar o seu relato. Com a lupa atrás das costas, Nádia se recompõe e retoma a conversa: - "Muito bem, meu secretário. Vejamos... Sim... Podemos organizar as idéias ao redor da questão do petróleo por ela ser o centro das preocupações dos Estados Unidos. Você precisa saber que, de acordo com o Plano Nacional de Energia, apresentado pelo presidente George W. Bush em maio de 2001, os EUA importam 53% dos seus suprimentos. Até 2020, a quantidade de petróleo e gás natural que virá do exterior deve se elevar a 62% do total a ser consumido pelo país. Trocado em miúdos, daqui a 20 anos, os estadunidenses estarão trazendo de fora dois em cada três barris de petróleo para atender às necessidades de sua economia. Parece pouco, mas não é. É por isso que a águia não perde tempo e vai esboçando planos que lhe permitem ter acesso às fontes de energia sem que isso signifique pagar mais caro pelos combustíveis importados e fazendo com que sejam suas empresas a beneficiar-se do aumento da demanda. Ao que tudo indica, entre as medidas que os Estados Unidos pretendem tomar está a ampliação do seu controle sobre os países do Oriente Médio e, sobretudo, sobre a Arábia Saudita, o Iraque e o Irã. Para satisfazer a crescente necessidade de petróleo da águia americana, o país saudita deveria aumentar a sua extração dos atuais 11 milhões e 400 mil barris diários para 23 milhões e 100 mil. O melhor caminho seria o de convencer a dinastia reinante a abrir a exploração de petróleo às empresas estadunidenses. O problema é que esta medida, destinada a manter sob controle o preço internacional do barril, aumentaria ainda mais a revolta interna contra o regime e colocaria em risco as próprias relações com os EUA. As razões deste descontentamento são freqüentemente apresentadas como um problema religioso, mas, na verdade, estão alicerçadas no agravar-se da situação econômica do povo saudita. De 1980 aos nossos dias, a população explodiu de 7 para 19 milhões de habitantes enquanto a renda per capita foi caindo de 19 mil dólares a pouco mais de 7 mil e 300. A soma dos baixos preços do petróleo com o aumento da população tem como resultado o crescimento da pobreza e do desemprego. Continuar atendendo às necessidades estadunidenses do jeito que vem sendo feito significaria correr o risco de que esta realidade piore a ponto de se tornar insustentável. De imediato, o fato de não ter alternativas de suprimento consistentes faz com que a águia procure fortalecer a submissa dinastia saudita com pequenas concessões, ao mesmo tempo em que procura abrir caminhos para avançar no controle das demais jazidas da região". - "Você está querendo dizer que os Estados Unidos estão de olho no petróleo do Iraque e do Irã?", pergunto sem fazer cerimônias. - "Exatamente!", responde Nádia, sacudindo a lupa no ar. E continua: "Mas os americanos sabem que atacar Saddam Hussein sem mais nem menos é bem diferente do que lançar-se sobre o Afeganistão. Além de não serem apoiados pela maior parte dos países europeus, uma ação desse tipo acirraria a revolta dos povos da região a ponto de colocar em risco a sobrevivência dos regimes árabes que hoje se apóiam na repressão e na ajuda estadunidense para conter as oposições internas. Por isso, é bem provável que a tentativa de pôr as garras no 3º maior produtor de petróleo do Golfo Pérsico passe pelo fortalecimento dos movimentos armados que agem no norte do Iraque. Entre as várias possibilidades que estão sendo avaliadas pelo Pentágono, ganha corpo a de fazer com que a minoria kurda, perseguida por Saddam Hussein, se levante em armas contra o ditador dando aos Estados Unidos as justificativas necessárias para uma intervenção militar de grandes proporções. Ao que tudo indica, os primeiros passos neste sentido foram dados em meados de abril de 2002, quando Masoud Barzani, líder do Partido Democrático Kurdo, e Jatal Talabani, máximo dirigente da União Patriótica do Kurdistão passaram três dias reunidos com representantes do Pentágono e da CIA nas proximidades de Berlim, na Alemanha. De acordo com as declarações dos dissidentes iraquianos à edição londrina do jornal árabe Asharq Al Awsat, o objetivo do encontro foi "coordenar um ataque conjunto contra Hussein" e "discutir as diferentes modalidades da administração provisória para o norte do Iraque". Os Kurdos sabem que, sozinhos, não têm condições de vencer Saddam no campo de batalha e nem de manter o controle do país, mas, para os americanos, este enfrentamento seria só uma espécie de aperitivo. Consolidada a primeira derrota, as demais minorias, cuja revolta foi esmagada em 1991, poderiam fornecer ao exercito estadunidense o ambiente que falta para a derrubada final do ditador e a posse de um governo dócil aos interesses das empresas petrolíferas norte-americanas". - "Feito isso, será que a águia pára de bater suas asas ou...?". Sem esperar que eu termine a pergunta, a coruja respira fundo e, apontando para o globo terrestre, corta minhas palavras com um "Infelizmente não!" que chega a dar arrepios. - "Você precisa entender", prossegue Nádia em tom nada animador, "que se este cenário chegar a se concretizar, a independência dos Kurdos do Iraque daria um novo fôlego à retomada da luta armada por parte dos grupos do Partido Democrático Kurdo do Irã (PDKI) que se refugiaram no norte do Iraque quando a maioria da organização deixou a clandestinidade e optou pela luta parlamentar. Esta mudança ocorreu depois que, na década de 80, a hierarquia religiosa xiita do Irã desatou uma violenta repressão contra os kurdos acusando-os de colaborar com os inimigos do regime. Naquela época, o PDKI privilegiava a luta armada e os enfrentamentos com o exército iraniano eram freqüentes. Depois de seguidas derrotas e do assassinato dos principais líderes do movimento Kurdo, o presidente do Irã, Mohamed Jatami, adotou uma política de diálogo e de aproximação. O objetivo era justamente o de fortalecer o clima de ruptura, que já estava presente no PDKI, entre os que estavam pensando em abandonar as armas como instrumento para conseguir a independência da região do Kurdistão iraniano e os grupos minoritários que, mantendo sua opção inicial, acabariam saindo do país e se refugiando no vizinho Iraque. Isso não significa que a águia aplicará no Irã a mesma tática que pretende usar no Iraque, mas que, talvez, aproveitará deste grupo para uma ação de desgaste que leve o Irã à mesa de negociação e a algum tipo de abertura nas relações com os Estados Unidos. E não é pra menos. O segundo país com as maiores reservas de petróleo já descobertas conta com investimentos russos e franceses, com armamentos razoavelmente modernos, fornecidos por Rússia, China e Coréia do Norte, e com uma forte indústria bélica local. Em outras palavras, a médio prazo, atacar o Irã seria como bater num ninho de marimbondos. Depois da pancada inicial, os acontecimentos tenderiam a se tornar imprevisíveis. Sabendo disso, a inclusão do país no eixo do mal, ou seja, no conjunto de nações passíveis de ataque nuclear estadunidense deve ser entendido como parte da política de "dissuasão ofensiva" que está sendo desenvolvida pelo Pentágono. Ou seja, a produção de novas armas nucleares e a ampliação das possibilidades de utilização das mesmas servem para mostrar que a águia está falando sério quando diz que pode enfiar suas garras nas carnes de quem resolver atrapalhar seu vôo de exploração ao redor do planeta. E, muitas vezes, a ameaça produz o mesmo efeito de um ataque de verdade". - "Más, Nádia, será que você não está exagerando? Eu já ouvi dizer que os Estados Unidos incluíram o Irã no eixo do mal porque o país estaria usando os recursos oriundos do comércio de petróleo para sustentar grupos terroristas e produzir armas de destruição em massa?". - "Meu pequeno humano de óculos", responde a coruja em um tom irônico, "vejo que suas lentes não estão ajudando a furar o muro das aparências. Por importantes que sejam estas questões dos atentados terroristas e da fabricação de ogivas nucleares, em relação à qual não há provas, elas representam apenas a ponta do iceberg, aquilo que é interessante que as pessoas vejam e repitam para apoiar a guerra contra o terror, mas a base da montanha de gelo que permanece submersa é bem maior e perigosa. O que você precisa saber é que o Irã está incomodando os EUA por, pelo menos, duas grandes razões. A primeira delas diz respeito ao apoio político e financeiro às facções afegãs lideradas por Gulbudin Hekmatiar que se opõe ao governo do presidente Hamid Karzai. Some isso aos enfrentamentos entre os vários grupos que integram a Aliança do Norte, ao banditismo, às ações dos talebãs que conseguiram se reagrupar, ao tráfico de ópio e heroína que sustenta o descontentamento armado dos líderes tribais e terá como resultado o aumento da situação de instabilidade nas regiões oeste e sudeste do país por onde deveriam passar os dutos que transportarão o gás natural da cidade de Dauletabad, no sul do Turcomenistão, ao porto de Karachi no Paquistão. Acontece que, durante a sua visita ao Turcomenistão ocorrida no dia 12 de março de 2002, o presidente afegão Hamid Karzai, assinou o contrato para a construção de um gasoduto que transportaria entre 60 e 100 bilhões de metros cúbicos de gás natural por ano. Em troca, o Afeganistão receberia 12% do volume de gás transportado, o que reduziria sensivelmente suas dificuldades de acesso às fontes de energia e iria atrair novos investimentos estrangeiros. A encarregada da construção do gasoduto e da futura comercialização do gás é a Union Oil Company of Califórnia, mais conhecida como UNOCAL, cujas tentativas de realizar esta façanha haviam fracassado em 1997. Naquela época, Bill Clinton se recusou a aceitar a proposta do governo talebã que trocava a passagem do gasoduto pelo reconhecimento internacional do seu regime por parte do governo estadunidense. Como ex-diretor desta empresa durante a sua estadia nos Estados Unidos, Karzai já adiantou parte da sua tarefa. O problema é que, enquanto não houver um clima de estabilidade, não será possível transformar em realidade as promessas de investimento, já que o gasoduto seria um alvo fácil para qualquer um dos grupos armados que agem no país. A segunda razão, e talvez a mais importante neste momento, diz respeito à recusa do Irã em aceitar a divisão do Mar Cáspio proposta após o fim da antiga União Soviética. De acordo com o Plano Nacional de Energia dos EUA, a bacia deste mar (que inclui Irã, Azerbaijão, Rússia, Cazaquistão, Turcomenistão e Uzbequistão) tem reservas comprovadas que flutuam entre 17,5 e 34 bilhões de barris de petróleo e outras, ainda não descobertas, que estão sendo estimadas em 235 bilhões de barris. O problema atual está justamente em definir o tamanho do Mar Cáspio que pode ser explorado por cada um dos países banhados por suas águas, já que alguns quilômetros a mais ou a menos implicam em ganhar ou perder rendas de bilhões de dólares na extração do petróleo e do gás natural. Antes da desintegração da União Soviética, havia um acordo pelo qual metade do Mar Cáspio pertencia ao Irã e a outra metade às repúblicas soviéticas. Ao longo dos últimos 10 anos, a Rússia e os demais países, com exceção do Irã, questionaram os termos deste tratado dizendo que eles regulamentavam apenas a navegação e a pesca, mas não a exploração do subsolo. O governo iraniano é contrário à proposta de que cada país receba uma parte proporcional ao tamanho de sua região costeira, pois, por este critério o Irã teria direito a uma fatia de mar não superior a 13%. Ao mesmo tempo, Azerbaijão e Turcomenistão disputam amplas jazidas de petróleo que o primeiro explora a 184 quilômetros de suas costas e que o segundo insiste em dizer que lhe pertencem por estarem a 84 quilômetros da sua. O Irã apóia o Turcomenistão na tentativa de melhorar o seu poder de barganha, o que vem gerando sérios atritos entre as nações da região. Agora, você não pode esquecer que, desde 1994, o Azerbaijão assinou importantes contratos com empresas petrolíferas dos EUA para explorar a que considera ser a "sua" parte do Mar Cáspio. Diante das ameaças de retaliação, o governo Bush não perdeu tempo e já anunciou que dará ampla ajuda financeira e militar ao Azerbaijão caso venha a ser ameaçado por seus vizinhos, leia-se Irã e Turcomenistão. Esta postura da águia não é fruto do acaso. Entre os projetos mais promissores nos quais está envolvida a UNOCAL, está a construção de um oleoduto que vai sair de Baku, capital do Azerbaijão, atravessar parte da Geórgia até a altura de Tbilisi e cruzar a Turquia rumo à cidade de Cehyan, na costa do Mar Mediterrâneo, próxima à fronteira com a Síria. Com uma extensão de 1730 quilômetros, um custo de 2 bilhões e 900 milhões de dólares e previsão de término das obras para final de 2004, o oleoduto vai transportar um milhão de barris por dia. Com certeza, ele não é o caminho mais curto para comercializar o petróleo do Mar Cáspio, mas oferece a vantagem de não precisar da aprovação da Rússia, além de evitar o território onde a guerrilha kurda da Turquia está mais forte e de passar à margem das montanhas da Geórgia que abrigam cerca de 1500 rebeldes da Chechenia. Esta parte do trajeto parece ser a mais arriscada. Mas, enquanto as tubulações do oleoduto não chegam, os EUA já enviaram à Geórgia 200 assessores militares (com o objetivo de treinar quatro batalhões de forças especializadas no combate ao terrorismo), uma ajuda financeira de 150 milhões de dólares e equipamentos militares no valor de outros 64 milhões. Sim, eu sei que tudo isso foi a convite do presidente da Geórgia, Edward Schewarnadze, mas ninguém me faz engolir o fato de que é por mera coincidência que a ajuda americana visa garantir a segurança na que se consolidou como uma das principais rotas alternativas para o transporte do petróleo". - "Bom, Nádia, mas já que os Estados Unidos estão adiantando as medidas necessárias para garantir o acesso a novas fontes de suprimento, talvez eles vão parar por aqui. Não acha?", pergunto na tentativa de ganhar tempo para fazer descansar a mão direita. - "É aí que você se engana!", responde a coruja jogando por terra minha tênue esperança de aliviar o cansaço. E continua: "De acordo com o relatório A geopolítica da energia no século XXI, do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais de Washington, a demanda mundial de petróleo, gás natural e carvão dos próximos 20 anos deve superar o consumo atual em mais de 50%. A maior parte deste aumento virá dos países asiáticos, em particular da China que terá sérias dificuldades em ampliar o abastecimento junto aos seus fornecedores. Isso significa que se as empresas petrolíferas estadunidenses conseguirem, direta ou indiretamente, garantir o controle da extração e da comercialização dos combustíveis das novas e velhas jazidas, automaticamente, uma parcela significativa do petróleo e do gás comprados pela China irá levar gordos lucros aos bolsos dos capitalistas norte-americanos, além de obrigar o país a comer na mão dos EUA. É importante sublinhar esta última constatação porque estamos falando da única potência que pode atrapalhar os planos econômicos, políticos e militares que a águia está costurando em ritmo acelerado. Para mostrar ao que vieram, os EUA já ameaçaram a China com um ataque nuclear caso decida levar adiante suas ameaças a Taiwan. O fato é que a pequena ilha fica a meio caminho entre o Mar do Leste e o Mar do Sul da China onde há jazidas de petróleo inexploradas sobre as quais a própria Chia deixou claras suas intenções de ter acesso exclusivo. Contando com centenas de mísseis de médio alcance e 37 mil soldados fortemente armados na Coréia do Sul, com suas base no Japão e com o eventual apoio da própria Taiwan, a águia já tem como colocar um ponto de interrogação sobre as pretensões chinesas no Mar do Leste. Por sua vez, o Mar do Sul já conhece há anos uma forte presença americana em Cingapura e na Malásia. Mais recentemente, o exército estadunidense fez chegar nas Filipinas cerca de 1500 soldados entre membros das forças especiais, assessores e engenheiros militares. Oficialmente, eles têm a tarefa de preparar as forças armadas Filipinas para combater a guerrilha fundamentalista de Abu Sayaf, cuja base é na ilha de Basilan. A luta contra o terrorismo prevê a abertura de estradas e de pistas para aviões de combate em pontos estratégicos que, dificilmente, podem ser justificados em função dos enfrentamentos com os guerrilheiros instalados na pequena ilha do sudoeste do país. Se isso não bastasse, no final de abril, o governo da Indonésia aceitou as pressões estadunidenses que alardeavam a necessidade do país receber a ajuda militar norte-americana para combater as possíveis bases da Al Qaeda em seu território. Com mais esta intervenção, se amplia a presença americana na região como fator de dissuasão para as pretensões da China. Em outras palavras, em nome da guerra contra o terror, o petróleo dos mares chineses vai contar com a "proteção e o carinho" das garras da águia. Pouco a pouco, na trilha aberta pelos soldados, irão caminhar mais capitalistas norte-americanos que irão costurando seus interesses com os das elites locais dispostas a se fartar com as migalhas do banquete. É assim que deve ser lido o fato dos EUA estarem literalmente "descobrindo" supostos grupos terroristas em países onde a presença militar da águia busca ampliar o controle estratégico da região e os possíveis negócios de suas empresas". Nádia, finalmente faz uma pausa. Devagarzinho, tento afastar a cadeira enquanto os dedos da mão direita se esticam em busca de descanso. A coruja acompanha de rabo de olho cada um dos meus gestos. De repente, a sua asa esquerda faz um movimento silencioso para pedir que me aproxime ao globo terrestre. Apontando para o mapa da Ásia, Nádia retoma a sua conversa. - "Agora preste muita atenção. Como você já percebeu, na costa leste da China há pegadas da águia nos mares próximos às jazidas de petróleo. Leve em consideração que a guerra do Afeganistão afastou o Paquistão da órbita da China e tornou seu presidente mais vulnerável e dependente das ações dos Estados Unidos. Repare também que os EUA andaram fortalecendo suas relações com a Índia e estão prontos a aumentar o fornecimento de artefatos bélico àquele país. Se isso não bastasse, na Ásia Central, as repúblicas da antiga União Soviética abriram suas portas às tropas americanas. O exército da águia já armou seu ninho nas bases militares do Uzbequistão, do Quirguistão, do Tadjiquistão e do Cazaquistão (onde as companhias petrolíferas estadunidenses se dispõem a investir cerca de 200 bilhões de dólares nos próximos dez anos). As melhorias que os engenheiros militares estão viabilizando em cada uma delas indicam que os Estados Unidos não estão de passagem, mas que vieram pra ficar. Não sei se você percebe, mas, desse jeito, a China fica no meio de uma morsa que pode ir se fechando caso a sua postura venha a ser uma ameaça aos interesses da águia". - "E a Rússia?", pergunto na esperança de ganhar mais alguns minutos de alívio. "Vai me dizer que com aquele tamanho todo o velho urso vai ficar quieto?". Com a ponta das asas na cintura, a coruja me olha como quem já sacou a jogada e se prepara para dar o troco: "O que me deixa perplexa é ver que na sua idade ainda não percebeu que tamanho não é documento! O que conta aqui é fôlego. São as condições econômicas de cada país que vão fazer a diferença e, nelas, o tamanho dos recursos que podem ser destinados a novos gastos militares". Apontando para a mesa onde estava sentado, Nádia me faz entender que o meu dever de secretário exige que sente e continue a redigir o seu relato: "Acontece que a Rússia está na lona e vai demorar bastante até conseguir se reerguer. É por isso que, recentemente, aceitou sem chiar as condições desfavoráveis daquele tratado de desarmamento imaginário proposto pelos Estados Unidos. Como você sabe, até 31 de dezembro de 2012, os dois países se comprometem a reduzir o número de ogivas prontas para serem lançadas num ataque nuclear. Isso significa que, nos próximos dez anos, a Rússia passará das atuais 5.518 ogivas para 1700, enquanto o arsenal estadunidense cairá de 5.948 para 2.200. Apesar das aparências, nenhum destes artefatos será destruído. Os explosivos nucleares serão separados dos mísseis nos quais estão instalados e armazenados em lugar seguro à espera de serem chamados a cumprir sua tarefa destruidora. Isso dá à Rússia a possibilidade de eliminar os gastos de manutenção das bases de lançamento que estavam absorvendo recursos cobiçados por atividades econômicas mais urgentes. Mas a que parece ser uma boa notícia esconde uma ameaça velada. A capacidade de produção dos modernos mísseis russos Topol-M é insuficiente para alcançar um patamar mínimo de igualdade com os EUA, ao mesmo tempo em que os atuais SS-18 ficarão obsoletos em 2007 e os SS-19 dois anos mais tarde. Sabendo que o Produto Interno Bruto da Rússia gira em torno dos 310 bilhões de dólares, ou seja, 86 bilhões a menos da quantia que a águia vai gastar em novos armamentos entre outubro de 2002 e setembro de 2003, não vai ser difícil entender que o urso ampliará sua posição de inferioridade militar e subordinação em relação ao velho inimigo da época da guerra fria. Na tentativa de adoçar a boca do bicho, os Estados Unidos começaram a comprar petróleo da Rússia, a reduzir os atritos com as siderúrgicas que exportam aço para os EUA e aceitaram de bom grado a sua aproximação à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Mesmo sem ter o direito a voto, a Rússia procura garantir um certo grau de proteção contra eventuais ameaças de ataque que possam resultar de sua posição em relação aos futuros conflitos na Ásia e no Oriente Médio, além, é claro, de aproveitar a política de boa vizinhança para viabilizar acordos econômicos e comerciais que aliviem a dura situação em que se encontra". Terminadas as observações, Nádia faz girar vagarosamente o globo terrestre enquanto seu olhar analisa cada centímetro ampliado pela lupa. O fato dela não ter falado ainda da América Latina me conforta. Não sei porque, mas dá uma certa sensação de alívio saber que as maiores desgraças parecem se destinar a outros continentes. Animado por ela, me aventuro com uma pergunta que pretende apressar o relato da "hospede" da minha estante: "Quer dizer então que são os povos da Ásia e do Oriente Médio que devem esperar chumbo grosso ao longo da próxima década, enquanto aqui podemos ficar sossegados. Não é mesmo?". - "E aí que você se engana!", me responde a coruja sacudindo a lupa no ar. "Os olhos da águia não perderam de vista o nosso continente para cujas reservas ela já tem um plano bem definido. De acordo com a Agência de Geologia dos Estados Unidos, a América Latina – sobretudo Venezuela, México e Brasil – tem mais de 117 bilhões de barris em jazidas já descobertas e, potencialmente, outros 114 bilhões em reservas que ainda não foram encontradas. O Plano Nacional de Energia, elaborado pelo governo Bush, dá ênfase à compra adicional de petróleo da Venezuela e do México, respectivamente o 3º e o 4º maior fornecedor depois do Canadá e da Arábia Saudita. Em relação ao México, o interesse americano é extremamente grande não só pela proximidade e o baixo custo do transporte dos combustíveis. A pressão da águia vai no sentido de abrir a companhia petrolífera mexicana (Pemex) ao capital privado e o setor de refino aos investidores estrangeiros, de desmembrar a rede de oleodutos em várias companhias (que mais facilmente poderiam ser atraídas e abocanhadas por empresas norte-americanas) e de desalojar as comunidades indígenas em resistência que estão, literalmente, sentadas sobre jazidas de petróleo que são de dar água na boca. Apesar da submissão já manifestada por Fox, o atual governo ainda não conseguiu vencer as resistências internas que impedem de escancarar as portas do setor energético ao capital estadunidense. Ciente desta realidade, o presidente mexicano está ampliando os espaços da direita brava no interior do governo e da própria estrutura do Estado. Pelas nuvens que se aproximam do horizonte, uma das hipóteses que ganha consistência é a de que estes setores da sociedade preparem o caminho para a viabilização de medidas de força caso a capacidade de convencimento do discurso presidencial fracasse em sua tentativa de prostrar a nação aos pés do império. Dos três países citados, o único a oferecer resistências à política da águia era a Venezuela. Antes da tentativa de golpe, realizada com o apoio da elite, da hierarquia da igreja católica, da mídia, de parte dos sindicatos e dos Estados Unidos, o presidente Hugo Chavez desafiava o governo Bush em vários aspectos vitais. Sabendo da importância do petróleo para a economia venezuelana, Chavez proibiu às empresas estrangeiras de explorarem as jazidas do seu país, fortaleceu a Organização dos Produtores e Exportadores de Petróleo promovendo uma elevação do preço do barril e estabeleceu relações com o Iraque, Irã e Líbia, rompendo o bloqueio imposto pelos EUA. Além disso, se opôs abertamente à intervenção militar no Afeganistão e ao Plano Colômbia, rechaçou a implantação da ALCA, desenvolveu relações amigáveis com Cuba (à qual vendia petróleo a preços subsidiados) e viabilizou reformas que, apesar de pequenas, eram suficientes para tirar do sério a elite local. Diante da teimosia do presidente venezuelano, não restava outro caminho a não ser o do golpe cujo fracasso se deve mais às trapalhadas dos setores dominantes da Venezuela do que à postura do governo Bush que, por dois dias, chegou a dar nó em pingo d’água para mostrar ao mundo que os golpistas agiam em nome da liberdade e garantir o apoio dos Estados Unidos ao governo que acabava de derrubar um presidente democraticamente eleito. Passado o susto e aprendida a lição, Chavez promoveu uma reforma ministerial que ampliou a presença do empresariado no seu governo, manteve a suspensão do fornecimento de petróleo a Cuba, decretado durante o golpe, já amaciou os termos que caracterizavam seus discursos, viabilizou cortes no orçamento e uma elevação generalizada dos impostos para enfrentar a crise econômica que sacode o país. Dito de outra forma, o pouco que era, já não é; e o que será tende a ficar bem parecido com vários filmes que continuam em cartaz no nosso continente. Resta saber se isso será suficiente para acalmar os ânimos agitados da direita venezuelana. Para o governo Bush, a única nota 10 em comportamento é para o presidente Fernando Henrique Cardoso. Apesar dos discursos oficiais contra as medidas protecionistas da águia e dos demais países do primeiro mundo, da quebra das patentes de alguns remédios (que passam longe de ser os de "última geração") e de um punhado de denúncias contra as relações perversas entre nações ricas e pobres, a prática do seu governo tem revelado um elevado grau de aceitação e viabilização das ordens do império. As privatizações, a entrada de capital estrangeiro na exploração dos poços de petróleo da Petrobrás e uma política fiscal voltada ao pagamento dos juros das dívidas interna e externa representam a parte essencial do trabalho de casa encomendado pelos Estados Unidos. E, como você sabe, o problema de quem fica lambendo as botas não é que a língua se enche de lama e sim que sua posição o mantém aos pés dos poderosos e na garganta dos oprimidos. Resumindo, meu caro secretário, o império está disposto a garantir a parte do leão pressionando os governos que hesitam em executar suas ordens, mantendo a estabilidade dos que lhe são dóceis e derrubando os indesejados. Longe de resolver as injustiças que espalham conflitos pelo mundo, a águia afia suas garras enquanto seus ninhos preparam o aprofundamento da exploração em todo o planeta. É por isso que nos próximos cinco anos os gastos bélicos dos Estados Unidos deverão superar a marca dos 2 trilhões e cem bilhões de dólares". A esta altura, já não sei se estou mais assustado do que cansado ou o contrário. Mas, pouco a pouco, parece que as notícias dos últimos meses começam a compor a figura cinzenta do quebra-cabeça global. Com o queixo apoiado na mão esquerda, deixo escapar um "Se for assim... estamos fritos!", que faz Nádia voar rapidamente da estante à mesa sobre a qual estão espalhados os papéis do novo relato. Com os olhos fixos nos meus e a ponta da asa em minha direção, a coruja me bombardeia com uma chuva de perguntas: "Por que você está assustado? Não sabia que já em 2001 os gastos militares dos governos do planeta atingiram a marca dos 800 bilhões de dólares? Você nunca parou para pensar no fato de que a cada dólar aplicado pela ONU em missões de paz os poderosos investem 2 mil na preparação da guerra? Ou que uma hora de gastos bélicos seria suficiente para pagar um salário digno a 86 mil e 400 trabalhadores? Vai ficar de queixo caído se eu disser que com o custo médio de um avião supersônico se poderiam equipar 40 mil consultórios médicos? Sabia que com o valor de um tanque de guerra daria para construir 520 salas de aula?". - "Bom, Nádia, isso é porque as pessoas não pensam nos outros...", digo sem me arriscar a levantar os olhos do papel. - "Errado! Redondamente errado! Mais uma vez errado!", diz a coruja pulando nervosamente de um lado para outro. E continua: "O que você precisa entender é que não estou falando de uma questão moral e sim de um mecanismo essencial à fria lógica da exploração. Há séculos, as armas abrem a passagem aos investidores que sob o guarda-chuva protetor do poder bélico do Estado espalham seus negócios e sua relação de dominação pelo planeta. O que espero que a sua cabecinha comece a entender é que não são as empresas a criarem o tal do novo mundo globalizado. Diante das possibilidades de negócios que aparecem no horizonte, é o Estado que usa o dinheiro público para garantir, com a força das armas, a segurança dos investimentos e o aprofundamento da situação de dependência dos demais países. O que você acabou de ver é apenas um simples ensaio dos caminhos sangrentos que o lucro prepara para o futuro da humanidade. E aqui, ou os trabalhadores e as trabalhadoras de todos os países começam a entrar em cena para virar o jogo, ou o novo século vai andar a passos largos rumo à barbárie. As coisas só são o que são não só porque os poderosos desempenham bem o papel que lhe cabe, mas porque nós deixamos de fazer história, de dizer o nosso basta, de mostrar o nosso descontentamento e a rebeldia de quem faz da dignidade a sua primeira e mais simples arma de combate. Como ave de rapina, a águia aumenta seu poder não só quando as garras penetram na carne de suas vítimas, mas também quando nos submetemos resignadamente aos seus projetos, quando preferimos não conhecer para não sentir a revolta que nos leva a agir e a assumir a dura tarefa e virar a ordem de cabeça pra baixo". Depois do desabafo, a coruja pára de falar. O silêncio que se estabelece entre nós está carregado de reflexão. Atordoado por este impacto com a realidade, não percebo que Nádia põe nas costas a que aparenta ser uma mochila. Depois vira a cabeça em minha direção, pisca os olhos e, sem demora, se despede com um sorriso: "Vou dar uma voltinha lá pelas bandas do Oriente Médio. Quando voltar, conto o que vi". Em seguida, suas asas desafiam a escuridão da noite. Ignoro qual é o seu destino e que caminho percorrerá para alcançá-lo, mas alguma coisa me diz que vai sobrar pra mim. Mesmo assim, já estou sentindo saudade daquela danada de coruja que, ao desvendar as tramas dos poderosos, acende a vontade de lutar para que o futuro dos pequenos conheça um novo amanhecer onde haja tudo para todos. Brasil, 15 de junho de 2002 Bibliografia: - Bill Keller, "A modernização da guerra", página eletrônica do New York Times em português, 13 de março de 2002. - Carlos Fazio, "Imperialismo energético, geopolítica, petróleo e guerras – Predicciones Del Centro de Estúdios Estratégicos de Washington", em La Jornada, 26 e 27 de novembro de 2001. - Eric Smith e James Dão, "Construção de bases militares na Ásia Central indica longa permanência americana na região", página eletrônica do New York Times em português 09 de janeiro de 2002. - James Petras, "El 11-S, cinco meses después", em Rebellión, 23 de fevereiro de 2002. - James Petras, "La ofensiva de los EE.UU. em América Latina: golpes, retirada y radicalización", em Rebellión, 13 de março de 2002. - Juan Pablo Duch, "Alimenta Bush su nueva guerra", em La Jornada, 08 de fevereiro de 2002. - Juan Pablo Duch, "Disputa entre Paises ribereño del Mar Caspio", em La Jornada, 26 de abril de 2002. - Juan Pablo Duch, "Manos vacias de Rusia en Asia Central", em La Jornada, 11 de fevereiro de 2002. - Juan Pablo Duch, "Poderosa empresa estadunidense tras el control absoluto del petroleo en Asia Central", em La Jornada, 02 de abril de 2002. - Juan Pablo Duch, "Privilegia la minoria kurda en Irán la lucha parlamentária a la armada; tiene 10 diputados", em La Jornada, 05 de maio de 2002. - Luiz Hernández Navarro, "La guerra como poder constituyente", em La Jornada, 12 de fevereiro de 2002. - Luiz Hernández Navarro, "Pierde Karzai las riendas del gobierno mientras cunden enfrentamientos por el poder", em La Jornada, 22 de fevereiro de 2002. - Micheal T. 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